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A adoção do princípio de Coesão Territorial no contexto atual das políticas públicas

PARTE I. SERVIÇOS DE INTERESSE GERAL E COESÃO TERRITORIAL:

2.2. C OESÃO T ERRITORIAL

2.2.2. A adoção do princípio de Coesão Territorial no contexto atual das políticas públicas

A emergência das orientações estratégicas de natureza politico-normativa32 descritas na secção anterior destacam a importância da dimensão territorial e das especificidades locais na formulação de políticas públicas, considerando o território, não só enquanto espaço físico de suporte às atividades existentes, mas sobretudo como um sistema social e institucional com múltiplas relações, atividades e transações económicas. Com este enfoque, sublinha-se que os processos sociais e económicos tomam forma num contexto espacial e estão condicionados por fatores geográficos como a distância/proximidade, as características físicas (clima, topografia…) e, ainda, a identidade de cada local. Contraria-se, portanto, a lógica que muitos autores defendiam no final do século passado: com fenómeno da globalização e o advento e a proliferação das tecnologias de informação e comunicação, o espaço (ou a geografia) deixaria de ser relevante, na medida em que haveria uma perda de importância do acesso a fatores de produção tangíveis em prol do interesse da disponibilidade de fatores de produção intangíveis, designadamente a informação e o conhecimento.

Estas questões traçaram um caminho para a adoção do princípio de coesão territorial na agenda política, nomeadamente da CE, na procura de um desenvolvimento harmonioso/equilibrado do território, em que a dimensão territorial adquire uma maior preponderância. A título de exemplo, observem-se os inúmeros estudos elaborados, seja ao nível do programa ESPON, seja designadamente no âmbito da CE por intermédio dos relatórios de coesão, demonstrando os efeitos assimétricos que um conjunto de tendências atuais têm produzido, comprovando que os contextos territoriais podem, eles mesmos, ser amplificadores de desequilíbrios. Exemplos incluem a mobilidade e a pressão migratória, o envelhecimento demográfico, as alterações climáticas e a eficiência energética, a globalização e a competitividade económica, as tecnologias de informação e comunicação e a crescente importância das cidades (enquanto atores globais). Tendências que, se adicionadas às tradicionais condições díspares no acesso aos recursos que são estratégicos para o seu bom desenvolvimento por

32 A ênfase aqui dada é, efetivamente, sobre as abordagens de natureza politico-normativa. Apesar de tudo, importa referir que estas abordagens acompanharam, de certo modo, os trabalhos de natureza descritivo-analítica que foram sendo elaborados e que realçavam a importância da dimensão territorial no desenvolvimento social e económico. Se é verdade que Alfred Marshall (1922), já no início do séc. XX, tenha focado esta questão – the concentration of specialised industries in particular localities –, é essencialmente a partir do final década de 1970 (na sequência da crise económica mundial de então) que começam a surgir diversos trabalhos relacionando território/especificidades locais/desenvolvimento. Exemplos podem ser encontrados em torno de conceitos como distritos industriais (e.g. Becattini, 1989), clusters industriais (e.g. Porter, 1990) ou meios inovadores (e.g. Camagni, 1991), só para citar alguns. Para uma análise detalhada e evolutiva destes e de outros conceitos similares consultar Rodrigues (2008).

73 parte dos indivíduos e das instituições (quer por razões intrínsecas, quer por factores que lhes são externos, como os que resultam da localização geográfica), tornam-se claramente num desafio para as políticas públicas, afectando quer a competitividade dos territórios, quer o equilíbrio territorial (numa lógica de igualdade de oportunidades), muitas vezes vistos como objectivos de certa forma conflituosos (Bertrand & Peyrache-Gadeau, 2009). A adoção do princípio de coesão territorial vem precisamente procurar lidar com esta questão, realçando as características específicas de cada território, não só ao nível dos problemas, mas também tendo em conta as oportunidades. Aliás, o próprio Livro Verde sobre a Coesão Territorial (2008:3) lança algumas pistas sobre esta questão, referindo: “A coesão territorial procura alcançar o desenvolvimento harmonioso de todos estes territórios e facultar aos seus habitantes a possibilidade de tirar o melhor partido das características de cada um deles. Nessa medida, a coesão territorial é um factor de conversão da diferença em vantagem”. Tal revela uma nova abordagem, que junta à ideia (sempre necessária) de combater disparidades regionais (essencialmente a partir de situações problemáticas) uma lógica de valorização territorial, isto é, de conceção do território enquanto oportunidade, reforçando, por isso mesmo, a necessidade de considerar a dimensão territorial na formulação de políticas públicas.

