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A adoção das estratégias do Banco Mundial no sistema de saúde brasileiro

CAPÍTULO III – A INFLUÊNCIA DO BANCO MUNDIAL SOBRE A GESTÃO DA

3) A adoção das estratégias do Banco Mundial no sistema de saúde brasileiro

Comentei no capítulo anterior sobre as restrições à seguridade social, e especialmente à saúde, já no mandato de Fernando Collor. No entanto, estes seriam apenas os primeiros passos de um longo processo de desmonte, que se aprofundou durante a reforma do Estado promovida no Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), sob a liderança de Luiz Carlos Bresser-Pereira, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso. Fagnani (2005) ressalta a incompatibilidade da gestão macroeconômica (restritiva e privatista) e a reforma do Estado (no sentido de reduzir seu papel) com a consolidação das políticas sociais. Na prática, houve “enxugamento” da máquina estatal e cortes de gastos públicos, especialmente os voltados às políticas sociais. Na esteira deste processo, formular- se-ia uma nova agenda para lidar com as políticas sociais de forma focalizada, onde se inclui a saúde. Este tema será aprofundado no último capítulo.

Rizzotto (2015) cita algumas estratégias do Banco que foram adotadas no sistema de saúde brasileiro: “filas para procedimentos de alta e média complexidade, cota mensal e limite máximo de Autorização de Internação Hospitalar (AIH), e pagamento e avaliação de desempenho por produtividade.” (Rizzotto, 2015, p.268). O aspecto da regulação, recomendado pelo Banco em todos os documentos, foi adotado integralmente pelos governos brasileiros. Destacam-se a criação de três agências reguladoras na área da Saúde, para as quais foram transferidas algumas funções que eram do Ministério da Saúde: a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), em 2000; a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 1999; e a Organização Nacional de Acreditação (ONA), também em 1999.

A maior atenção no aspecto preventivo também foi incorporada, através da elaboração de programas de baixo custo e largo alcance, focados nas classes de baixa renda, como o Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) e o Programa Saúde da Família (PSF). Claramente, estes programas são pontos positivos, mas limitar a atuação do SUS a eles significa reduzir drasticamente o que foi planejado como sistema público de saúde no Brasil. Há uma diferença grande entre privilegiar o atendimento primário e reduzir o sistema ao atendimento primário.

Ademais, a atuação do setor privado expandiu-se consideravelmente. Segundo dados da ANS atualizados para setembro de 2015, há 1370 operadoras de serviços de saúde privados em atividade no Brasil, sendo 999 as médico-hospitalares e 371 exclusivamente odontológicas. No mesmo mês, havia quase 34 mil planos de saúde com beneficiários. Para dezembro de 2015, a ANS contabilizou mais de 49 milhões de pessoas como beneficiárias de planos de assistência médica por operadoras, estando a maioria delas na faixa etária de 30 a 39 anos (ANS, 2016) 32.

Os gráficos a seguir, disponíveis na página da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), indicam a evolução da saúde suplementar no Brasil nos últimos anos. Observa-se o crescimento estrondoso dos planos de saúde coletivos empresariais, concomitante à melhoria dos indicadores de mercado de trabalho no Brasil. Quero ressaltar que existe um componente pró-cíclico e instável entre setor privado de saúde e conjuntura econômica: o êxito ou o declínio do setor privado de saúde dependem das circunstâncias do mercado de trabalho. O aumento da renda do trabalho e a expectativa de estabilidade no emprego levam os indivíduos e as empresas a recorrerem aos planos de saúde. Quando a economia nacional regride, é pressionado o SUS fragilizado, evidenciando a crise da saúde. Percebe-se nos gráficos 3 e 4 que a recessão econômica de 2015 afetou a demanda por planos privados, sobretudo os coletivos empresariais.

32 Todos os dados da ANS contidos neste capítulo estão disponíveis na página online da Agência, neste endereço: http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor. Acessado em 14/04/2016.

Gráfico 3 - Beneficiários de planos de assistência médica (milhões) por tipo de contratação do plano (Brasil – 2000/2015)

Fonte: Extraído de ANS – Dados e indicadores do setor (2016). Reformulado.

Gráfico 4 - Taxa de cobertura (%) dos planos de assistência médica, por localização – (Brasil – 2004/2015)

Fonte: Extraído de ANS – Dados e indicadores do setor (2016). Reformulado.

