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“A RRANCANDO PELO CACHO FAZEMOS OS BAGOS CAIR NO CHÃO ” (S IMONE W EILL ) – OS DESAFIOS DA APROXIMAÇÃO E DA CONSTRUÇÃO DOS DADOS DA PESQUISA

O PERCURSO METODOLÓGICO

“A RRANCANDO PELO CACHO FAZEMOS OS BAGOS CAIR NO CHÃO ” (S IMONE W EILL ) – OS DESAFIOS DA APROXIMAÇÃO E DA CONSTRUÇÃO DOS DADOS DA PESQUISA

Visto que os sentidos não são imanentes aos episódios - as fontes não falam por si próprias - o meu primeiro passo ao me aproximar das interlocuções documentadas não foi categorizá-las, nem assumi-las como expressão dos sujeitos que delas participaram, mas como elaborações produzidas em um contexto relacional específico. O que se falou/pensou foi construído no momento da interlocução, em função dos sujeitos concretos e em condições específicas. No que se falou/pensou, também se fazem presentes e se recriam vozes outras, momentos outros, relações outras... Não se trata de simplesmente comunicar uma idéia já pensada, organizada. A situação também impõe condicionantes. Como assinala Bakhtin:

...o ato da fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo: não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social.(1981, p. 109)

Nessas condições, a palavra, mais do que expressão de um sujeito, serve de expressão a um sujeito em relação a outro e também em relação à coletividade. A linguagem, então, é entendida como o produto da interação de indivíduos socialmente organizados, de forma que toda enunciação efetiva contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de visões de acordo ou desacordo com algo. Os contextos presentes na interação, não estão simplesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns aos outros, mas encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto e representam determinado horizonte social definido e estabelecido que orienta a criação ideológica do grupo social e da época a que pertence.

Esse foi um exercício de leitura praticamente novo para mim. Um exercício difícil que exigiu problematizar expectativas que sempre se estabelecem com relação aos resultados do trabalho docente e abrir mão de pré-julgamentos a respeito do outro, também bastante comuns nas relações do professor com seus alunos.

Ao mesmo tempo em que revisei as práticas estabilizadas em mim e no meu universo profissional, vivi o esforço de expor-me à escuta dos sentidos em circulação e à compreensão dos sentidos existentes nos enunciados dos alunos. Como fazê-lo?

No encontro com os enunciados carregados de sentidos, como apreender sujeitos e sentidos? Considerando-se que os sentidos elaborados nas interlocuções por mim documentadas foram mediados pelas imagens que os interlocutores tinham do lugar ocupado por eles na escola e na sociedade, pelo lugar ocupado por mim como professor e pela temática por nós compartilhada, como pegar os cachos sem derrubar as uvas?

Como textualizar os enunciados que tanto reproduzem sentidos historicamente estabilizados - a respeito do analfabeto, da escolarização, do professor e do aluno, do ensinar e do aprender, dos saberes escolares e não escolares, da relação escola/trabalho, etc., - quanto refratam tais sentidos, a partir dos lugares sociais especificamente ocupados por meus interlocutores na escola e fora dela, lugares sociais que são distintos do ponto de vista das hierarquias das relações de poder?

Perguntava-me hesitante: transcrevo os enunciados em seu encadeamento, mantendo os termos e os turnos, ou assumo o lugar de narrador em alguns momentos? Quais os efeitos desses dois modos de dizer sobre os sentidos dos enunciados? Onde corto? Se eu cortar logo aqui, antes da fala da professora, os leitores vão pensar que o aluno ficou sem réplica! O episódio pode ficar longo? Mas qual é mesmo o foco da pesquisa?

Como delimitar o professor e o pesquisador, que, embora tenham pontos de contato, têm também preocupações distintas?

Como transformar em palavra escrita os enunciados produzidos oralmente? Como lidar com as marcas da oralidade, com as falas entrecortadas, com as dificuldades para entender o que foi dito? Apagar ou manter as marcas da oralidade? Que efeitos de sentido uma ou outra escolha produzem? Como afetam os sentidos produzidos? Que efeitos políticos estão implicados em cada uma dessas opções?

Quando se atenta para a constituição do outro na relação de pesquisa, a suposição de que a pesquisa é o resultado apenas de um processo de observação e de análise cai por terra. A realização da pesquisa, desde seu início até o momento da escrita final, envolve alianças que se estabelecem entre o pesquisador e o grupo, alianças essas que mediatizam e possibilitam a real aproximação entre ambos. Nesse sentido, a pesquisa, de acordo

com Silva (2000), em reflexão desenvolvida sobre o trabalho etnográfico, “é uma construção realizada a partir da convivência entre pessoas que se observam e se interpretam mutuamente” (p.184). Ela envolve um complexo de situações e planos interativos, matizados pelas relações intersubjetivas entre pesquisador e pesquisados, que envolvem um jogo de imagens e lugares ocupados, tanto pelo pesquisador como por seu outro, que colocam em escrutínio seus limites e objetivos.