Por outro lado, reconhecendo-se que as políticas públicas com impacto territorial são orientadas no âmbito da UE, quer pelas próprias políticas de ordenamento do território (através, por exemplo, da Agenda Territorial), quer por políticas sectoriais, quer ainda especificamente pela Política de Coesão (estabelecendo várias referências com significativo impacto no ordenamento do território), não se verifica ainda uma estreita articulação entre elas, podendo o princípio de coesão territorial servir de plataforma de articulação dessas políticas. Com efeito, à problemática lançada por Botka et al. (2009:10) – “Territorial aspects and priorities are expressed primarily in spatial policy and in cohesion policy. These two main branches of territorial approaches are still separate” – respondem, da seguinte forma, o Parlamento Europeu (P6_TA(2009)0163) – “territorial cohesion should not be limited to the effects of EU regional policy on the territory of the European Union, but should also focus on the territorial dimension of other sectoral EU policies with a strong territorial impact; stresses, in the context of territorial cohesion, the importance of improving synergies between the different EU policies in order to coordinate and maximise their territorial impact on the ground” – e Servillo (2010:403) – “The [Territorial Cohesion] concept has the potential, de facto, to become the reference point for a clearer EU policy in terms of spatial approaches”.

Acresce, no contexto atual de políticas públicas, um outro motivo para a adoção do princípio de coesão territorial: a influência que a UE exerce nas políticas públicas (em geral) e nos sistemas e processos de ordenamento do território (em particular) dos estados-membros tem-se verificado de forma crescente. É verdade que esta influência (europeização) de conceitos, princípios e orientações tem sido mais visível ao nível das políticas sectoriais, como sejam o ambiente, os transportes e o desenvolvimento rural, só para citar alguns exemplos, ou da política regional, na medida em que, do

74 ponto de vista formal, a CE, como já salientado, não possui competências diretas no domínio do ordenamento do território. Consequentemente, ao introduzir uma menor exposição deste campo aos mecanismos formais deste efeito Europa, os meios de disseminação e de transformação de culturas e práticas resultam fundamentalmente da integração discursiva com recurso a um vocabulário comum, do desenho de visões espaciais partilhadas ou mesmo do desenvolvimento de práticas colaborativas transnacionais, envolvendo processos de aprendizagem mútua e promoção de boas práticas (Ferrão, 2011).

De uma forma geral, o efeito Europa tem sido usado para descrever um conjunto de fenómenos e processos de mudança em resposta a influências por parte da UE, seja como reação à pressão comunitária por intermédio do lançamento de diretivas ou regulamentos, seja porque a própria UE tornou-se um meio de orientação cognitivo e normativo, fornecendo orientações ao nível conceptual e operacional (Radaelli, 2004). Não sendo um conceito totalmente unanime, na medida em que tem sido aplicado de inúmeras formas para descrever uma variedade de situações, atualmente há um entendimento global de que este não é um processo unidirecional, envolvendo, pelo contrário, uma interação mútua da UE com os contextos domésticos, numa lógica de coevolução (Cotella e Janin Rivolin, 2010), reforçando por isso o argumento de que a europeização é “the main transmission belt of the process of European integration” (Borzel e Risse, 2000:1-3).

Lenschow (2006) analisa o processo de europeização no contexto desta coevolução de acordo com três modelos complementares. O primeiro consiste no modelo mais usado e de natureza top-down, em que a UE é claramente a principal instigadora de desenvolvimentos e mudanças a nível de cada estado- membro (UEEM). E aqui o impacto pode efetuar-se essencialmente a três níveis: imposição da UE em mecanismos institucionais domésticos (nível direto), modificação do contexto institucional para novos processos estratégicos de interação, implicando, por exemplo, a redistribuição de recursos e/ou poderes (nível menos direto), e alteração das convicções e expetativas dos atores domésticos (nível indireto). No entanto, a já referida ausência de competências formais no domínio do ordenamento do território a nível comunitário conduz a que seja por intermédio desta via indireta que o processo de europeização mais se verifique. O segundo modelo é o horizontal, cuja interação e influência podem ocorrer entre diferentes estados-membros ou regiões sem influência direta da UE (EMEM), embora tais processos possam ser facilitados por intermédio de instituições comunitárias. Ao nível do ordenamento do território, os programas INTERREG e ESPON constituem bons exemplos de tal cooperação e indutores de processos de aprendizagem mútua. O terceiro modelo configura um processo circular ou cíclico, em que os atores domésticos procuram integrar as suas ideias ao nível comunitário e, simultaneamente, são influenciados pela UE (EMUEEM). O já mencionado EDEC configura um bom exemplo deste modelo de europeização, na medida em que cada estado-membro

75 participou na sua elaboração e moldou o conteúdo do documento que acabou por ser publicado em 1999 e, posteriormente, aplicou as ideias e orientações estratégicas aí contidas nas suas políticas públicas e nos sistemas e processos de ordenamento do território (Duhr et al, 2007).

