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O estado e o setor privado de saúde no caminho da desestruturação gradual do SUS

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INSTITUTO DE ECONOMIA

LETÍCIA BONA TRAVAGIN

O ESTADO E O SETOR PRIVADO DE SAÚDE NO CAMINHO DA

DESESTRUTURAÇÃO GRADUAL DO SUS.

CAMPINAS

2016

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“A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis. A injustiça social é a negação do Governo e a condenação do Governo.” (Ulysses Guimarães. Discurso proferido na Assembleia Nacional Constituinte em 27 de julho de 1988).

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, que não mediram esforços quanto à minha educação e não limitaram minhas escolhas.

Às amigas de infância, às amigas que conheci em Campinas e ao amigo-namorado, por toda a paciência e compreensão em um período não tão fácil. Sem surpreender a quem me conhece, não posso deixar de citar Mingau, o gatinho que deixou minha vida mais leve nos últimos anos.

Aos meus professores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e do Instituto de Economia da UNICAMP, que me instigaram a pensar os valores humanos e políticos, como a justiça social e a solidariedade.

Ao professor Eduardo Fagnani, pela orientação deste trabalho.

Aos professores Hugo Dias, Denis Maracci Gimenez e Nelson Rodrigues dos Santos, pelas contribuições valiosas no meu exame de qualificação e na defesa desta dissertação.

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RESUMO

Esta dissertação pretende demonstrar que o Estado brasileiro atua como promotor da expansão do setor privado da saúde, causando a desestruturação gradual e persistente do Sistema Único de Saúde (SUS). Para isso, foi preciso percorrer quatro temas, que correspondem aos quatro capítulos deste trabalho.

Em primeiro lugar, trato da consolidação dos Welfare States no período conhecido como “anos de ouro” do capitalismo, logo após a 2ª Guerra Mundial. Em contrapartida, ressalto que a ideologia neoliberal, muito forte nos países centrais na década de 1980 e renovada com a crise de 2008, penetrou nos Estados e alterou suas instituições, provocando a erosão dos grandes sistemas de proteção social e, com eles, os sistemas nacionais de saúde.

O segundo capítulo dirige o olhar ao Brasil e à construção histórica de um sólido setor privado de saúde neste país, fortalecido no regime militar, mas que se manteve firme e influente após a promulgação da Constituição de 1988, que instituiu o SUS. Este histórico privatista contribuiu para a aceitação da retórica liberal no país.

O capítulo III dedica-se à atuação do Banco Mundial nos anos 90 como promotor de uma agenda social neoliberal para países periféricos. Aqui, analiso especificamente as recomendações do Banco para a gestão da saúde nestes países. O Brasil foi um foco importante devido à criação de um sistema de saúde pública universal e gratuito, severamente criticado pelos neoliberais.

Por fim, o último capítulo desta dissertação expõe dois dos mecanismos pelos quais o Estado brasileiro favorece o setor privado de saúde: as Organizações Sociais de saúde (OS) e o Gasto Tributário em saúde (GT). A entrada das OS no Brasil foi fruto da Reforma do Estado de 1995, que trouxe uma série de instrumentos de flexibilização e redução do aparato estatal. O GT, por sua vez, contém elementos que incentivam principalmente a demanda por consumo de serviços de saúde privados.

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ABSTRACT

This dissertation aims to demonstrate that the Brazilian state acts in favor of the expansion of the private health sector, causing the gradual and persistent breakdown of the Unified Health System (SUS, in portuguese). For this, we need to explore four themes, corresponding to the four chapters of this work.

First, I treat the consolidation of Welfare States in the period known as "golden years" of capitalism, after the 2nd World War. On the other hand, I point out that the neoliberal ideology, very strong in the core countries in the 1980s and renovated with the 2008 crisis, entered the States and changed its institutions, eroding the great social protection systems and, with them, the national health systems.

The second chapter looks to Brazil and the historic construction of a strong private health sector in this country, strengthened by the military regime, but that remained firm and influential after the promulgation of the Constitution of 1988, which established the SUS. This privatist history contributed to the acceptance of liberal rhetoric in the country.

Chapter III is dedicated to the World Bank's work in the 1990s as a promoter of a neoliberal social agenda for peripheral countries. Here, I specifically analyze the Bank's recommendations for health management in these countries. Brazil was a major focus by creating a universal and free public health system, severely criticized by neoliberals.

Finally, the last chapter of this dissertation exposes two of the mechanisms by which the Brazilian government favors the private health sector: the Health Social Organizations (SO) and the Tax Expenditures on health (TE). The entrance of the SO in Brazil was a result of the 1995 State Reform, which brought a number of instruments of flexibility and reduction of the state apparatus. TE, in turn, contains elements that mainly encourage the consumption of private healthcare services.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRASCO – Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva AID – Associação Internacional de Desenvolvimento

AIH – Autorização de Internação Hospitalar AIS – Ações Integradas de Saúde

ANC – Assembleia Nacional Constituinte ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

BIRD – Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento BM – Banco Mundial

CAP – Caixa de Aposentadoria e Pensões CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde CEME – Central de Medicamentos

CF – Constituição Federal

CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

CNES – Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde

COFINS – Contribuição para Financiamento da Seguridade Social CONASEMS - Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido

DALY – Disability-adjusted life year

DATAPREV – Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social DGT – Demonstrativo de Gastos Tributários

DNS – Departamento Nacional de Saúde e Assistência Médico-Social DRU – Desvinculação de Recursos da União

FED – Federal Reserve

FINSOCIAL – Fundo de Investimento Social FMI – Fundo Monetário Internacional

FNS – Fundo Nacional de Saúde

FPAS – Fundo de Previdência e Assistência Social FSE – Fundo Social de Emergência

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FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor FUNRURAL – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural GATT – General Agreement on Tariffs and Trade

GK – Gesetzuche Krankenversicherung (sistema de saúde alemão) GT – Gasto Tributário

IAP – Instituto de Aposentadoria e Pensões

IAPAS – Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

IED – Investimento Estrangeiro Direto

INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social INPS – Instituto Nacional de Previdência Social

IPASE – Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado IPCA – Índice de Preços ao Consumidor Amplo

IRPF – Imposto de Renda de Pessoa Física IRPJ – Imposto de Renda de Pessoa Jurídica LBA - Fundação Legião Brasileira de Assistência LOPS - Lei Orgânica da Previdência Social LOS – Lei Orgânica da Saúde

MARE - Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado MES – Ministério da Educação e Saúde

MF – Ministério da Fazenda

MPAS – Ministério de Assistência e Previdência Social MS – Ministério da Saúde

NHS – National Health Service (sistema de saúde inglês) NPM – New Public Management

OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OIT – Organização Internacional do Trabalho

OMC – Organização Mundial do Comércio ONA – Organização Nacional de Acreditação ONG – Organização Não Governamental OS – Organização Social

OSS – Orçamento da Seguridade Social

PACS - Programa dos Agentes Comunitários de Saúde

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PIASS - Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento PIB – Produto Interno Bruto

PIS – Programa de Integração Social

PLOA – Projeto de Lei Orçamentária Anual

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PND – Plano Nacional de Desenvolvimento

PRONAS/PCD - Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência

PRONON - Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira

PSF – Programa Saúde da Família PT – Partido dos Trabalhadores RFB – Receita Federal do Brasil

SAMDU – Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência SECONCI – Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo SIA – Sistema de Informações Ambulatoriais

SIH – Sistema de Informações Hospitalares

SINPAS - Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social SNS – Sistema Nacional de Salud (sistema de saúde espanhol) SUDS – Sistema Único Descentralizado de Saúde

