• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – DA MEDICINA PREVIDENCIÁRIA AO SUS

3) Movimento sanitarista e reforma sanitária

setores progressistas e conservadores da sociedade brasileira – o que acabou por levar José Sarney à presidência, com a morte de Tancredo Neves – a Constituição de 1988 reestabeleceu os direitos civis e políticos e instituiu um sistema de Seguridade Social. Como nossa análise limita-se ao caso da saúde, é preciso esmiuçar o papel do movimento sanitarista na luta pela inclusão de um sistema universal de saúde na Constituição Federal.

3) Movimento sanitarista e reforma sanitária.

A luta do movimento sanitarista inseriu-se no processo de redemocratização do país. Os sanitaristas formaram um bloco de oposição à ditadura muito aguerrido e contribuíram para a construção de um novo projeto democrático para o Brasil. O discurso da Nova República incluiu as pautas que os defensores da saúde pública reivindicavam desde os anos 70. Não se tratavam de sugestões restritas à gestão da saúde, mas abraçavam os princípios da transição democrática, como o nacionalismo, o controle social, a participação política, a política econômica redistributiva, a justiça e o desenvolvimento social.

O termo “movimento sanitarista” não se cunhou por acaso. A Reforma Sanitária por ele defendida tinha um forte teor político-ideológico, daí a noção de movimento. Trata-se de um grupo composto no início por médicos e pesquisadores que, desde a década de 1970, lutavam por um sistema de saúde universal no Brasil. Mesmo durante o regime militar, o movimento logrou construir espaços de debate e divulgação de ideias, dos quais se destacam o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), criado em 1976, e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), de 1979. Além disso, a revista organizada pelo CEBES, Saúde em Debate, tornou-se o principal meio de disseminação dos propósitos do movimento (Cohn, 1989).

Sonia Fleury (1987) explica a matriz teórico-conceitual do grupo sanitarista, partindo da caracterização de Sergio Arouca sobre a medicina preventiva como movimento ideológico (Arouca, 1975, apud Fleury Teixeira, 1987, p.94). Ou seja, partiu-se de uma crítica sobre as inadequadas práticas médicas vigentes e, diante dela, propôs-se a medicina preventiva como alternativa. Esta linha de pensamento deu origem às discussões do movimento sanitarista brasileiro, cuja matriz teórico-conceitual é definida por Sonia Fleury da seguinte forma:

Quadro 3 – Matriz teórico-conceitual do movimento sanitarista.

Área do conhecimento

Saúde coletiva; “uma originalidade nacional face à heterogeneidade de denominações habituais, como saúde pública, medicina social, medicina preventiva, medicina comunitária.” (Fleury Teixeira, 1987, p.94)

Objeto

O coletivo; “o meio objeto privilegiado das práticas de saneamento ambiental e do específico conhecimento que as fundamenta; o agente patogênico e seu campo de expansão e contenção reconstruídos a partir do saber biológico; o social como efeito do coletivo estruturado de práticas” (Dounangelo, 1983, apud Fleury Teixeira, 1987, p.95)

Metodologia

Método histórico-estrutural; refere-se à necessidade de analisar as manifestações históricas concretas do objeto em questão. Fonte: Fleury Teixeira (1987). Elaboração própria.

Desta forma, ficou claro o caráter ideológico do movimento. Trata-se de um agente político porque, ao criticar a prática médica mercantil, incapaz de atender às demandas de saúde da comunidade, o movimento procurava agir sobre a realidade social através da reorganização das correlações de forças postas na sociedade. Por isso, empreendia uma luta contra hegemônica, disseminando a consciência sanitária. Neste sentido, a luta dos sanitaristas foi parte da luta pela redemocratização da sociedade brasileira no fim do regime militar (Fleury Teixeira, 1987).

Outro ponto a ser dito sobre o movimento é que ele entende a saúde em sentido amplo. A saúde e a doença são parte das interações entre vários elementos da vida em sociedade, como moradia, transporte, renda, educação, alimentação e condições de trabalho. Além disso, o adoecimento é entendido um problema social que encontra sua causa muitas vezes no processo de trabalho. Por isso, não bastam as ações curativas. O novo sistema de saúde deveria prezar pela integralidade do atendimento, garantindo assim a promoção e a proteção

da saúde, além da sua recuperação. Assimilar esta noção ampliada de saúde é tomar consciência sanitária.

A relação orgânica entre saber e política deu-se em fases. De início, a Reforma Sanitária era um tema que ocupava o espaço acadêmico, onde se desenvolveu e evoluiu a concepção teórica apresentada. Mais tarde, o grupo buscou integrar o trabalhador, tendo em vista o adoecimento como processo social. Nesta primeira fase, já ficaram claras as prerrogativas do movimento:

“(...) formulou-se a proposta de um sistema único de saúde, público, socializado, universal, integrado, de atenção integral e planejado de acordo com as demandas existentes, utilizando, de forma hierarquizada e regionalizada, os recursos disponíveis.” (Fleury Teixeira, 1987, p.96).

