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A adoção do princípio de Coesão Territorial no âmbito dos Serviços de Interesse Geral

PARTE I. SERVIÇOS DE INTERESSE GERAL E COESÃO TERRITORIAL:

2.2. C OESÃO T ERRITORIAL

2.2.4. A adoção do princípio de Coesão Territorial no âmbito dos Serviços de Interesse Geral

Como já salientado, o princípio de coesão territorial surge formalmente em 1997 com o Tratado de Amesterdão. Ora, sendo certo que a sua inclusão veio reconhecer o valor acrescentado da dimensão territorial, o pretexto usado foi precisamente o de realçar a importância do acesso aos SIG para a qualidade de vida dos cidadãos, podendo a dificuldade de acesso a estes serviços ter consequências nocivas em áreas menos desenvolvidas (Faludi, 2005a), tornando, deste modo, os SIG “one of the main principles of our action and an integral part of the European model” (Prodi, 2003:3)33. De uma forma geral, a

33 No art.º 16º, o Tratado vem realçar a posição que estes serviços ocupam no conjunto dos valores comuns da UE e o papel que desempenham na promoção da coesão social e territorial.

88 ideia que emerge, tanto do Tratado de Amesterdão, como de diversos documentos oficiais posteriores, é a de que, não só os SIG são considerados componentes essenciais do Modelo Social Europeu34, como também a sua provisão resultará em (ou contribuirá fortemente para) uma maior coesão territorial (consultar, inter alia, CEC, 2001a; 2004b; COR, 2005). A ligação concetual entre os SIG, o princípio de coesão territorial e o Modelo Social Europeu reflete, pois, a vontade política de combinar a procura do desenvolvimento económico com os princípios de solidariedade e equidade (Faludi, 2007; Colomb e Santinha, 2014). E se, por um lado, a ideia de coesão territorial espacializa o Modelo Social Europeu, ao apelar a uma maior solidariedade e equidade “not only amongst European citizens but also amongst European territories” (Davoudi, 2005:437), por outro, os SIG asseguram “the well-being of citizens, stabilize the economy and generate solid social ties” (Colomb e Santinha, 2014:464). Segundo estes autores, assegurar o acesso a estes serviços torna-se, deste modo, fundamental para garantir que não surjam desvantagens sociais e económicas decorrentes da localização territorial.

Com efeito, no âmbito do debate sobre os SIG, a bibliografia em torno do princípio de coesão territorial e do Modelo Social Europeu mostra que ambos são animados pela convicção de que “the market is not everything” (Faludi, 2005b:6), ou seja, que há valores para além da simples procura do crescimento económico, legitimando a intervenção pública e procurando a “de-commodification of certain areas of policy” (Faludi, 2005b:6). Um assunto que tem estado em discussão especialmente desde o início da década de 2000 com o relançamento da Estratégia de Lisboa: Trabalhando juntos para o crescimento e o emprego – um novo começo para a Estratégia de Lisboa (CEC, 2005). A este propósito, vale a pena relembrar o discurso que Durão Barroso efetuou por essa altura, muito bem explanado por Faludi (2005b:3), enfatizando a dimensão económica sobre a social e a ambiental: “When Barroso came clean on his intentions, he invoked the metaphor of his three children, each equally close to his fatherly heart: the economy, social Europe and the environment. With the economy being in poor shape he said it was natural, though, for him to give attention to this, his ailing child”.

Refira-se que, no âmbito desta discussão (dimensão económica vs. dimensão social), Faludi (2005b:6-7) sublinha o facto de que para os territórios serem coesos tendo por base a lógica do Modelo Social Europeu não significa que a dimensão económica fique afetada; pelo contrário, “territories need to be conceptualised as cohesive in the sense of being well-appointed all the way round, so that people will want to attach

34 A este propósto, Moreira (2009) diz: “Se existe um traço singularmente caracterizador do chamado “modelo social europeu”, ele consiste justamente nos serviços públicos (…). De facto, foi através deles que os Estados europeus em geral asseguraram ao conjunto dos seus cidadãos condições básicas do bem-estar individual, da coesão social e do desenvolvimento colectivo”. Previamente, o mesmo autor tinha feito um parelelismo entre os serviços públicos e os de interesse geral, “expressão esta que, no jargão comunitário europeu, designa os clássicos serviços públicos, ou seja, aqueles serviços essenciais à vida colectiva postos à disposição das pessoas pelos poderes públicos (Estado, regiões, municípios) ou sob o seu controlo, como a água e a electricidade, os correios e as telecomunicações, os transportes colectivos, a educação, a saúde, etc.”.