O mapa 1 revela a concentração dos planos privados nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal. Enquanto a média nacional da taxa de cobertura é 18%, a média neste cluster de estados é de 39,36%. Além disso, o gráfico 4 mostra que a taxa de cobertura é

5,7 6,5 7,1 7,8 8,3 8,7 8,9 9 9 9,1 9,4 9,5 9,7 9,8 9,8 9,7 7,6 9,3 11,3 13,7 16 17,8 19,5 21,3 23,4 24,7 27,2 29 30,9 32,6 33,5 33,1 3,4 4 4,5 5,6 6,4 6,6 6,8 6,9 7,1 7,2 6,9 6,6 6,5 6,6 6,8 6,6 0,0 5,0 10,0 15,0 20,0 25,0 30,0 35,0 40,0

Individual ou familiar Coletivo empresarial Coletivo por adesão

36,0 36,7 37,5 38,1 39,1 39,2 41,1 41,6 42,5 44,1 45,0 45,0 13,2 13,5 14,1 14,9 16,3 16,6 17,8 18,3 18,7 19,4 20,1 19,9 18,6 19,0 19,7 20,4 21,7 22,0 23,4 23,8 24,4 25,3 26,0 25,9 0,0 5,0 10,0 15,0 20,0 25,0 30,0 35,0 40,0 45,0 50,0

set/04 set/05 set/06 set/07 set/08 set/09 set/10 set/11 set/12 set/13 set/14 set/15 Capital Interior Total

maior nas capitais. Esses dados reafirmam a correlação entre o mercado de trabalho e os planos de saúde: os planos privados concentram-se onde há altos índices de emprego formal e renda. Segundo a PNAD 2014, somente os estados de SP, RJ e DF concentram 46,3% dos brasileiros de 15 anos ou mais que ganham mais de cinco salários mínimos por mês (IBGE, 2014).

Mapa 1 - Taxa de cobertura dos planos privados de assistência médica* por Unidades da Federação (Brasil - setembro/2015)**

Fonte: ANS – Dados e indicadores do setor (2016). Elaboração própria. *Assistência médica com ou sem odontologia.

** Os 5 clusters foram elaborados a partir do cálculo do desvio padrão, no software PhilCarto.

A receita bruta de todas as operadoras somou mais de 117 bilhões de reais até o 3º trimestre de 2015, predominando o faturamento das cooperativas médicas. Em termos de lucro, destacam-se as cooperativas médicas, medicina de grupo e odontologia de grupo.

Tabela 2 - Receita total e despesa total, segundo

modalidade da operadora, em reais (Brasil – 3º trimestre de 2015)

Modalidade da operadora Receita total Despesa total Saldo

Total 117.308.772.340 117.228.765.876 80.006.464 Operadoras médico-hospitalares 115.267.816.257 115.505.631.149 -237.814.892 Autogestão 13.351.009.652 14.028.264.600 -677.254.948 Cooperativa Médica 42.719.630.210 42.265.136.699 454.493.511 Filantropia 4.355.699.840 4.379.053.756 -23.353.916 Medicina de Grupo 30.403.150.655 29.942.167.292 460.983.363 Seguradora Especializada em Saúde 24.438.325.900 24.891.008.802 -452.682.902

Operadoras exclusivamente odontológicas 2.040.956.083 1.723.134.727 317.821.356

Cooperativa odontológica 425.848.373 417.894.772 7.953.601 Odontologia de grupo 1.615.107.710 1.305.239.955 309.867.755

Fonte: ANS – Dados e indicadores do setor (2016). Elaboração própria.

Embora nem todas as recomendações tenham sido incorporadas, as tensões continuam e estão especialmente acirradas em meio à crise econômica recente. Por exemplo, em agosto de 2015 o senador Renan Calheiros encaminhou ao Planalto uma série de propostas para contornar a crise. Entre elas está a proposta de copagamento no SUS, nestes termos: “Avaliar possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda. Considerar as faixas de renda do IRPF” (Senado, 2015). Outra medida diz respeito a mudanças no financiamento da saúde e tenta reduzir a realização e de procedimentos caros no Sistema Único: “Aperfeiçoar o marco jurídico e o modelo de financiamento da saúde. Avaliar a proibição de liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS.” (Senado, 2015).

