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Parte III Método, Resultados e Discussão

Capítulo 5. Canto Erudito

5.1. Adriana Kayama, Benito Maresca e as características do canto erudito

Adriana Kayama e Benito Maresca possuem relações muito diferentes com a profissão, apesar de especialistas em um mesmo tipo de canto. Ela traçou desde o início de sua carreira, em 1979, o caminho acadêmico, obtendo graduação em composição e regência, mestrado e doutorado em canto, e assumindo a cadeira de professora de canto lírico da Unicamp. Durante seu curso de graduação, recebeu orientação constante da professora Niza de Castro Tank, sua antecessora na cadeira de canto da Unicamp, e em seguida, na pós-graduação nos Estados Unidos, da professora Montserrat Alavedra. Como intérprete, A. Kayama firmou relações com a música de câmara e a música contemporânea (Adriana Kayama, Apêndice 2). Em sua carreira como professora da graduação, formou inúmeros cantores; na pós- graduação orienta trabalhos de destaque na literatura brasileira atual de performance vocal, tais como o de PACHECO (2004) e o de FERNANDES (2009), e publicando trabalhos importantes para o desenvolvimento do meio.

B. Maresca, por outro lado, iniciou seus estudos em meados do século XX, período em que a cultura operística era muito popular no país, e recebeu grande influxo de referências vocais vindas dos cantores estrangeiros presentes nas óperas montadas no Theatro Municipal de São Paulo e dos filmes e discos de estrelas consagradas na época, como Enrico Caruso, Beniamino Gigli e Gino Bechi. Sua busca inicial pelo estudo da técnica vocal se revelou constantemente frustrada: B. Maresca, tenor que empreendeu uma carreira nacional e internacional de quase 40 anos e foi um dos mais importantes expoentes do canto operístico no Brasil, relatou que ficava constantemente rouco após as tentativas de emitir notas agudas nas aulas com seus primeiros professores, e que considerava a maior parte dos docentes disponíveis na época como “charlatães” (Benito Maresca, Apêndice 2; GOMES, 2008).

Após muitas tentativas frustradas, seu encontro com o professor e maestro Marcel Klass nos anos 60 marcou o início de uma trajetória bem-sucedida, e a partir de então ele construiu seu conhecimento técnico empiricamente, durante suas atuações nos palcos, procurando pontualmente atendimento com professores dos países em que residia enquanto contratado dos elencos fixos de teatros da Europa,

sempre no mercado operístico. Em meados dos anos 90, problemas sérios de saúde foram gradativamente afastando-o do palco, e ele iniciou sua carreira como docente em caráter particular e no departamento de música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (GOMES, 2008; Benito Maresca, Apêndice 2). Intenso formador de cantores importantes do mercado erudito brasileiro, faleceu em junho de 2011, em plena atividade como professor particular, pouco mais de um ano após ter participado como sujeito da presente pesquisa.

Ao observar e receber instruções práticas de Adriana Kayama e Benito Maresca, o fator comum que mais se sobressaiu foi, sem dúvida, a importância preponderante que é conferida à qualidade da voz e da técnica vocal. O domínio técnico preciso, a uniformidade timbrística e a potência vocal apareceram, no canto erudito, de maneira mais determinante que nos outros estilos estudados, como pré- requisitos para o desempenho satisfatório do cantor.

Apesar destes dois professores terem backgrounds tão distintos, percebe-se que em seus ambientes pedagógicos existem objetivos técnicos básicos muito próximos esteticamente69. Embora haja uma série de diferenças qualitativas entre suas abordagens do canto e pertençam a diferentes sub-nichos estilísticos dentro do canto erudito70, tal proximidade estética é marcada pela presença de um ideal sonoro pré-estabelecido a ser atingido pelos alunos, traço que possivelmente indica uma característica importante da pedagogia vocal erudita.

Para A. Kayama, esse ideal sonoro se reflete numa voz

que tem alguns elementos básicos de ressonância: que tenha um foco eficiente e suficiente para que a voz se projete, e ao mesmo tempo você tem que ter uma “redondeza” dessa voz para que ela não seja desconfortável, incômoda. O texto tem que ser compreensível na região média, média-grave, até média-aguda; no canto popular você vai para o falsete, acha outros caminhos, porque o texto está em primeiro lugar . No canto erudito não, você abre mão em alguns momentos da boa compreensão para ter uma bela voz, uma boa produção vocal. Para que seu instrumento soe o mais lindo possível. (Adriana Kayama, Apêndice 2, p. 226)

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Especialmente se comparados a outros estilos musicais fora do universo erudito.