89 themselves to them, work in them and develop them. The hope is that, because of this feeling of attachment of their citizens, European territories will also be environments that are conducive for the high-quality jobs that Europe necessarily depends on. When push comes to shove, de-commodifying territory may be good business”.

Apesar de salientada, porém, a menção à coesão territorial ainda permanece vaga nos documentos programáticos sobre os SIG, como disso é exemplo o Livro Branco sobre Serviços de Interesse Geral (CEC, 2004b:4): “Na União, os serviços de interesse geral continuam a ser essenciais para a coesão social e territorial e para a competitividade da economia europeia”. Parece, contudo, que a vontade de garantir o acesso aos SIG se associa em muito à procura de salvaguardar a qualidade de vida das pessoas que residem e exercem a sua atividade profissional em territórios menos desenvolvidos, cuja provisão não pode ser garantida pelas forças do mercado. Com efeito, numa comunicação efetuada no início deste século, a CE diz o seguinte (CEC, 2001a): “General interest services have a key role to play in achieving these aims. (…) the disappearance of such services is a telling sign of the desertification of a rural area or the degradation of a town. The Community is committed to maintaining the function of these services intact, while improving their efficiency”.

Uma vez mais, reforça-se, pois, o argumento de que as pessoas não devem ser prejudicadas do ponto de vista das suas oportunidades em virtude do local onde habitam ou trabalham, uma questão sublinhada inclusive pelo Parlamento Europeu na sua resolução sobre o papel da coesão territorial no desenvolvimento regional (EP, 2005:2-3): “territorial cohesion is based on the principle of equity between citizens, wherever they live in the Union; Calls, therefore, for regional development to be founded on programmes which guarantee equality of treatment between the EU's territories, while preserving their diversity, which inter alia implies appropriate accessibility of services of general interest (SGI) and services of general economic interest (SGEI)”. Refira-se que, já em 2004, o 3º Relatório sobre a coesão económica e social referia que “People should not be disadvantaged by wherever they happen to live or work in the Union”. Seguindo esta linha de raciocínio, mais recentemente Mirwaldt et al. (2009:14) referem “citizens should not be at a disadvantage because of where they live but should have equal access to services and facilities”.

Na prática, estas observações apontam para a ideia de que as oportunidades individuais não dependem somente de riscos associados ao desemprego, deficiência, pobreza, doença ou idade, mas estão igualmente associadas ao território onde vivem e trabalham, ou seja, à existência/acesso (ou não) de determinadas condições (e.g. SIG) e oportunidades sociais e económicas. Aliás, é reconhecendo a importância do efeito contexto local que apontam os mais recentes trabalhos desenvolvidos para CE (Barca, 2009), pela OCDE (2009a; 2009b; 2009c) e pelo Banco Mundial (2009), ao defenderem uma abordagem baseada no local (place-based approach), isto é, apoiada na capacidade de mobilizar o potencial de desenvolvimento territorial e proporcionar uma oferta de serviços desenhados à medida de cada território.

90 Enfatiza-se, assim, a pertinência dos territórios, quer enquanto contextos estruturantes, quer como níveis de intervenção operacionais. Enquanto contextos estruturantes, na medida em que as oportunidades dos indivíduos estão associadas ao território onde vivem ou trabalham, pelo que estes podem constituir fatores amplificadores de determinadas disparidades sociais e económicas. Reside aqui a ideia de que o território não pode ser considerado apenas enquanto repositório de infraestruturas, equipamentos, habitações, indivíduos e instituições, mas também enquanto fator indutor de relações sociais e económicas. Um argumento que vai ao encontro das ideias defendidas por Pirie (1983), Harvey (1996) ou mesmo Dikec (2001:1798): “problems are produced and reproduced spatially, through the very production of space. Injustice and its persistence, in this sense, is the product of spatial dynamics”. A título de exemplo, e por facilidade de raciocínio, faça-se a comparação com a distinção entre indivíduos (ou agregados familiares) e territórios em contextos territoriais (menos ou mais desenvolvidos) e de rendimento (menores ou maiores rendimentos) díspares. Em termos esquemáticos, isto significa que há quatro combinações possíveis (Quadro 3).

