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CAPÍTULO II – DA MEDICINA PREVIDENCIÁRIA AO SUS

4) O Sistema Único de Saúde

4.1) O SUS na Constituição Federal de 1988.

A institucionalização de um Sistema Único de Saúde, público, universal e gratuito, foi possível graças à canalização das reivindicações do movimento sanitarista para a Constituição Federal promulgada em 1988, tida como “Constituição Cidadã”. Como foi dito, a luta dos sanitaristas foi parte da luta pela redemocratização do país. É historicamente relevante o fato de que as forças políticas de resistência à ditadura militar, reivindicadoras da justiça social e dos direitos dos cidadãos, tenham se deslocado para a Assembleia Nacional Constituinte (ANC).

Há consenso na literatura acerca das políticas sociais no Brasil sobre a inovação da Constituição de 1988, no que se refere à consolidação do Estado de Bem Estar no país, com atraso em relação aos países centrais (Fagnani, 2005 e 2007; Delgado, et.al., 2009; Medeiros, 2001). O documento, inspirado nas políticas dos Welfare States europeus mais avançados, tem como um de seus pontos fortes a formulação das diretrizes da Seguridade Social, presentes nos artigos 194 e 195. Foi a primeira Constituição brasileira a usar este termo, que

supõe o Estado como garantidor do direito universal a um padrão mínimo de vida, independente de contribuição prévia.

O termo “Seguridade Social” já havia sido definido em 1952, na Organização Internacional do Trabalho (OIT), como uma rede de políticas que garantem a proteção aos cidadãos expostos a determinados riscos sociais 20. A Constituição de 88 coroou a Seguridade Social como organizadora da proteção social no Brasil, que é direito do cidadão e responsabilidade do Estado21. Com base em diretrizes democráticas, as políticas de Seguridade pareciam caminhar rumo à inclusão e à redução da desigualdade social.

Mantendo o foco na questão da saúde e tendo em vista, por um lado, o longo processo de reformas e de luta por um sistema de saúde democrático – processo que se insere na redemocratização da República – e, por outro, o pacto entre setores progressistas e conservadores na transição para a Nova República, podemos dizer que foi constituído um sistema de saúde peculiar. O texto constitucional, ao mesmo tempo em que não deixou de envolver o setor privado de saúde, abrangeu muitas das reivindicações do movimento sanitarista. Em meio à crise da dívida e às recomendações recessivas dos organismos internacionais, é de se admirar a promulgação de um sistema de saúde universal, integrado, municipalizado e participativo.

As principais diretrizes do SUS estão contidas nos artigos 196 a 200 da Constituição. Seguindo a lógica da Seguridade, estabeleceu-se que:

“Art. 196: a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 1988).

Três bandeiras fundamentais pelas quais lutou o movimento sanitarista foram incorporadas: a descentralização, a integralidade do atendimento e a participação da comunidade. Por outro lado, o artigo 199 permite a participação da iniciativa privada na

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A definição completa dada pela OIT, que se encontra em Delgado, et.al., 2009, p.22, é: “(...) proteção que a sociedade proporciona a seus membros, mediante uma série de medidas públicas, contra as privações econômicas e sociais que, de outra maneira, derivariam do desaparecimento ou da forte redução de seus rendimentos em consequência de enfermidade, maternidade, acidente de trabalho, enfermidade profissional, desemprego, invalidez, velhice e morte, bem como da proteção em forma de assistência média e de apoio a famílias com filhos”.

21 Além da saúde pública, universal e gratuita através da criação do SUS, a Seguridade Social nos moldes da Carta de 1988 englobou a Previdência Social, com inclusão da Previdência Rural, de cunho contributivo e a Assistência Social, seletiva e não contributiva, com destaque para o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Além disso, ainda incluiu o seguro-desemprego, mas com definições de financiamento muito frágeis.

assistência à saúde de forma complementar, tendo preferência as opções públicas, filantrópicas e demais organizações sem fins lucrativos. Ou seja, existe a possibilidade do Estado contratar serviços de empresas privadas com fins lucrativos, porém, não poderiam ser destinados auxílios públicos diretos e subsídios a elas. Além disso, estava vetada a participação do capital estrangeiro no setor de saúde – esta decisão foi alterada pela lei 13.097 de 2015 e será comentada adiante.