Então, era necessário disseminar a consciência sanitária para além da academia. Entraram na luta os agentes de saúde, os sindicatos médicos, os movimentos sociais. Esta ampliação foi possível devido ao processo de redemocratização, que aos poucos reativou a participação civil. Com o fim do regime militar, o Congresso tornou-se um novo foco de atuação do movimento sanitarista, que também chamava os políticos para o debate. Conforme as proposições dos sanitaristas iam ganhando espaço, os produtores privados de saúde, ameaçados, juntaram-se à discussão, constituindo-se em um elemento oposicionista. Por fim, a terceira fase da evolução do movimento constitui na execução da sua estratégia: ocupar os espaços institucionais da Nova República. Alguns nomes do movimento conseguiram ocupar cargos públicos no Ministério da Saúde, no Inamps e outros postos relacionados com a política de saúde. Isso explica porque muitas das propostas de reforma sanitária tiveram origem no próprio Executivo (Cohn, 1989).

De acordo com Dowbor (2009), constituiu-se uma relação mútua entre esta a burocracia progressista e o governo. A autora usa como exemplo desta simbiose o Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (Piass), de 1976. O Piass foi vantajoso para as instituições responsáveis ao simplificar os serviços e baixar os custos. Do lado do movimento sanitarista, o programa conseguia oferecer atenção primária a uma parcela da população antes excluída, principalmente na região nordeste.

Apesar do imenso poder de organização, articulação e divulgação de ideias, o movimento sanitarista não foi homogêneo. As divergências entre as visões do MS, do Inamps e do MPAS refletiram-se no movimento quando seus líderes ocuparam cargos nestes órgãos

(Fagnani, 2005; Fleury Teixeira, 1987). A grande disputa girou em torno da “via legislativa”, defendida pelo MS, e a “via administrativa” do MPAS.

Em linhas gerais, a estratégia reformista do MS era incorporar o Inamps, unificando o sistema por cima, e criando um comando único saúde em cada nível de governo, totalmente separado da Previdência. O ministério organizou a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, para divulgar esta estratégia, bem como a sua concepção ampliada de saúde, o acesso universal e gratuito e a necessidade de uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC) para legislar sobre estas posições. Independente das disputas entre MS e MPAS, a VIII Conferência foi um evento importante para ampliar o debate público e ressoar as propostas do movimento sanitarista na futura ANC. O MS também organizou uma Comissão Nacional de Reforma Sanitária, formuladora de propostas concretas para um novo sistema de saúde, das quais uma boa parte foi adotada na Constituição de 198818.

Já a via administrativa do MPAS defendia o aprofundamento da descentralização através das Ações Integradas de Saúde (AIS)19. Os defensores da via administrativa também pretendiam construir um sistema único e universal, mas acreditavam que as AIS levariam a ele. Desta forma, em 1987 o MPAS desenvolveu o Sistema Único Descentralizado de Saúde (SUDS), um aprofundamento das AIS, para definir os papeis dos entes federados no planejamento e execução da política de saúde, transferindo competências da União para os estados e municípios. De fato, o modelo de descentralização do SUDS foi considerado pela ANC.

Apesar dos avanços institucionais destas iniciativas, ainda faltava conformar um sistema sólido. Cohn (1989) afirma que estas experiências foram vulneráveis e suscetíveis a interesses clientelísticos:

“Não só os convênios são celebrados obedecendo a critérios ditados por interesses políticos imediatos – a lógica da barganha – como a implementação prática das medidas de saúde, agora conforme o novo modelo, traduz-se das mais diferentes maneiras. A integração das AIS traduziu-se em grande medida num aumento da produção de serviços e a descentralização do SUDS numa mera desconcentração. Assim, ambas as experiências pouco significaram para uma

18

Os dois documentos formulados pela Comissão foram: “Propostas para o componente saúde na nova Constituição brasileira” e “Proposta de conteúdo para uma nova lei do Sistema Nacional de Saúde”. Ambos estão anexados no texto de Fleury Teixeira (1987).

19 O Programa AIS foi um mecanismo de convênios originado no Plano Conasp, instituído pelo MPAS. Os convênios começaram em 1983 e eram celebrados entre MPAS, MS e Secretarias Estaduais de Saúde. A Previdência passava recursos aos Estados que, por sua vez, repassavam aos municípios. O financiamento do Programa era tripartite - União, estados e municípios (Cohn, 1989, p.127-128).

descentralização efetiva das esferas de poder na gestão da saúde.” (Cohn, 1989, p.128).

Como lembra Dowbor (2009), a reforma “não privatizou nem estatizou o setor, (...) iniciou a descentralização e a universalização de acesso integral a todos os serviços e manteve o prestador privado como fornecedor de serviços públicos” (Dowbor, 2009, p.187). De qualquer forma, o Programa AIS, o SUDS e as propostas do Ministério de Saúde trilharam um caminho em direção ao Sistema Único de Saúde celebrado na Carta de 1988, universal e gratuito, intenção principal do movimento sanitarista.

Antes de passar à análise do SUS, quero expor uma observação interessante de Amélia Cohn (1989). A autora sugere que o fato do movimento ter priorizado demais a “engenharia institucional” da reforma fez com que ele tenha perdido o caráter político e seu poder de luta ideológica. Isso teria prejudicado o enraizamento nos atores sociais da concepção democrática e ampliada de acesso à saúde. Temos que considerar também o caráter pactuado da redemocratização do país, limitando o alcance da Seguridade Social. É como se tivéssemos um excelente plano, mas faltassem sujeitos a lutarem por ele.