SUS – Sistema Único de Saúde WHO – World Health Organization

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 1

CAPÍTULO I – TENSÃO ENTRE ESTADO E MERCADO: CRÍTICA NEOLIBERAL E EROSÃO DA PROTEÇÃO SOCIAL. ... 4

1) O debate entre Estado e Mercado ... 4

2) A construção dos Welfare States. ... 6

3) Diferentes experiências de Welfare States e a tipologia de Esping-Andersen. ... 10

4) A crise do Welfare State e a ofensiva neoliberal ... 14

5) O novo acordo político pós-Welfare States ... 21

6) Austeridade fiscal e redução dos Sistemas Nacionais de Saúde europeus. ... 23

CAPÍTULO II – DA MEDICINA PREVIDENCIÁRIA AO SUS. ... 28

1) Antecedentes – a saúde emerge como questão social... 28

2) A medicina previdenciária e o domínio do setor privado de saúde ... 31

2.1) A gestação do sistema ... 31

2.2) A medicina previdenciária consolidada ... 35

2.3) A crise do esquema médico-previdenciário. ... 38

3) Movimento sanitarista e reforma sanitária. ... 40

4) O Sistema Único de Saúde ... 44

4.1) O SUS na Constituição Federal de 1988. ... 44

4.2) A realidade do SUS: a desconstrução do plano constitucional e o subfinanciamento crônico. ... 49

CAPÍTULO III – A INFLUÊNCIA DO BANCO MUNDIAL SOBRE A GESTÃO DA SAÚDE. ... 58

1) Breve trajetória do Banco Mundial: de Bretton Woods à difusão do neoliberalismo. .. 58

2) Análise dos documentos do Banco Mundial. ... 63

2.1) “Brasil: novo desafio à saúde do adulto” (1991) ... 63

2.2) “World Development Report 1993: Investing in Health” (1993) ... 66

2.3) “A organização, prestação e financiamento da saúde no Brasil: uma agenda para os anos 90” (1995). ... 70

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CAPÍTULO IV – DOIS ELEMENTOS DA CORROSÃO DO SUS: AS

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE E O GASTO TRIBUTÁRIO. ... 80

1) As Organizações Sociais (OS) ... 81

1.1)A Reforma Gerencial do Estado de 1995. ... 81

1.2)Publicização e Organizações Sociais ... 86

1.3)Como as Organizações Sociais de Saúde afetam os princípios do SUS? ... 87

2) O Gasto Tributário em saúde ... 95

2.1) Conceito, categorias e dados. ... 95

2.2) Como estes incentivos fiscais favorecem o mercado de saúde no Brasil e quais as contradições em relação ao SUS constitucional? ... 101

CONCLUSÃO ... 106

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INTRODUÇÃO

O objetivo geral desta dissertação é demonstrar que o Estado brasileiro atua como promotor da expansão do setor privado da saúde, causando a desestruturação gradual e persistente do Sistema Único de Saúde (SUS). Para ilustrar esta hipótese, dentre uma série de incentivos governamentais ao setor privado, escolhi analisar dois deles: os contratos com Organizações Sociais de Saúde (OS) e o Gasto Tributário (GT) com saúde, também conhecido como renúncia fiscal.

O contrato com as OS é um benefício direto do Estado à oferta privada de serviços de saúde, uma vez ele que transfere a associações de direito privado parte da responsabilidade de assegurar atendimento à saúde da população, além de recursos financeiros e bens físicos. Lembro que há uma diferença importante entre o contrato do SUS com instituições filantrópicas, meio previsto na Constituição, e o contrato de gestão celebrado entre estados e municípios com as OS. Por sua vez, o gasto tributário funciona como um financiamento indireto a determinados segmentos do setor privado de saúde, já que o estado deixa de arrecadar tributos ao conceder isenções e reduções nos impostos e contribuições sociais de fornecedores e usuários de bens e serviços de saúde. Desta forma, o gasto tributário inclui incentivos à oferta e à demanda do setor privado de saúde.

Contudo, dizer que o Estado favorece o setor privado é insuficiente se não compreendemos como o sistema de saúde brasileiro, que foi concebido dentro da Seguridade Social, comporta estes tipos de distorções. Para isso, é necessário percorrer a trajetória da política de saúde brasileira, que revela a solidificação de um setor privado de saúde muito grande, politicamente influente e concentrado nas regiões mais ricas do país.

No Brasil, O SUS consagrado na Constituição de 1988 sofreu os primeiros golpes já em 1990. Isso se deve a uma combinação da aceitação do discurso neoliberal pelo governo brasileiro em 1990 com o histórico privatista da saúde brasileira. Neste processo, os organismos internacionais como FMI, Banco Mundial e, mais tarde, a OMC atuaram como disseminadores da agenda neoliberal nos países periféricos, em especial os latino-americanos. O Banco Mundial elaborou documentos específicos para a gestão da saúde nos países em desenvolvimento e no Brasil, que certamente influenciaram as decisões políticas que dificultaram a implantação plena do SUS.

Não desqualifico a participação em si do setor privado no sistema de saúde; participação que, aliás, é prevista na Constituição Federal. Quero chamar a atenção para o fato

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de que existe uma captura do Estado pelo Mercado, neste caso. Toda a discussão deste trabalho está apoiada sobre o fenômeno da tensão entre Estado e Mercado, legado da crítica neoliberal à intervenção estatal na economia e às instituições públicas.

A explicação acima não representa a ordenação deste texto em capítulos. No primeiro capítulo, apresento uma discussão teórica sobre o Welfare State, a crítica neoliberal e os prejuízos a alguns Sistemas Nacionais de Saúde europeus após a crise financeira de 2008. O capítulo II trata da história do sistema de saúde brasileiro, a fim de demonstrar a força do setor privado de saúde que, embora tenha sido reforçada no regime militar, perdura independentemente do regime político-institucional do país. O capítulo III traz a análise de três documentos relevantes elaborados pelo Banco Mundial para a gestão da saúde em países subdesenvolvidos e no Brasil. No capítulo IV, estão as análises das Organizações Sociais de saúde e do Gasto Tributário com saúde.

Esclarecidos o tema, o objetivo e a construção desta dissertação, há mais um aspecto que quero introduzir.

Quando comecei a desenhar esta pesquisa, minha intenção era basicamente analisar a influência que o próprio Estado tem na deterioração do Sistema Único de Saúde, devido aos favorecimentos que este concede ao setor privado de saúde. Esta preocupação justifica-se porque é muito acirrada no Brasil a tensão entre o público e o privado desde que as elites foram confrontadas pela Constituição Cidadã. Assim, defini minha hipótese e um rumo de investigação.

Conforme avancei na pesquisa, me chamou atenção o fato de que a sociedade desconhece o que são as Organizações Sociais, diferente do Gasto Tributário, que não é completamente ignorado porque uma parcela expressiva dos cidadãos é favorecida por ele anualmente. Percebi que o termo “OS” é usado genericamente como referência a quaisquer entidades filantrópicas. Conversei com profissionais da saúde pública que não sabiam a diferença entre a gestão de estabelecimentos de saúde através de OS e dos demais filantrópicos. Além disso, esta dissertação foi escrita em meio a uma crise política e econômica significante na história do Brasil, que já impôs severas restrições orçamentárias e administrativas às políticas sociais, e agora parece seguir caminhos, se não neoliberais, profundamente privatistas. Diante disso, coloquei mais um objetivo neste trabalho: chamar a atenção para a necessidade de se estudar o avanço desregulamentado das Organizações Sociais de saúde. Hoje, o número de estabelecimentos de saúde geridos por OS ainda não salta aos olhos, mas ele tende a aumentar. Deixo os detalhes para o capítulo IV, mas adianto

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que se trata de um mecanismo de privatização muito flexível e atrativo aos níveis de governo em tempos de austeridade fiscal como o período recente.