Não podemos afirmar categoricamente que as contradições existentes no SUS foram causadas pelos documentos do Banco Mundial. No entanto, nossa análise revela que o governo federal, influenciado pelas recomendações internacionais, foi um ator importante na alteração das normas do SUS universalista. Ou seja, a agenda de reformas incrementais no sistema de saúde brasileiro sofreu alguma influência da agenda formulada pelo Banco Mundial, na esteira do processo de disseminação do neoliberalismo nos países em desenvolvimento na década de 1990.

A expansão do setor privado é concomitante ao sucateamento da rede pública, aos incentivos fiscais ao mercado de saúde e à crescente presença de organizações privadas sem

fins lucrativos. Devido à necessidade de recortar a análise, há dois aspectos a ressaltar: o Gasto Tributário e a presença de Organizações Sociais, que serão tema do próximo capítulo.

CAPÍTULO IV – DOIS ELEMENTOS DA CORROSÃO DO SUS: AS

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE E O GASTO TRIBUTÁRIO.

Os mecanismos governamentais de favorecimento ao mercado de saúde não são novos. No capítulo II, foi apresentado o Inamps, importante órgão governamental que realizava contratos e convênios com o setor privado de saúde, desde os anos setenta. Em 1992, André Médici escreveu uma boa síntese das categorias de incentivos governamentais ao setor privado de saúde no Brasil, que podem ser divididas em dois grupos: os incentivos diretos e os incentivos indiretos.

Dentre os incentivos diretos, há i) incentivos à produção, quando o governo favorece o escoamento da produção de um bem ou serviço do setor privado, através de reservas de mercado ou compra preferencial, por exemplo; ii) incentivos à formação de preços, onde se incluem isenções fiscais, subsídios e outras maneiras de conter os preços do setor privado; e, por último, iii) incentivos ao investimento, quando o governo cria programas e linhas de crédito atrativas voltados a impulsionar o investimento do setor privado (Médici, 1992, p.105) Já os incentivos indiretos são mecanismos que não incluem transferências de recursos, crédito facilitado ou favorecimentos nos processos de licitação. Como o nome diz, eles favorecem o setor privado indiretamente, incentivando o consumo dos bens e serviços do setor. Por exemplo, quando o governo permite que se deduzam do imposto de renda os gastos com saúde privada, ele torna vantajoso o consumo de saúde privada. Diretamente, as deduções fiscais favorecem os consumidores, mas indiretamente elas favorecem as empresas fornecedoras.

Nem sempre estes mecanismos são prejudiciais à saúde pública. Como exemplo, o governo federal mantém uma lista com quase 200 medicamentos importantes que tem presunção creditícia33 no PIS e Cofins. Outro exemplo é o Programa Farmácia Popular do Brasil, mantido pelo Ministério de Saúde desde 2004. Trata-se de uma parceria entre o governo federal e as farmácias privadas credenciadas, pela qual o governo paga até 90% do preço de medicamentos listados no programa (hoje, são 112) e o consumidor paga apenas o restante. Alguns remédios para hipertensão, diabetes e asma são gratuitos para o consumidor34. Estas são medidas importantes que favorecem o acesso da população a estes

33 Presunção creditícia é um mecanismo que desconta uma porcentagem de um determinado imposto devido. Por exemplo, se uma empresa deve R$ 600 de ICMS, mas tem direito a 20% de crédito presumido sobre o ICMS, sua dívida se reduz a R$ 480.

medicamentos, alguns indispensáveis e de uso contínuo, porque amenizam a alta dos preços dos mesmos.

Entretanto, através de alguns incentivos o governo federal pretende transferir a demanda de assistência à saúde para o setor privado, e é nisso que reside o problema que quero destacar nesta dissertação. Desta forma, o Estado promove a competição no segmento privado de saúde e diminui a sua responsabilidade constitucional de garantir saúde pública à população.

Para demonstrar este problema, procedo neste capítulo à análise de dois meios pelos quais este problema se manifesta: i) o contrato do Estado com o setor privado através das Organizações Sociais de Saúde; ii) alguns incentivos fiscais nocivos à saúde pública contidos no conceito de Gasto Tributário.