Os casos referidos mostram que o efeito Europa no campo do ordenamento do território tem decorrido essencialmente via informal e por ação de natureza intergovernamental. As já citadas Agenda Territorial da União Europeia, lançada em 2007, e a sua versão renovada TA2020, em 2011, constituem os mais recentes exemplos deste efeito. Contudo, embora este procedimento seja o mais natural, em virtude da ausência de competências diretas por parte da UE, a contribuição da CE para o processo de europeização no domínio do ordenamento do território é bem mais ampla, ainda que efetuada de forma indireta (Bohme e Waterhout, 2008). Um primeiro exemplo de influência indireta é por intermédio das políticas sectoriais com impacto territorial e da própria política regional da UE. Um segundo exemplo é através da produção e lançamento dos relatórios de coesão produzidos pela CE de três em três anos, nos quais se encontra definida a agenda para o desenvolvimento regional e para a política de coesão económica, social e, mais recentemente, territorial. Um terceiro exemplo é via fundos comunitários, os principais instrumentos da política regional e que influenciam a agenda cognitiva europeia e, claro está, a agenda referente ao domínio do ordenamento do território.

Existindo várias formas de promover o efeito Europa no domínio do ordenamento do território, facilmente se percebe que a amplitude desta influência nos estados-membros varia substancialmente. De facto, vários são os estudos que se têm debruçado sobre esta questão (e.g. Buunk, 2003; Ravesteyn e Evers, 2004; Bohme, 2006), mostrando que, embora este efeito seja claro, a natureza e o grau de impacto variam de país para país, devido essencialmente às diferentes condições territoriais, aos sistemas de governança e, inclusive, à forma como cada estado-membro transporta as políticas da UE para a legislação nacional (Bohme e Waterhout, 2008). No caso específico de Portugal, a evolução das políticas de ordenamento do território resultou também “da conjugação de diversos factores de “europeização”, com pesos distintos, mas que tendem a reforçar-se reciprocamente” (Mourato e Ferrão, 2010:19). A título de exemplo, inclui-se aqui a influência dos princípios, visões e conceitos adotados no EDEC e o efeito de iniciativas comunitárias, como o INTERREG, e do ESPON.

Sem surpresa, a coesão territorial, enquanto novo objetivo político comunitário, encontra-se também no seio de um processo de europeização, mas com uma vantagem adicional: com a institucionalização deste conceito, a CE passa a ter competências formais também ao nível das políticas de base territorial, proporcionando por isso uma maior interligação com as iniciativas de natureza intergovernamental no domínio do ordenamento do território. E, como já constatado, o princípio de coesão territorial passa então a estar expresso, quer em documentos orientadores como a Agenda Territorial, quer na própria

76 política de coesão e nos respetivos relatórios, conduzindo a uma maior integração discursiva com recurso a um vocabulário comum. A coesão territorial torna-se, por isso, num objetivo catalisador, à volta do qual diversos valores e políticas (territoriais e não territoriais) têm gerado práticas discursivas (Servillo, 2010:398): The EU policy documents represent the institutional production of discourses on the EU territory which characterize ESP [European Spatial Planning], and these discourses aim to clarify a system of shared values (real or supposed) that should play a normative role in spatial planning and development strategies across Europe.

Neste contexto, importa sublinhar o caso húngaro como um bom exemplo no que respeita a este fenómeno de europeização e ao esforço de clarificar os processos de formulação de políticas públicas tendo por base a coesão territorial, publicando um documento sobre a sua integração na agenda nacional (consultar Botka et al, 2009) e, na sequência deste, um outro documento para a implementação nacional da Agenda Territorial da EU, também tendo por base o princípio de coesão territorial (Ricz et al, 2010). Trata-se, porém, de um caso específico e isolado, muito possivelmente justificado pelo facto do lançamento destes documentos ter surgido durante o período em que a Hungria se encontrava na presidência da UE e, portanto, com este dossier em mãos. Consequentemente, e como refere Van Well (2012:1550), “Despite the recent degree of institutionalization and the growing body of solid policy-relevant studies on the topic, territorial cohesion remains essentially a moving target and each EU Member State and region conceptualizes the policy goal in Cohesion Policy instruments as befits the specific regional challenges and opportunities of the territory”.

2.2.3. O “efeito Europa” e o princípio de Coesão Territorial: uma ilustração com o caso