Em suma, além do objetivo metodológico cerne desta pesquisa – repito: demonstrar que o Estado atua como promotor do setor privado de saúde, em detrimento do SUS –, esta dissertação pretende denunciar alguns aspectos danosos do avanço do setor privado na saúde pública e, possivelmente, subsidiar estudos futuros que esclareçam e divulguem a questão das Organizações Sociais não só para os economistas, profissionais de saúde e gestores de políticas públicas, mas para todos os cidadãos defensores do Sistema Único de Saúde.

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CAPÍTULO I – TENSÃO ENTRE ESTADO E MERCADO: CRÍTICA

NEOLIBERAL E EROSÃO DA PROTEÇÃO SOCIAL.

A desfiguração dos sistemas de saúde insere-se no movimento de desconstrução dos sistemas de proteção social como um todo, e esta desfiguração não é uma particularidade brasileira. Na realidade, o Brasil chegou com bastante atraso nessa história. A consolidação de grandes sistemas de proteção social é um marco dos países centrais europeus desde a primeira metade do século XX. Desta forma, eles foram os primeiros alvos da forte ofensiva neoliberal internacional na década de 1980.

O neoliberalismo impôs uma concorrência entre Estado e Mercado que não é natural destas instituições. Antes enaltecido pelo seu papel no desenvolvimento econômico, o Estado passou a ser tido como uma ameaça à liberdade da iniciativa privada. O gasto público e instituições estatais sólidas, indispensáveis para a implantação de sistemas de proteção social, são uma afronta aos neoliberais. Gradualmente, aceito pelos governos, o neoliberalismo penetrou nos Estados e os alterou estruturalmente, levando à privatização crescente dos serviços públicos como a saúde. Com a crise financeira de 2008, o conservadorismo fiscal acirrou-se nos países europeus, implicando sérias restrições aos sistemas nacionais de saúde.

1) O debate entre Estado e Mercado

Przeworski (1993) indica uma diferença fundamental entre Estado e Mercado: são instituições que alocam recursos com base em interesses distintos.

“O mercado é um sistema pelo qual recursos escassos são alocados a usos alternativos por decisões descentralizadas. Entretanto, no capitalismo a propriedade é institucionalmente distinta da autoridade: os indivíduos são simultaneamente agentes no mercado e cidadãos. Como resultado, há dois mecanismos pelos quais recursos podem ser alocados para usos e distribuídos entre os domicílios — o mercado e o Estado. O mercado é um mecanismo pelo qual os indivíduos "votam" por alocações com os recursos que possuem, recursos que sempre são distribuídos desigualmente; o Estado é um sistema que aloca recursos que não são de sua propriedade, com direitos distribuídos de modo diverso que no mercado. Nessas circunstâncias, só por um golpe de sorte os dois mecanismos conduzirão ao mesmo resultado. A alocação de recursos que os indivíduos preferem como cidadãos geralmente deixa de coincidir com a alocação a que eles chegam através do mercado.” (Przeworski, 1993, p.219)

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Resumidamente, o mercado em uma economia capitalista aloca os recursos de acordo com interesses individuais: de um lado, a busca de lucro por parte dos donos do capital, de outro, as decisões dos consumidores. O Estado, por sua vez, administra recursos escassos que não são sua propriedade privada. Em uma democracia, supõe-se que o Estado distribua os recursos de forma a minimizar a disparidade de condições de vida entre os cidadãos. Com base nisso, Estado e Mercado são instituições muito diferentes, mas não opostas. Como salientou Przeworski (1993), o indivíduo é ao mesmo tempo agente no mercado e cidadão perante o Estado.

Dahl (1993) reconhece correlação entre democracia e algum tipo de economia de mercado, afirmando que “embora nem todos os países capitalistas sejam ou tenham sido democráticos, todos os países democráticos tiveram economias capitalistas” (Dahl, 1993, p.227). Isso se justifica porque em uma democracia a liberdade abrange a troca de bens, serviços e mercadorias. No entanto, esta economia de mercado que se desenvolve com a democracia não é completamente autorregulada, por mais aceita que esta seja ideologicamente:

“(...) todo país democrático rejeitou a prática, ainda que nem sempre a ideologia, dos mercados concorrenciais não regulados. Embora seja verdade que uma economia de mercado existe em todos os países democráticos, é também verdade que em todo país democrático o mercado é modificado pela intervenção governamental” (Dahl, 1993, p.234).

O motivo é claro. No capitalismo, sistema calcado na desigualdade, os cidadãos não possuem os mesmos recursos, tampouco as mesmas informações, como supôs a Economia Neoclássica. Dentre estes recursos estão alguns fundamentais à mínima coesão social, como acesso à alimentação e a cuidados de saúde. Uma economia de mercado nula de intervenção estatal levaria a um colapso rápido da democracia.

Se o comportamento humano fosse linear, as Ciências Sociais poderiam concluir que bastaria aceitar que o Estado provesse os bens e serviços relacionados à manutenção da vida e da democracia, enquanto o Mercado estivesse livre para circular as demais mercadorias. Mas esta simplificação não é factível e há uma disputa muito grande sobre o controle de tudo que possui valor.

O neoliberalismo impôs uma concorrência entre estas instituições que não é intrínseca a nenhuma delas. Com a disseminação da ideologia na década de 1980, tornou-se necessário refletir sobre os limites da atuação do Estado sobre o mercado, devido à ferocidade com que o

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primeiro foi criticado. O neoliberalismo não se limitou a repudiar as estratégicas políticas de um estado específico, o Welfare State, mas quis desqualificar a legitimidade que a instituição Estado tem para atuar sobre a sociedade.

Dahl (1993) está correto ao afirmar que nenhum país democrático anulou o poder de intervenção estatal sobre as forças de mercado. Contudo, a crítica neoliberal ao Estado afetou a lógica de alocação de recursos deste último, bem como suas prioridades, prejudicando a proteção social e, com isso, o desenvolvimento de uma democracia plena.

2) A construção dos Welfare States.

A hegemonia dos Estados de Bem Estar Social foi um momento específico na história do capitalismo, de curta duração e limitado espacialmente, uma vez que atingiu apenas parte do antigo centro dinâmico do capitalismo, a Europa. Em termos gerais, o Welfare State foi um tipo de organização estatal específica porque respondeu às demandas da base da sociedade, e não da sua cúpula, ainda que a ordem econômica se mantivesse capitalista. Desta forma, não se tratou da superação das classes sociais, mas da minimização dos riscos sociais através da intervenção do estado nas relações econômicas.

Não pretendo fazer uma análise histórica minuciosa, mas cabe aqui uma breve exposição sobre como o liberalismo econômico clássico deu lugar à intervenção estatal na economia e a consolidação dos Welfare States europeus.

Até a 1ª Guerra Mundial, as economias organizaram-se em função do padrão ouro-libra, a expressão do liberalismo clássico comandado pela Inglaterra. A organização econômica dos países refletia suas relações de trocas com o exterior. Não havia políticas econômicas nacionais. Em outras palavras, não havia Economia Política. Com o esgotamento das reservas inglesas de ouro durante a guerra, e a decorrente insustentabilidade do padrão ouro-libra, o liberalismo econômico sofreu seu primeiro golpe.

No entanto, os Estados Unidos, país fortalecido depois da 1ª Guerra, mantiveram o padrão liberal de relações econômicas até que este fosse posto em cheque pelo colapso financeiro de 1929. A Grande Depressão iniciou o delineamento de um sistema econômico regulado nas principais economias mundiais e, com isso, políticas econômicas nacionais.