Frente a essa quase impossibilidade de dizer o outro, Silva (2000) sugere que o texto da pesquisa é, “mais um meio para a (...) compreensão dos valores do outro por alguém que também não se despe de seus próprios valores e subjetividades, e fala para terceiros, desconhecidos, de modo generalizante, ainda que cuidadosamente” (p.183).

Na mesma direção, Simone Weill (1979), com delicadeza, sugere que, se quisermos arrancar a uva pelo cacho, os bagos vão cair no chão. A atenção “tem os dedos leves, escapa da lei da gravidade, é o contrário da certeza e da posse." (p. 212)

Minha opção, em meio às muitas questões, foi a de recortar fragmentos das interlocuções produzidas, transcrevendo-as de modo a manter os termos e os turnos em que foram registradas pelo gravador. Considerando que cada um desses episódios estava inscrito em eventos mais amplos, situei-os nesses eventos, procurando através da descrição, caracterizar suas condições de produção imediatas: a atividade de que faziam parte, os objetivos dessa atividade, os materiais utilizados para sua realização, os modos pelos quais nós, professores, estabelecemos e situamos a atividade a ser desenvolvida e como procuramos coordenar as ações e intervenções dos alunos, os modos como os alunos se inscreveram na atividade.

Como procurava apreender, no e pelo discurso, aspectos da elaboração do conhecimento pelos alunos e indícios da sua singularização, privilegiei, na seleção dos episódios, aqueles em que os alunos elaboraram a própria noção de analfabetismo e a condição do analfabeto, em interlocução com sua inserção na escola, na família, na igreja e no trabalho.Outros episódios trataram da relação dos alunos com a leitura e a escrita e dos processos de apropriação e de elaboração vividos por eles na escola e em outros espaços da vida cotidiana.

Definidos os episódios e os modos de proceder ao seu registro e análise, vi-me diante dos limites dos tempos institucionais e das exigências de recortes para a realização

da tese. Mergulhado nos enunciados e no encantamento da exploração cuidadosa de seus meandros, perguntas e mais perguntas se acumulavam, juntamente com possibilidades de análise. Foi a pressão dos rituais acadêmicos que acabou prevalecendo na resolução de algumas dessas intrincadas questões, deixando na boca, nas mãos e no texto sensações de frustração e de inquietação frente aos encaminhamentos dados, o desejo de continuar e a certeza de que muitos bagos estão caídos ao meu redor.

Outra dificuldade enfrentada no percurso da pesquisa foi minha relação com a escrita. Vindo de uma formação em que a leitura sobrepunha-se aos exercícios da escrita, tornei-me um leitor voraz. No ofício de professor, tradicionalmente vinculado à palavra falada e pouco chamado a exercer a escrita, continuei priorizando a leitura.

No percurso da pesquisa, durante um bom tempo, centrei-me nas leituras e nos apontamentos fragmentários que delas ia fazendo, bem como dos achados que me pareciam pertinentes à pesquisa. Ao enfrentar a tarefa da escrita, já premido pelos tempos acadêmicos, redescobri-a, entendendo a tese de Marques (1997, p. 10), segundo a qual “o escrever é o princípio da pesquisa, tanto no sentido de por onde deve ela iniciar sem perda de tempo, quanto no sentido de que é o escrever que a desenvolve, conduz, disciplina e faz fecunda.”

Tal tese implica o redimensionar de um clássico princípio aprendido na escola – escreve-se o que se pensou – que reduz a escrita à transcrição do pensado.

Roberto Cardoso de Oliveira (1994, p. 23), também destaca o escrever para pensar como uma importante experiência em seu trabalho de pesquisador:

...é no processo de redação de um texto que nosso pensamento caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos dados provenientes da observação sistemática. Sendo assim, seria um equívoco imaginar que, primeiro, chegamos a conclusões relativas a esses mesmos dados, para, em seguida, podermos inscrever essas conclusões no texto. Portanto, dissociando-se o pensar do escrever. Pelo menos minha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal forma solidários entre si que, juntos, formam praticamente um mesmo ato cognitivo.

Experimentar essa outra forma de escrita foi prazeroso, mas também trabalho árduo que me aproximou dos alunos com quem pesquisava. Apesar de vivê-lo em condições distintas das deles, o fato de experimentar as agruras e os pequenos prazeres da apropriação

da escrita, em suas possibilidades de funcionamento, tornou-me mais sensível aos dramas por eles enunciados em seu percurso de elaboração dos usos da escrita.

A exemplo da análise enunciativa, em que me vejo realizando tateios iniciais, também esse precioso aprendizado do escrever para pensar foi vivido, neste momento da elaboração da tese, sob a pressão dos tempos institucionais. E, também ele deixou-me sensações de frustração e o desejo de continuar.

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APÍTULO

III

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