Os cinco artigos constitucionais sobre a saúde oferecem as diretrizes gerais sobre as quais deve se organizar o setor. Porém, é a Lei Orgânica da Saúde (LOS - lei n. 8.080) que dispõe detalhadamente sobre o funcionamento, a organização e o financiamento da assistência à saúde22. Esta lei foi promulgada apenas em setembro de 1990, contendo 55 artigos e 26 vetos do então presidente Fernando Collor, e é revista a cada cinco anos.

Quanto aos princípios do SUS, a LOS segue a CF no que se refere à saúde ser um direito fundamental do ser humano e obrigação do Estado, à universalidade, à integralidade e à participação popular. Além disso, incorpora o conceito de saúde em seu sentido amplo, como queriam os sanitaristas:

“Art 3º: Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do país, tendo a saúde como determinantes condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (Brasil, 1990b).

Destaco também o artigo 6º, parágrafo 3º, que define as atividades relacionadas à saúde do trabalhador, que está submetido aos riscos do processo de trabalho. Esta medida relaciona-se à integralidade do acesso à necessidade de humanização da assistência médica, reivindicações persistentes dos sanitaristas.

Sobre a gestão descentralizada, a LOS define os papeis da União, dos Estados e Distrito Federal e dos municípios. No âmbito nacional, o órgão gestor é o Ministério da Saúde e a ele competem as atividades relacionadas à formulação de políticas, definições de normas e critérios, coordenação e avaliação geral do sistema, planejamento e repasse de recursos aos níveis inferiores. Nos estados e no DF, as Secretarias de Saúde devem basicamente prestar apoio técnico aos municípios e atuar complementarmente à União nas atividades de coordenação, normatização e vigilância que sejam necessárias dentro dos estados, além de

22

A lei 8.080 foi complementada pela lei 8.149, promulgada em dezembro de 1990 após a mobilização do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) contra a série de vetos do presidente Collor à primeira lei. (Dowbor, 2009)

repassar recursos aos municípios. A ênfase recai sobre o município, que é o nível responsável pela execução direta dos serviços de saúde, gestão direta das instalações públicas e celebração dos contratos e convênios com o setor privado.

Quanto à atuação do setor privado, a LOS reforça que é permitida sua atuação quando as disponibilidades do SUS não forem suficientes para garantir a assistência à população. Segundo o artigo 25, há preferência pelas entidades filantrópicas e sem fins lucrativos. No artigo 46, está previsto que o SUS incentive o setor privado a investir em ciência e tecnologia. Quanto ao financiamento do sistema, o SUS deve receber recursos do Orçamento da Seguridade Social (OSS)23 para constituir o Fundo Nacional de Saúde (FNS). O montante do FNS é transferido aos estados e municípios segundo estes critérios, descritos no artigo 35 da LOS:

“i) perfil demográfico da região; ii) perfil epidemiológico da população a ser coberta; iii) características quantitativas e qualitativas da rede de saúde na área; iv) desempenho técnico, econômico e financeiro no período anterior; v) níveis de participação do setor saúde nos orçamentos estaduais e municipais; vi) previsão do plano quinquenal de investimentos na rede; vii) ressarcimento do atendimento a serviços prestados para outras esferas do governo” (Brasil, 1990b)

Para resumir o arcabouço legal do Sistema Único de Saúde e concluir esta seção, segue um quadro com as funções, os princípios fundamentais do SUS e suas diretrizes tecnogerenciais, sintetizados por Carvalho (2013).

Quadro 4 – O SUS: funções, diretrizes e princípios fundamentais e tecnogerenciais

FUNÇÕES DO SUS DIRETRIZES E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DIRETRIZES E PRINCÍPIOS TECNOGERENCIAIS Regulação (estabelecer as

regras para os sistemas público e privado)

Universalidade (para todos, sem distinções)

Descentralização (de recursos e responsabilidades) Fiscalização e controle (avaliar; comparar a Igualdade (sem discriminação ou

Direção única (em cada

23 Segundo o artigo 11 da Lei Orgânica da Seguridade Social (lei n. 8.212 de 1991), o Orçamento da Seguridade Social a nível federal é composto por receitas da união, contribuições sociais e outras fontes. As contribuições sociais provêm das empresas, incidindo sobre a folha de pagamento, o faturamento e o lucro, dos empregadores domésticos, dos trabalhadores, e dos concursos de prognósticos (Brasil, 1991).