Na América, Roosevelt implantou o New Deal já em 1933, como uma estratégia deliberada de intervenção estatal na economia a fim de recuperar os efeitos da crise econômica e social pós-1929. O novo acordo econômico previa a atuação do estado como indutor do investimento e regulador das instituições financeiras, o que mais tarde seriam

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chamadas de “políticas keynesianas” com a publicação da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, em 1936. Também foi o New Deal que implantou algumas políticas de proteção social para amenizar a situação expressiva de pobreza e desemprego nos Estados Unidos dos anos 30.

Na Europa, este processo de intervencionismo estatal ocorreu em duas experiências distintas. De um lado, a crise financeira e moral pela qual passava os países mais afetados pela 1ª Guerra e pela Grande Depressão deu margem à emergência da onda de governos totalitários, reconhecidamente na Alemanha, Itália, mas também estendida à Espanha e Portugal. De fato, o nazismo e o fascismo implantaram políticas nacionais de reconstrução econômica, mas à custa da democracia. Sabe-se bem sobre a violação dos direitos fundamentais do homem neste período.

Ao mesmo tempo, na Europa nórdica dos anos 1930, consolidava-se gradativamente a Social Democracia como um sistema político preocupado com a proteção social, mas adequado à realidade de estados capitalistas1. Sobre isso, é valiosa a análise de Esping-Andersen (1985). O autor esclarece que a hegemonia da Social Democracia nos países escandinavos deveu-se à aliança firmada entre as elites rurais politicamente organizadas e o movimento de trabalhadores, na década de 1930. A princípio, havia um conflito entre estes atores: para os fazendeiros, a organização dos trabalhadores era uma ameaça, já que estes se opunham aos altos preços dos alimentos. Nos países escandinavos, este conflito entre classes transformou-se em coalizão: as elites rurais acataram reivindicações das classes trabalhadoras que, por sua vez, não poriam em cheque a acumulação capitalista. É importante destacar que os empresários rurais detinham poder político nestes países e, quando incluíram as demandas dos trabalhadores, elevaram suas pautas a questões de Estado2. Isto não ocorreu em todos os países da Europa.

“The precondition for a social democratic realingnment was therefore the presence of a political ally; electorally as well as in terms of influence, the peasantry held the key” (Esping-Andersen, 1985, p.315).

1 Desde o fim do século XIX, teóricos políticos, dentre os quais destaco Eduard Bernstein e Karl Kautsky, ocuparam-se em rever a teoria marxista, retirando dela seus elementos característicos: o conflito de classes e a revolução. Da evolução deste movimento, denominado “revisionismo”, surgiu a alternativa Social Democrata, que é reformista e antirrevolucionária: propõe um governo que atenda as massas da sociedade, sem que para isso seja necessária a superação do capitalismo.

2 Como não pretendo desagregar esta análise para todos os países nórdicos, refiro-me a eles de modo geral. Porém, cada um viveu uma experiência específica com a Social Democracia devido a fatores internos. Esping-Andersen exemplifica: o consenso em torno deste modelo político foi sólido na Noruega e na Suécia, mas mais frágil na Dinamarca, onde novas cisões no eleitorado enfraqueceram o partido social democrata dinamarquês (Esping-Andersen, 1985, p.318).

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Ou seja, segundo Esping-Andersen, o êxito da Social Democracia escandinava, que deu origem aos Welfare States mais avançados da Europa, deve-se a esta coalizão de classes. Claramente, este acordo entre patrões e empregados enfraqueceu os grupos mais à esquerda, como os socialistas e os comunistas, que defendiam a tomada do governo pelos trabalhadores e a superação das classes sociais.

Até aqui, tratamos apenas do realinhamento da política e da economia em direção à ordem econômica regulada. Contudo, o episódio fundamental que explica a crise capitalista decisiva para a construção dos sistemas nacionais de proteção social foi a 2ª Guerra Mundial. Os países nórdicos, além das condições políticas apresentadas, que já os encaminhava à proteção social, envolveram-se muito menos na Guerra do que as tradicionais potências europeias. Com o fim do conflito, Alemanha, Itália, França e Reino Unido estavam moral, física e financeiramente destruídos. Já os Estados Unidos, economia recuperada após o New Deal, foram uma espécie de “abastecedor” das nações envolvidas na 2ª Guerra, de onde saiu hegemônico política e ideologicamente para o ocidente, em um mundo dividido pela Guerra Fria.

Neste contexto, foi o governo estadunidense que definiu os rumos da economia política ocidental a partir dos anos 40. Da Conferência em Bretton Woods, em 1944, surgiu uma nova ordem econômica regulada pelo Estado. Nela, foram criadas agências multilaterais de empréstimo e coordenação dos balanços de pagamentos: o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD, que mais tarde tornou-se uma instituição do Banco Mundial) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em 1947, foi criado o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, (GATT, substituído pela OMC em 1995), responsável por organizar o comércio internacional. Originalmente, estas instituições eram braços do Estado norte americano que regulavam o trânsito mundial de dinheiro, bens e mercadorias, com vistas à estabilidade macroeconômica internacional. Estas políticas seriam impensáveis sob a égide do liberalismo.

Seria ingenuidade supor que os Estados Unidos o fizeram por benevolência. Em um mundo dividido, este país precisava recuperar seu dinamismo no capitalismo internacional, em combate ao avanço da União Soviética. Isso explica também a ajuda financeira oferecida aos países europeus (com destaque para Alemanha, França e Itália) a partir do Plano Marshall, de 1947. Aliás, a recuperação alemã, iniciada logo em 1948, foi emblemática. A partir dela, o plano de governo alemão passou a ser a “Economia Social de Mercado”, o que significou o afastamento do fascismo, do socialismo e do liberalismo econômico ao mesmo tempo. Tratava-se de promover uma “competição administrável”, ou seja, um capitalismo com

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intervenção do Estado – executado aliás com apoio dos Estados Unidos, agora hegemônico. Na Alemanha, a onda de privatizações foi controlada; a produtividade industrial com inovações tecnológicas foi crescente e não abalada por salários altos; o capital foi concentrado e centralizado; as empresas alemãs se internacionalizaram; e o capital financeiro tomou o controle do desenvolvimento. Desde então, a Alemanha possui um sistema financeiro forte (público e privado) e mantém-se como potência econômica hegemônica na Europa (Braga, 1999, p. 217).

Ciente de que esta exposição histórica foi superficial, espero ter conseguido esclarecer que a nova ordem econômica regulada nasceu da necessidade de recuperar estados capitalistas arrasados após duas guerras mundiais e uma crise financeira inédita. Ou seja, a regulação dos fluxos financeiros e comerciais nunca pretendeu superar o capitalismo, e sim dar suporte e fôlego a sua expansão. Isso nos leva a uma questão fundamental: a política de bem estar social em auge na Europa nas décadas de 1950 e 1960 sempre foi adequada à realidade capitalista.

A construção da hegemonia estadunidense implicou a disseminação do “american way of life” pelo ocidente (e, mais tarde, em parte dos países ex-comunistas), que levou ao mundo o padrão de vida estadunidense baseado na liberdade, no consumo e na crença nas tecnologias modernas, sendo o conforto material um indicador de justiça social (Fohlen, 1980). Também o modelo fordista-taylorista de organização empresarial e produção em massa foi difundido na Europa. Bem, a produção em massa exigia consumo em massa.