Indivíduos com maiores rendimentos em territórios mais desenvolvidos

Indivíduos com maiores rendimentos em territórios menos desenvolvidos Indivíduos com menores rendimentos

em territórios mais desenvolvidos

Indivíduos com menores rendimentos em territórios menos desenvolvidos

Este esquema muito simples ajuda a perceber por que razão a dimensão territorial e a sua perspetiva integrada com os SIG adicionam valor às políticas públicas: por exemplo, não só os indivíduos com maiores rendimentos são punidos por viverem em territórios menos desenvolvidos, como também os que possuem menores rendimentos são ainda mais penalizados.

Por outro lado, os territórios também são pertinentes do ponto de vista da política pública enquanto níveis de intervenção operacionais, na medida em que constituem referenciais de ação, quer como forma de diminuir desequilíbrios socioeconómicos, quer como forma de potenciar e otimizar recursos, quer ainda enquanto palcos privilegiados de articulação entre políticas públicas (de base territorial e sectoriais) e entre diferentes atores.

Ora, no contexto recente de política pública, os SIG continuam a deter um papel preponderante no âmbito da discussão e das políticas em torno do princípio de coesão territorial. Esta importância é visível, por exemplo, em quatro momentos recentes. Desde logo, na forma como o Tratado de Lisboa (2009) aborda a temática, estabelecendo o direito de acesso a estes serviços a fim de promover a coesão territorial. Em segundo lugar, no modo como a Resolução do Parlamento Europeu sobre o Livro Verde

Quadro 3: Distinção entre indivíduos e territórios em contextos territoriais e de rendimento díspares

91 e o debate sobre a reforma da Política de Coesão (P6_TA(2009)0163) refere a importância de garantir um acesso equitativo aos SIG (em particular à educação e à saúde) e que esta questão deve ser discutida no âmbito do debate em torno da coesão territorial. Em terceiro lugar, o próprio 5º Relatório sobre a coesão económica, social e territorial (2010) sublinha que o princípio de coesão territorial reforça a importância do acesso aos SIG. Por fim, e desta feita ao nível das políticas do mercado único, fica patente a preocupação da CE no acesso dos cidadãos aos serviços, designadamente quando refere na sua Comunicação Um Acto para o Mercado Único: para uma economia social de mercado altamente competitiva (COM(2010) 608 final) que “embora o projecto europeu esteja assente em regras de mercado, que garantem o acesso dos cidadãos ao maior leque de bens e serviços ao preço mais baixo e promovem a inovação, não deixa de colocar a coesão social e territorial da União no centro das suas preocupações e admite que a simples regulação pelos mercados não dá respostas adequadas para todas as necessidades colectivas que se vão manifestando”.

A análise desenvolvida até ao momento neste capítulo sobre a coesão territorial, não só justifica que se aprofunde o seu significado enquanto princípio a adotar na formulação de políticas públicas (em geral) e na sua relação com os SIG (em particular), como também lança pistas sobre como balizar o conceito. Com efeito, só assim se poderá perceber que políticas se devem formular e implementar para alcançar um território mais coeso e escapar de uma postura meramente discursiva e desprovida de conteúdo. Dito de um outro modo, e seguindo as palavras de Servillo (2010:413), “Since the strategic role of discourses seems to have reached a point of no return in structuring ESP [European Spatial Planning], both in the EU context and in the spatial planning discipline, a clearer definition of meanings, roles and competences should be a priority for scholars and EU institutions”. Ora, é com este intuito que se avança para o próximo ponto.