expectativa com a realidade)

atendimentos diferenciados)

esfera de governo)

Execução (fazer as ações de saúde, através de serviços próprios ou de terceiros)

Equidade (priorizar atenção e atendimentos somente com base em necessidades de saúde)

Regionalização (cobrir os vazios regionais com serviços hierarquizados)

Intersetorialidade (diálogo entre políticas econômicas e sociais)

Hierarquização (atenção primária, secundária, terciária e quaternária) Direito à informação

(pacientes cientes sobre o seu estado de saúde)

Complementaridade do privado (valer-se do privado se esgotadas as opções públicas) Autonomia das pessoas

(liberdade de decisão dos pacientes)

Suplementaridade do privado (o setor privado pode se organizar

livremente sob o esquema de pagamento direto) Resolutividade (resolver

problemas da melhor maneira e com o menor custo)

Epidemiologia como base (estudo da morte e das doenças em determinado espaço e população)

Fonte: elaboração própria a partir de Carvalho (2013)

Em suma, o SUS é uma conquista social grandiosa. É um sistema pensado para não se limitar à assistência médica curativa, reunindo um conjunto de políticas de humanização do atendimento à saúde e promoção do bem estar em sentido amplo. O acesso é universal e

gratuito para uma população de quase 200 milhões de habitantes. Ou seja, o SUS depende de investimentos enormes do setor público para que funcione plenamente. Contudo, ele esbarrou em uma correlação de forças políticas hostis à proteção social antes mesmo de ser implantado.

4.2) A realidade do SUS: a desconstrução do plano constitucional e o subfinanciamento crônico.

A euforia com a promulgação da Constituição Cidadã durou pouco. Apenas um ano depois, a vitória eleitoral de Fernando Collor traria os primeiros obstáculos à efetivação da seguridade social no Brasil e, por conseguinte, do SUS. A coalizão política em torno da nova presidência era simpática ao discurso neoliberal, em voga há uma década nos países centrais. Em sua campanha eleitoral, Collor já anunciava a privatização de empresas estatais, a abertura irrestrita da economia e a redução da máquina pública.

Fagnani (2005) chama o período 1990-1992 de “contrarreforma truncada”, quando começaram os desmontes dos direitos assegurados na Constituição de 1988, cujas prerrogativas opunham-se às intenções de um governo privatista. O primeiro passo no sentido da desconstrução da Carta foi a tentativa de adiar a promulgação da legislação complementar à Seguridade Social, no aguardo de uma revisão constitucional. Felizmente, esta revisão não ocorreu devido ao processo de impeachment.

Todavia, para sancionar a Lei Orgânica da Saúde, em 1990, o presidente Collor vetou 26 itens da mesma. Destaco três deles. Em primeiro lugar, o veto ao artigo 11, que previa a existência, em cada nível de governo, da Conferência de Saúde e do Conselho de Saúde, órgãos colegiados que materializariam os princípios de participação política e controle social, a fim de aproximar os cidadãos à gestão do sistema, tão reivindicados pelos sanitaristas. O argumento usado para o veto é emblemático: “(...) são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre a criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública” (Brasil, 1990a, p.2).

Os outros dois vetos selecionados mostram a clara oposição do governo à estabilidade do financiamento do SUS. Os parágrafos 2º e 3º do artigo 33 exigiam que os recursos do FNS fossem transferidos ao SUS direta, regular e automaticamente, de acordo com cronograma aprovado pelo Conselho de Saúde. Collor os vetou e deu a justificativa de que eram “minúcias impróprias à lei”, e que o veto justificava-se “em nome do interesse público” (Brasil, 1990a, p.8-9). Por fim, o artigo 48 asseguraria que o conjunto dos municípios não recebesse menos do que 45% dos recursos do FNS, aumentando conforme a descentralização do sistema

gerasse maiores despesas. A justificativa para o veto diz que seria inconstitucional determinar percentuais e critérios para a destinação dos recursos, cuja definição seria competência das Leis de Diretrizes Orçamentárias e definida de acordo com as prioridades da Administração Pública Federal (Brasil, 1990a, p.14-15).