Com a aceitação pelos governos da teoria econômica keynesiana, a questão do pleno emprego passou a ser uma preocupação dos Estados. Combinando as fábricas modernas e a intervenção estatal sobre o nível do emprego, a massa de salários evoluiu consideravelmente na Europa. Para impulsionar o consumo, os estados passaram a financiar, com recursos do fundo público, parte dos custos de reprodução da mão de obra, liberando uma parcela da renda do trabalho que poderia ser aplicada em bens e mercadorias. Ou seja, os governos europeus, em maior e menor grau, investiram em políticas sociais para sustentar as condições de saúde e bem estar dos membros da sociedade.

Todavia, este acontecimento não pode ser interpretado como uma iniciativa “de cima para baixo”. Os sistemas de proteção social não estavam definidos a priori, logo terminada a guerra. É necessário destacar a luta social possibilitada pela organização da classe trabalhadora neste período. O conceito de condição salarial (Castel, 2001) refere-se ao trabalhador europeu dos anos 1950. Trata-se de um novo homem, que tem consciência de que seu trabalho é o motor do sistema econômico. Alguns deles, aliás, acessaram o status de

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burguesia. Nesta condição, procura-se conquistar algum patrimônio através do salário. Este patrimônio, por sua vez, poderia garantir a instrução e, com ela, o diploma, que se tornou um novo mecanismo de promoção no emprego.

Sem dúvidas, a centralidade da questão trabalhista e a organização dos sindicatos gerais atuantes na esfera política tiveram um papel fundamental na administração dos conflitos entre capital e trabalho na chamada “era de ouro” do capitalismo. Podemos dizer que o pós-guerra foi um momento decisivo na construção dos sistemas de proteção social devido ao estreitamento das relações entre economia, política e sociedade. E é por isso que se deve considerar o advento dos Welfare States um acontecimento muito específico: foi uma conquista da base da sociedade em meio ao capitalismo urbano-industrial.

3) Diferentes experiências de Welfare States e a tipologia de Esping-Andersen.

Há duas questões fundamentais a serem trabalhadas antes de categorizar as diferentes experiências de Welfare States no mundo do pós-guerra. A primeira é entender o que é um Welfare State. A outra é discutir a causa da diferenciação entre os regimes de bem estar social vivenciados nos países de capitalismo avançado.

Não há uma definição uníssona de Welfare State, e o fato de poucas nações no mundo terem passado por esta experiência torna difícil transformá-lo em um conceito abstrato. Segundo Gøsta Esping-Andersen (1991), os manuais de economia comumente destacam que se trata de um Estado responsável pelo bem-estar básico dos cidadãos. Contudo, não há reflexão sobre a efetividade das políticas sociais, a quem elas servem, e tampouco sobre o que seria o “básico”. Se definirmos um sistema de proteção social pelo volume de gastos com políticas sociais, incorremos no erro de ignorar a estrutura, o motivo e o destino destes gastos. Os números por si só não transparecem a capacidade redistributiva e protetora do Estado. Ainda, se criarmos um modelo ideal de Welfare State para colocá-lo em comparação com as experiências reais, ignoramos a relevância da História. Um modelo abstrato não considera as especificidades históricas que podem explicar a construção de um tipo de Estado.

Em resumo, o máximo que se pode abstrair da ideia de Welfare State é que se trata de um Estado comprometido, em maior ou menor grau, com um nível de bem-estar, que não é padronizado, através de políticas mais ou menos institucionalizadas. De fato, é uma explicação insuficiente, mas para preencher todas as lacunas deste raciocínio é preciso descer

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o olhar às especificidades históricas de cada país onde o Welfare State teve a sua vez. Disso decorrem as tipologias.

A primeira abordagem mais completa de observação da heterogeneidade dos regimes de proteção social foi publicada em 1958 por Richard Titmuss3, que distinguiu os Welfare States de acordo com algumas variáveis até então não exploradas, como a focalização ou universalidade das políticas e os requisitos para proteção social. Com isso, em resumo, Titmuss conseguiu diferenciar os sistemas de proteção residuais dos mais avançados. Enquanto no Welfare State Residual as políticas são focalizadas, paliativas, limitadas e bastante operadas pelo mercado, o sistema Redistributivo oferece proteção social universal e garantida fora da esfera do mercado. Por isso, Titmuss inaugurou os estudos comparados dos Estados de Bem Estar Social e abriu perspectivas para a compreensão das condições históricas que propiciaram diferentes experiências de proteção social.

A classificação de Esping-Andersen publicada em The Three Worlds of Welfare State (1990) é bastante avançada, porque não se limita à ótica dos gastos públicos, ou da arrecadação do estado, ou ainda a abstrações genéricas. Sua tese deriva da reflexão de Titmuss e incorpora variáveis relativas à história social e política dos países analisados. Os três elementos norteadores do estudo de Esping-Andersen são:

A natureza da mobilização de classes: refere-se à evolução da classe trabalhadora, ao senso de coletividade, à atuação dos sindicatos e sua proximidade com os partidos políticos. Também inclui a percepção das outras classes sobre os trabalhadores (sobretudo as tendências políticas das classes intermediárias).

As estruturas de coalizão política: citei neste capítulo o trabalho de 1985 deste autor onde ele defende que a Social Democracia nos países escandinavos deve-se à aliança travada entre a elite rural e os trabalhadores. Está claro para Esping-Andersen que o poder de uma classe sozinha é reduzido, e que a natureza das alianças de classes define a estrutura do Estado e seus compromissos. Portanto, define os Welfare States.

O legado histórico da institucionalização do regime: refere-se às mudanças na estrutura de classes causadas pelo próprio regime de proteção social, tendo em vista que o Welfare State não deixa de ser um sistema de estratificação social (Esping-Andersen, 1991). Resumidamente, a proteção social pode aproximar

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as classes, reforçar os dualismos, ou ainda alterar o bloco no poder, cujas opções políticas definirão os rumos do Welfare State.

A interação destes elementos cria diferentes configurações sociais, definindo a relação entre Estado, mercado e família, e suas respectivas obrigações na proteção dos membros da sociedade. Baseado nisso, o autor agrupou países com experiências de proteção social similares em três blocos4: i) os Welfare States liberais; ii) os Welfare States conservadores e corporativistas; iii) o regime social-democrata.

É importante dizer que o autor o fez quando os Welfare States dos países capitalistas avançados já passavam pelo desmonte da ofensiva neoliberal, também em diferentes graus, o que pode ter lhe garantido mais clareza para elaborar esta tipologia. Ainda assim, como qualquer tipologia, trata-se de um mecanismo descritivo que não capta todas as particularidades históricas dos países. As estruturas de proteção social refletem de certa forma a essência das sociedades, que não há como serem incorporadas nas tipologias.

Quadro 1 – Resumo da tipologia de Esping-Andersen. Regimes de Welfare States e países

arquetípicos

Características da proteção social em cada regime

Regime liberal

Estados Unidos, Canadá e Austrália

Deriva da obsessão pela ideologia liberal; Assistência focalizada nos pobres;

Poucas políticas universais; Previdência social limitada;

O Estado encoraja o mercado na provisão de esquemas privados de previdência; Mínima desmercadorização5.

4 Não são tipos puros. Dentro de cada regime de Welfare State, há diferenças entre os países. Por exemplo, a proteção social nos países do bloco liberal apresentam características predominantemente liberais, o que não significa que não haja políticas redistributivas. O New Deal estadunidense é um bom exemplo disso.

5A desmercadorização relaciona-se à concepção dos direitos do cidadão. Se a proteção social é considerada um direito do cidadão, e ele não precisa recorrer ao mercado para obtê-la, pode-se dizer que neste sistema há um bom nível de desmercadorização. Por outro lado, a desmercadorização é reduzida ou inexistente quando a proteção é tida como “caridade”, estigmatizada e focalizada nos pobres, sendo que os demais membros da sociedade dependem do mercado para ter acesso a ela.