Em 1991, a Norma Operacional Básica número 1 (NOB n. 1/91), que dispôs sobre a descentralização do sistema de saúde, reforçou o Inamps – símbolo da medicina previdenciária de base privada no regime militar! A NOB centralizou na presidência do Inamps os procedimentos necessários à implantação do SUS, incluindo transferência de recursos e pagamentos para todos os prestadores de serviços de saúde do país (Fagnani, 2005, p.413). Sem dúvidas, o governo Collor deixou clara sua resistência ao SUS prejudicando a estruturação estável e democrática do sistema, mas a contrarreforma não parou no impeachment.

Na gestão de Itamar Franco, o Fundo de Previdência e Assistência Social (FPAS), que como parte do OSS, deveria favorecer também o sistema de saúde, foi integralmente vinculado aos benefícios da previdência, limitando o financiamento do SUS (Fagnani, 2005, p.412). Logo depois, o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) reestruturou a orientação macroeconômica do país, com vistas à estabilidade monetária. Foi adotado o “tripé” macroeconômico ortodoxo (metas de superávit, metas de inflação e câmbio flutuante), que conflita com a implantação das políticas sociais ao limitar austeramente os gastos públicos, sobretudo os gastos sociais. O gasto do governo federal com saúde decresceu como percentual do gasto federal social, de 1995 a 2002 (Fagnani, 2005, p.457). Ao mesmo tempo, parte dos recursos destinados à seguridade social pode ser desvinculada da mesma, graças à criação do Fundo Social de Emergência (FSE), hoje chamado de Desvinculação dos Recursos da União (DRU).

Outro elemento de conflito foi a Reforma de Estado, que veio para reduzir a máquina pública, restringindo as bases institucionais necessárias para a efetivação das conquistas sociais promulgadas em 1988. Deixo a análise da Reforma do Estado para o último capítulo

deste trabalho.

Nos oito anos de presidência de Fernando Henrique Cardoso, a contrarreforma ocorreu por meio de inúmeros mecanismos políticos, e as consequências sobre os indicadores sociais foram devastadoras. Todo este processo está minuciosamente documentado na tese de Fagnani (2005). Aqui, limito-me a ressaltar que a contrarreforma na década de 1990 privilegiou a focalização, em detrimento da universalidade. Afinal, políticas sociais focalizadas são muito menos dispendiosas e não infringem a austeridade fiscal. Disso decorre

a completa incompatibilidade entre a estratégia macroeconômica ortodoxa e necessidade de afirmar as bases institucionais e financeiras da seguridade social e, portanto, do SUS.

Frustraram-se todas as expectativas de que a questão da saúde seria resolvida após a vitória eleitoral do PT em 2002. Durante os mandatos de Lula (2003-2010), de fato, ocorreram avanços relevantes na questão do emprego e da transferência de renda (ainda que o carro-chefe, o Bolsa Família, seja uma política focalizada). No entanto, não houve nada revolucionário no setor da saúde pública. Existiu um esforço institucional de incrementar os recursos para a atenção primária, através do “PAC da saúde”, em 200824. Recentemente, já no primeiro governo Dilma (2011-2014), o programa “Mais Médicos” conseguiu ampliar a oferta de médicos generalistas pelo país, incluindo as áreas mais carentes de atendimento, como comunidades indígenas25. No entanto, quaisquer medidas não passarão de paliativos enquanto não for resolvida a questão do financiamento do Sistema Único de Saúde!

O SUS continua sem bases estáveis de financiamento. A CPMF, contribuição que era transferida integralmente ao FNS, foi extinta em 2007. A Emenda Constitucional n. 29, de 2000, que pretende assegurar percentuais mínimos na transferência de recursos fiscais para a saúde pública, ainda não foi regulamentada por Lei Complementar. Os governos do PT tampouco enfrentaram a questão dos privilégios ao setor privado de saúde, a quem muito interessa o sucateamento do SUS, e é fonte de influência dentro das duas casas legislativas do Brasil. Hoje, em 2016, em meio à crise político-econômica, as perspectivas são ainda mais desanimadoras.

Por tudo isso, a realidade não condiz com o planejado. É evidente o descontentamento dos usuários e dos próprios militantes do movimento sanitarista em relação ao sistema de saúde brasileiro. Em entrevista a pesquisadores da Fiocruz (Cueto et.al., 2014), a médica sanitarista Ligia Bahia revelou alguns motivos da decepção com o sonho de um sistema de saúde universal e inclusivo. Sintetizo os pontos mais relevantes:

 Em primeiro lugar, Ligia diz que o SUS perdeu o caráter multipartidário e os programas de saúde têm sido associados aos partidos políticos dos governos em que foram implantados.