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Regimes conservadores e fortemente corporativistas

Áustria, França, Alemanha e Itália

Deriva do tradicionalismo religioso e familiar, da diferenciação de classe e de status;

A garantia dos direitos existe, mas está vinculada ao status;

Ínfima capacidade redistributiva; Ênfase na proteção da família;

O Estado interfere quando se esgota a capacidade da proteção familiar.

Regime social-democrata Países escandinavos

Deriva da ideologia social democrata e do consenso político entre classes;

Políticas universais e solidárias;

Serviços com padrões altos de qualidade; O mercado é excluído da provisão dos serviços públicos;

Compromisso estatal com o pleno emprego. Fonte: Esping-Andersen, 1991, p.108-110.

É evidente que os países escandinavos experimentaram os mais avançados sistemas de proteção social. Isso se deve ao histórico social-democrata desta região. Em Politics Against Markets, Esping-Andersen (1985) esclarece que os critérios básicos que fundamentam a Social Democracia são a união e a solidariedade politicamente hegemônicas, em oposição às relações puramente mercadológicas de satisfação das necessidades de consumo. Por isso, a universalidade é um elemento importante de coesão social, igualando os membros da sociedade e evitando a criação de clivagens ou o privilégio de alguns grupos sobre os outros, do ponto de vista do acesso aos direitos. Todos os membros da sociedade entendem que deve contribuir justamente porque todos têm acesso aos benefícios. Nos termos do autor, na Social Democracia, a cidadania social precede a cidadania econômica.

Outro pilar mantenedor da coesão social é o pleno emprego. O Estado social democrata deve coordenar políticas econômicas voltadas ao pleno emprego, não só porque um

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sistema universalista demanda uma imensa arrecadação, mas porque o pleno emprego minimiza a diferenciação de renda, que tem o potencial de debilitar a classe trabalhadora, agravar os riscos sociais e enfraquecer o consenso político em torno do Welfare State:

“Economic and labor market policies follow the same political logic. Sustained full employment is the single most important means of preventing dualism and fundamental cleavages among wage earners; it is the ultimate precondition for trade union strength and labor movement unity.” (Esping-Andersen, 1985, p.317)

Enfim, o modelo social-democrata entende plenamente a necessidade de socialização dos custos de reprodução da vida, mas de fato não teve a ambição de superar as classes sociais e o capitalismo – mesmo porque ele é fruto de um pacto entre classes. Desta forma, considero válida a crítica de Przeworski (1995) sobre os limites da Social Democracia quanto à persistência de interesses econômicos da cúpula capitalista nos Welfare States.

Por outro lado, temos que reconhecer que a união dos trabalhadores não leva necessariamente ao socialismo, e então a Social Democracia não foi uma falha de percurso, ou um “socialismo incompleto". A configuração de um Estado comprometido com a proteção social, ainda que através de um pacto, foi uma conquista fundamental da base da sociedade. Trata-se de um Estado que intervém sobre a pobreza, o desemprego, os agravos de saúde, a invalidez e o desamparo dos cidadãos na velhice. Não tenho a pretensão de afirmar se o Welfare State social-democrata consegue ou não mexer nas estruturas básicas do capitalismo, como a propriedade e a alienação do trabalho, mas é inegável que ele tem a capacidade de garantir padrões de vida socialmente mais justos, através de políticas econômicas e sociais sinérgicas.

4) A crise do Welfare State e a ofensiva neoliberal

Os “anos de ouro” do capitalismo referem-se aos trinta anos após a Segunda Guerra Mundial, quando as principais economias ocidentais apresentaram altas taxas de crescimento. Parece de fato ter havido um círculo virtuoso entre política econômica regulada, mercado de trabalho, investimento e crescimento, como previa a teoria keynesiana. No entanto, esta era de crescimento acelerado encontrou seu limite na metade dos anos 70.

Além dos dois choques do petróleo, a década de 1970 marca a retomada da hegemonia dos EUA a partir da subida brusca da taxa de juros americana em 1979, que afetou

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diretamente os países europeus devedores. É fato que as grandes economias ocidentais perderam dinamismo neste período, marcado por baixo crescimento, desequilíbrios fiscais e crise inflacionária. Concomitantemente, enfraqueceu-se o consenso político em torno do Welfare State.

Diante da evidente erosão do Estado Providência, os economistas políticos de diferentes correntes teóricas teceram suas críticas. Em Draibe e Henrique (1988) há um importante balanço da literatura internacional sobre a crise dos Welfare States. Pretendo levantar os pontos mais importantes deste trabalho6.

Alguns estudiosos progressistas defendiam que se trataria apenas de uma transformação do Welfare State, e não seu esgotamento definitivo. Neste sentido, a crise econômica precederia a crise da proteção social, obrigando esta a tornar-se mais diversificada e, portanto, mais democrática. Segundo eles, seria necessário reorientar os programas públicos para torná-los mais efetivos no combate à pobreza e/ou menos sensíveis às oscilações econômicas. Os progressistas não negavam a limitação do orçamento público necessário para sustentar os grandes sistemas de proteção social, mas acreditavam que isso fora decorrente do surgimento de novas demandas imprevistas, e não da falência do Estado. Também reconheciam que excessivas burocratização e centralização decisória no Estado enrijeciam as possibilidades de aperfeiçoamento e democratização do sistema. Contudo, não culpavam a regulação estatal em si, tampouco confundiam burocratização com estatização autoritária. Por tudo isso, os Estados do Bem-Estar tenderiam a se reestruturar e talvez evoluir para uma “Sociedade do Bem-Estar” (Draibe e Henrique, 1988).

Os progressistas marxistas mantiveram sua crítica ao sistema capitalista. A crise do Estado Providência não seria autônoma, mas inserida na crise geral dos Estados capitalistas. Segundo esta vertente, a acumulação capitalista reproduz contradições insustentáveis, como o desemprego e a pobreza, o que demandaria a intervenção de um Estado que, em longo prazo, não é capaz de contorná-las. Nesta perspectiva, não seria possível corrigir ou amenizar as necessidades sociais sem superar o capitalismo em si. Então, o Welfare State não conseguiria combater as mazelas sociais.

Os estudiosos conservadores fizeram as críticas mais ácidas aos Welfare States, culpando-os pela crise econômica, e merecem destaque nesta análise. Segundo eles, os estados protetores estariam em crise devido a sua própria ambição em sustentar a proteção

6 O artigo de Draibe e Henrique (1988) é bastante denso e detalhado. Para facilitar a exposição, destaquei vertentes teóricas: os progressistas, os progressistas marxistas e os conservadores. No entanto, é preciso salientar que existem divergências e nuances dentro destas categorias. Aqui, minha exposição considera os termos gerais.

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social. Seguidores dos modelos econômicos neoclássicos, estes estudiosos concordavam com a identidade entre poupança e investimento, bem como no potencial transformador do mercado autorregulado. A tributação pesada exigida pelo Estado Protetor prejudica a poupança e, automaticamente, o investimento. O controle sobre o comércio e os fluxos financeiros é inaceitável porque limita a produtividade possibilitada exclusivamente pela competição entre as empresas e entre os trabalhadores. Os sistemas de proteção social exigem um orçamento impraticável, portanto são geradores de déficits públicos. O pleno emprego e os benefícios aos desempregados, por sua vez, geram explosão inflacionária.

Há também uma vertente conservadora que reconhece – ou tolera – a necessidade de assistir os cidadãos comprovadamente pobres, deixando o mercado a serviço dos demais. Esta perspectiva está na origem de programas focalizados de transferência de renda e saúde pública. O Banco Mundial tornou-se um grande promotor da proteção social focalizada, tema relevante nesta dissertação e que será discutido no terceiro capítulo.

Os conservadores não se limitaram a criticar os efeitos econômicos supostamente causados pela proteção social. Eles abominavam a própria ideia de proteção social. Ao sanar a necessidade e proteger os desempregados, os sistemas de bem-estar social desincentivariam o trabalho, e com isso, gerariam improdutividade e pobreza. Alguns conservadores como George Gilder foram além: a proteção do Estado diminui o poder patriarcal na família, implicando desde o desinteresse pelo trabalho até a promiscuidade sexual, o abuso de drogas e a família matriarcal (considerada uma grande ameaça). Desta forma, o Welfare State seria um ataque à meritocracia e à moralidade.

Por fim, há um argumento para a crise do Welfare State que quero destacar, e que não se encaixa inteiramente em qualquer uma das três vertentes que apresentei acima. Nesta linha de argumentação, Draibe e Henrique (1988) citam o sociólogo Claus Offe (1983) e o economista John Logue (1979). O argumento refere-se ao esgotamento do pacto político entre classes travado no pós-guerra e relaciona-se com a tese de Esping-Andersen (1985) sobre a coalizão de classes. Então, os Welfare States foram construídos sobre o consenso entre trabalhadores e empresários, permeado pelas políticas econômicas keynesianas que favoreciam o emprego sem colocar em cheque a acumulação capitalista. No entanto, segundo Offe, a crise econômica dos anos 70 afetou este pacto e trouxe de volta o conflito redistributivo, em detrimento da negociação.

Ainda nesta perspectiva, as autoras citam a tese de Logue: o Welfare State seria vítima do seu próprio sucesso. Primeiramente, satisfeitas as necessidades materiais, os cidadãos deixaram de sentir obrigação em contribuir com uma série de outros benefícios do sistema de

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proteção social. Ademais, a evolução dos sindicatos e a intervenção do Estado na negociação salarial em favor dos trabalhadores pode ter abalado o equilíbrio que previa o pacto entre as classes.

Quaisquer que sejam as causas, é evidente que no final da década de 1970 os Welfare States estavam ameaçados financeira e ideologicamente. O desequilíbrio fiscal em si talvez não fosse o bastante para abalar estruturalmente os grandes sistemas de proteção social. O problema fundamental que mexeu nas bases do Estado providência deve ser atribuído à erosão do consenso político sobre o qual ele foi edificado. O realinhamento das classes e dos agentes econômicos fragilizou o pacto pela solidariedade e pela cidadania social, seja devido a novas demandas não atendidas pelo Estado ou às próprias exigências da expansão do capitalismo oligopolista que caminhava para a 3ª Revolução Industrial7.

Baseadas no estudo de Pierre Rosanvallon (1981)8 sobre o tema, Draibe e Henrique afirmam: “O verdadeiro bloqueio ao Estado-Providência é, afinal, de ordem cultural e sociológica: a crise é de um modelo de desenvolvimento e crise de um sistema dado de relações sociais” (Draibe e Henrique, 1988, p.66).

Diferentes correntes teóricas quiseram entender e propor soluções para a crise do Welfare State. No entanto, o caminho traçado a partir dela foi planejado pelos conservadores, que revisitaram o liberalismo clássico e o modelo de concorrência perfeita, mas acrescentaram um elemento novo: a aversão ao Estado e a tudo que ele mantém. Em outras palavras, uma ofensiva neoliberal conservadora protagonizou o debate político e econômico internacional a partir de 1980, opondo-se ferozmente aos sistemas de proteção social.

Em primeiro lugar, é preciso diferenciar o liberalismo clássico do neoliberalismo. Os liberais clássicos do século XVIII desenvolveram uma importante filosofia política burguesa em oposição a estados autocráticos liderados por oligarquias rurais9. Estes intelectuais incluíam o livre comércio e o direito a propriedade entre as liberdades fundamentais dos homens, em um cenário onde a propriedade e o poder político estavam assegurados somente a

7 Sobre isso, ver Coutinho (1992). A década de 1980 sediou o início de um cluster de inovações possibilitado por novas tecnologias baseadas na microeletrônica. Este cluster de inovações engendrou uma onda de destruição criativa, no sentido schumpeteriano, que atingiu as potências capitalistas colocando-as em interação produtiva e financeira. A microeletrônica esteve na raiz do novo paradigma que caracterizou a 3ª Revolução Industrial e Tecnológica: o paradigma das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). O lado político da globalização foi decisivo. Além da presença determinante da informática na gestão das firmas, a globalização foi caracterizada pelo intenso movimento de capitais entre as economias, o que dependeu da desregulamentação dos sistemas financeiros e a abertura dos mercados nacionais. Em outras palavras, o advento da 3ª Revolução Industrial trouxe consigo uma nova ofensiva do capital, que pôs em cheque a ordem econômica regulada construída no pós-guerras.

8 ROSANVALLON, P. La crise de L’État-providence. Paris, Seuil, 1981.

9 Dentre os liberais clássicos podemos citar Adam Smith, David Ricardo, Jean-Baptiste Say, Thomas Malthus, John Locke, David Hume.

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um restrito grupo de senhores de terra. O famoso termo “laissez-faire, laissez passer” indicava a necessidade de aprofundar a Revolução Industrial e a Revolução Burguesa no comércio sem os bloqueios de um Estado conservador. Mas, entendiam o Estado em si como uma instituição necessária para regular a vida em sociedade. Neste sentido, o liberalismo clássico foi revolucionário (Bresser-Pereira, 2009, p.10).

Por outro lado, a crítica neoliberal ao Estado Providência no século XX foi bastante conservadora. Em primeiro lugar, os neoliberais afastaram-se das discussões sobre as liberdades fundamentais dos seres humanos às quais se dedicaram os clássicos, limitando-se a defender a desregulação dos mercados. As origens do neoliberalismo encontram-se em meados do século XX nos estudos de Friedrich Hayek, Ludwig Von Mises e Milton Friedman, os três maiores nomes desta corrente. Até então, o neoliberalismo lutava contra o comunismo e o socialismo, em voga na época devido à extensão da União Soviética.

Von Mises fez as críticas mais duras ao Estado de Bem Estar. Em sua obra “A Ação Humana: um tratado de Economia”, ao tratar a questão da pobreza, argumenta que a incapacidade de alguns seres humanos é um traço natural da civilização, e que isso não é uma questão a ser resolvida pela Economia. Ainda acrescenta que o risco da invalidez estimula os homens a se manterem saudáveis, sendo desaconselhável dar-lhes uma garantia legal de subsistência, nestes termos:

“Esses problemas não são de caráter praxeológico e não cabe à economia dizer qual é a melhor solução possível. Pertencem mais ao âmbito da patologia e da psicologia. Referem-se ao fato biológico de que o medo da penúria e das consequências degradantes de viver da caridade alheia é fator importante na preservação do equilíbrio fisiológico do homem. Estimulam o homem a se manter em boa forma física, a evitar doenças e acidentes, e a recuperar-se o mais rápido possível de qualquer ferimento sofrido. A experiência do sistema de previdência social, especialmente a do mais antigo e mais completo sistema, o alemão, mostrou claramente os efeitos indesejáveis que resultam da eliminação desses incentivos. Nenhuma comunidade civilizada teve a insensibilidade de permitir que os seus incapacitados morressem sem qualquer tipo de ajuda. Mas a substituição da caridade voluntária por um direito de subsistência ou de sustento não parece compatível com a natureza humana, tal como ela é. São considerações de conveniência prática, e não preconceitos metafísicos, que tornam desaconselhável estabelecer um direito legal de subsistência” (Von Mises, p. 948, grifo meu)

Apesar das suas origens nos anos 50, o neoliberalismo tornou-se hegemônico ao atacar os sistemas estatais de proteção social, sobretudo a partir das eleições de Margareth Thatcher,

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em 1979 no Reino Unido, e Ronald Reagan, em 1981 nos Estados Unidos. A culpa pela crise financeira das grandes economias capitalistas na década de 70 foi atribuída às políticas keynesianas e aos “excessos dos Estados”. Assim, respaldados pela teoria econômica neoclássica, os neoliberais chegaram ao poder filiados em partidos conservadores.