 Não se concretizou a proposta da participação popular através de conselhos autônomos. O que há hoje são conselhos governamentais, tornando a representação popular apenas instrumental.

24 Sobre o programa “Mais Saúde”, conhecido como “PAC da Saúde”, consultar:

http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pacsaude/index.php. Acessado em 26/04/2016.

 Com o modelo de Regime Jurídico Único, os regimes de trabalho no setor de saúde foram unificados com base na escolaridade. Isso favorece algumas categorias, mas desfavorece outras. Por exemplo, médicos e enfermeiros com ensino superior têm a mesma remuneração. Para um médico é desinteressante trabalhar no SUS, uma vez que suas expectativas de ganho são maiores na saúde suplementar.

 Os serviços do SUS perderam qualidade.

 Os governantes encaram o SUS como um sistema “para pobres”, o que justifica a desoneração de quem pode pagar. Ou seja, ignoram a igualdade e a universalidade.

 “São duas políticas: uma para pobre, outra pra trabalhador” (Cueto et al., 2014, p.103). Isso, associado ao êxito das cooperativas médicas, fez com que o vínculo de trabalho voltasse a ser determinante do acesso a um tipo diferenciado de assistência médica.

 Faltam recursos para o SUS.

 Em destaque, a observação de Lígia Bahia que considero mais importante diz respeito à sinergia entre Estado e mercado. A médica destaca o fenômeno de conglomeração cofinanciada com política pública e diz: “É o Estado que cria o mercado” (Cueto et al., 2014, p.104).

Estas não são as únicas decepções encontradas na literatura sobre o SUS. Há ainda outros problemas apontados recorrentemente pelos estudiosos da saúde no Brasil, como o subfinanciamento crônico, a judicialização da saúde, a ênfase nos setores complementar e suplementar, a segmentação dos planos privados, o gasto tributário, e o expressivo crescimento do setor privado lucrativo26. Não se tratam apenas de mecanismos que “contornam” as prerrogativas legais. Por exemplo, recentemente, o parágrafo 3º do artigo constitucional 199, que impedia a participação de capital estrangeiro na saúde, foi sumariamente ignorado. A lei 13.097 de 2015 incluiu na LOS a permissão da participação direta ou indireta do capital estrangeiro na assistência à saúde, nos seguintes termos:

“Art. 23: É permitida a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde nos seguintes casos. I) doações de organismos internacionais

26 O gasto tributário e o setor complementar, especificamente as Organizações Sociais (OS), serão analisados à parte, no capítulo IV desta dissertação.

vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos; II) pessoas jurídicas destinadas a instalar, operacionalizar ou explorar: a) hospital geral, inclusive filantrópico, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada; e b) ações e pesquisa de planejamento familiar; III) serviços de saúde mantidos, sem finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social; e IV) demais casos previstos em legislação específica.” (BRASIL, 1990b. Artigo alterado pela lei 13.097, de 2015. Grifo meu.)

Ciente de que a questão financeira não é o único eixo estratégico do sistema27, por hora, quero destacar a questão do subfinanciamento do SUS, que é um consenso entre os defensores da saúde pública e tem sido cada vez mais citado nos textos acadêmicos (Ocké- Reis, 2008; Ocké-Reis, 2012; Carvalho, 2013; Santos, 2014; Costa et al., 2014). É um subfinanciamento crônico porque não corresponde a uma fase ruim ou a uma crise pontual, mas à precariedade das bases financeiras do sistema.

Sendo o SUS universal e gratuito para os usuários, um financiamento adequado é pré- requisito para que o sistema funcione. Segundo a Constituição de 1988, 30% do OSS deveria ser encaminhado à saúde, mas não foi definida uma fonte específica de recursos para o SUS e nem os percentuais de vinculação, que deveriam ser estipulados pelas Leis de Diretrizes Orçamentárias anuais (Ocké-Reis, 2012, p.38). Esta instabilidade foi agravada pelo desmonte do Orçamento da Seguridade Social e da captura dos seus recursos por outras áreas, como