Além da onda de privatização de empresas e serviços públicos, os governos neoliberais travaram uma luta enérgica contra os sindicatos, colocando os trabalhadores em uma situação defensiva e sem capacidade de articulação. O neoliberalismo foi, portanto, reacionário. A ideologia neoliberal, que já pregava contra o Estado antes de ser hegemônica, foi apropriada no fim do século XX pelos grupos mais ricos, especialmente por rentistas e profissionais do mercado financeiro, a fim de quebrar todas as barreiras que pudessem limitar seu enriquecimento (Bresser-Pereira, 2009).

A partir de então, o mainstream econômico internacional acusa o Estado de ser o inimigo maior da produtividade e foco de corrupção, irresponsabilidade e autoritarismo. Sob esta ótica, os sistemas estatais de proteção social são inaceitáveis porque são custosos, exigem tributação abusiva e disseminam o desinteresse pelo trabalho. A única atribuição legítima do Estado seria zelar pela segurança pública. Alguns neoliberais também aceitam que o Estado interfira em situações de extrema pobreza que impeçam os indivíduos de terem acesso ao mercado10.

Bresser-Pereira (2009) definiu bem as intenções dos neoliberais para o Estado Mínimo:

“Para o neoliberalismo, o Estado deveria se tornar ‘mínimo’, e isso significava pelo menos quatro coisas: primeiro, que deixasse de se encarregar da produção de determinados bens básicos relacionados com a infraestrutura econômica; segundo, que desmontasse o Estado Social, ou seja, todo o sistema de proteção social por meio do qual as sociedades modernas buscam corrigir a cegueira do mercado em relação à justiça social; terceiro, que deixasse de induzir o investimento produtivo e o desenvolvimento tecnológico e científico, ou seja, de liderar uma estratégia nacional de desenvolvimento; e, quarto, que deixasse de regular os mercados e principalmente os mercados financeiros porque seriam autorregulados.” (Bresser-Pereira, 2009, p.8-9)

Em 1989, o Consenso de Washington mudou o paradigma da economia política global, dando força ao neoliberalismo. O Consenso foi elaborado em uma reunião em novembro de 1989, sediada em Washington D.C., onde compareceram representantes de

10 A proposta do “imposto de renda negativo”, de Milton Friedman, é um exemplo de intervenção estatal em situações de pobreza.

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instituições financeiras estadunidenses, congressistas e executivos de Wall Street. Pereira (2015) ressalta que este programa foi pensado especialmente para adequar as reformas econômicas dos países da América Latina. Williamson (1992) sintetiza o receituário liberalizante em dez pontos:

1) Disciplina fiscal: devem-se alcançar superávits primários altos em relação ao PIB, e o déficit operacional – descontando a parcela dos juros que compensa a inflação – não deve ultrapassar 2% do PIB.

2) Prioridade dos gastos públicos: os gastos abusivos com o aparato de administração pública, que geram pouco retorno econômico, devem ser redirecionados para áreas com alto retorno econômico, como saúde, educação e infraestrutura.

3) Reforma fiscal: seria preciso ampliar a base tributária a fim de sustentar o orçamento do governo, mas de acordo com o funcionamento dos mercados globalizados, a liberdade de comércio e fluxo de capitais.

4) Liberalização do financiamento: as taxas de juros devem ser definidas no mercado, e não arbitrariamente. Só assim elas manter-se-iam em níveis adequados para o financiamento da economia.

5) Taxa de câmbio: deve ser unificada entre os países, para fins comerciais, e mantida em um patamar competitivo para induzir as exportações.

6) Liberalização do comércio: devem ser abolidas as restrições de importações, e as eventuais tarifas não devem ultrapassar 20%.

7) Investimento externo direto (IED): fim das barreiras que impedem a entrada de empresas estrangeiras, que devem competir igualmente com as empresas nacionais. 8) Privatização: Com muita clareza, afirma: “empresas estatais devem ser privatizadas” (Williamson, 1992, p.45)

9) Desregulamentação: devem ser facilitadas a criação de novas firmas e a competição econômica. Eventuais regulamentações apenas se justificam em nome da segurança nacional, a proteção ao meio ambiente ou sob supervisão das instituições financeiras.

10) Direito de propriedade: deve ser garantido pelo judiciário sem altos custos.

Em outras palavras, Williamson define o programa em “prudência macroeconômica, liberalização microeconômica e orientação externa” (Williamson, 1992, p.45).

O receituário do Consenso de Washington convenceu as elites econômicas e foi muito pouco questionado nos fóruns mundiais até que, paradoxalmente, a crise financeira

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internacional de 2008 fez com que o capital financeiro atacasse o Estado, exigindo dele uma salvação. A partir da quebra do banco Lehman Brothers, um dos maiores investidores no mercado subprime, o Tesouro Americano anunciou um pacote bilionário de resgate a outros grandes bancos que sofriam risco de falência. Na Europa isso também aconteceu. Somente a Inglaterra investiu cerca de 1 trilhão de dólares no socorro aos bancos11. Socialmente, as consequências da crise do subprime foram expressivas, principalmente na Zona do Euro. A onda de austeridade fiscal na Europa pós-crise minou os indicadores de desemprego e pobreza. No final de 2015, a Eurostat estimou mais de 20 milhões de desempregados nos 28 países da União Europeia. Destes, aproximadamente 16,7 milhões estavam concentrados nas 19 nações da Zona do Euro (Eurostat, 2016).

Para Bresser-Pereira, o neoliberalismo hoje não passa de um espectro, “(...) uma ideologia morta, é uma lembrança constrangedora, que só existe pelas suas consequências danosas sobre as sociedades que dele foram vítimas” (Bresser-Pereira, 2009, p.9). Eu discordo de Bresser quanto à morte desta ideologia, e destaco as suas consequências danosas.

5) O novo acordo político pós-Welfare States

De fato, o combate neoliberal ao Estado Protetor não ocorreu de maneira tão pura e fria como pretendeu Von Mises – afinal, nenhum Estado capitalista chegou a extinguir todos os mecanismos de proteção social mínima, deixando os homens competirem como animais selvagens. No entanto, o mainstream neoliberal destruiu a hegemonia dos Welfare States e, mesmo onde ele foi residual, penetrou no Estado e alterou profundamente não só os sistemas de proteção social, reduzindo-os ao mínimo possível, mas a própria arquitetura estatal e do setor público.

Stephen Ball (2004) defende a existência de um novo acordo político do Pós-Estado de Providência, decorrente das inovações administrativas do próprio Estado, e de transformações na relação entre o Estado, o setor privado e os cidadãos. Se na era do Welfare State existia um consenso político em torno da cidadania social, a era recente é marcada por um consenso em torno do individualismo.

O Estado que era tido como protetor e indutor do investimento resumiu-se a “Estado regulador”, que supervisiona as atividades realizadas pelo setor privado. Neste processo, o setor público delegou atividades para o mercado, incluindo atividades de políticas públicas. O

11 Fonte: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/apos-crise-global-estourar-em-2008-bancos-receberam-socorros-bilionarios-13495994

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