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A ópera, a música de câmara, o repertório contemporâneo, a música antiga, todos com diferenças consideráveis de ideal de sonoridade vocal.

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Para B. Maresca, a questão da beleza da voz não é tão importante quanto a capacidade de imprimir potência à voz e desenvolver a maior extensão vocal possível, em especial na região aguda. A capacidade de manutenção da uniformidade timbrística é fundamental para os dois professores. Para B. Maresca, o domínio técnico é um pré-requisito, e a interpretação do repertório, um passo posterior a este domínio:

Primeiro, o sujeito tem que entender a mecânica do canto, a técnica. Quando a pessoa tem todo o domínio da técnica, canta o que quer. Porque quando você doma a técnica totalmente, então você pode cantar com muito mais facilidade e pensar naquilo que é muito importante depois da técnica: a interpretação. (Benito Maresca, Apêndice 2, p. 210)

Para ele o desenvolvimento da técnica e a prática de repertório caminham juntos na formação do cantor, numa linha de evolução que acompanha a própria história do canto erudito:

A formação de um aluno para cantar ópera é isso: fazer as árias antigas, fazer já, depois das árias antigas, um repertório de ópera, mas daquelas mais líricas, e não pesadas. Vai árias antigas e, depois, devagar, devagar, entrando no lírico. Verismo71 não dá para fazer assim, logo de cara. (Benito Maresca, Apêndice 2, p. 211)

A terminologia utilizada pelos dois professores coincide muito pouco, apesar de a sonoridade vocal pretendida ser muitas vezes a mesma. Um dos motivos para a falta de identidade nos termos parece ser uma diferença conceitual de abordagem da técnica vocal, diretamente relacionada às diferentes referências de cada professor: B. Maresca se baseia no exemplo e na leitura de textos de grandes cantores, como Enrico Caruso e Lilli Lehmann, enquanto A. Kayama afirma se

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Verismo é um termo que designa algumas das óperas populares no século XIX e início do XX, como

Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, e La Bohème, de Giaccomo Puccini. As óperas ditas

veristas caracterizam-se pelos enredos realistas e dramáticos. Quando B. Maresca utiliza o termo “verismo” de maneira genérica, faz referência ao fato de que as óperas do século XIX posteriores a Rossini tendem a ter escrita orquestral contínua e de maior densidade, e exigir dos cantores o domínio de uma maior dramaticidade expressiva- traduzida vocalmente por uma gama extrema de modificações timbrísticas e pela maior exigência de projeção vocal, em comparação às obras de períodos anteriores. Neste período surgiram também teatros líricos maiores. Todos esses fatores levaram à necessidade de uma técnica vocal que pudesse formar cantores com vozes muito mais potentes.

basear mais em autores da pedagogia vocal moderna, como Richard Miller e Barbara Doscher.

Nas tabelas abaixo, os termos mais utilizados pelos sujeitos foram organizados de modo a possibilitar uma visualização imediata das amostras de linguagem verbal recolhidas em campo. Também foram esquematizados os principais conceitos técnicos subjacentes ao modo de trabalho de cada professor e as ferramentas técnicas mais utilizadas por eles.

As tabelas 1 e 2 foram elaboradas com base na observação de 19 aulas regulares do estúdio de Benito Maresca e na análise minuciosa do registro em vídeo das 4 aulas recebidas do professor. Elas representam um esquema dos termos mais recorrentes em sua prática pedagógica, ao menos durante o período observado (de 10/02/2010 a 11/03/2010).

Já as tabelas 3 e 4 representam as expressões verbais mais importantes na prática pedagógica da Profa. Dra. Adriana Kayama, levantadas a partir da observação de 17 aulas regulares ministradas aos alunos de graduação em canto lírico da Unicamp entre os dias 04/05/2010 e 31/05/2010 e da análise das 4 aulas de observação participante no mesmo período.

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Benito Maresca

Termo Principal Termos relacionados/ semelhantes Contexto Termos negativos/ defeitos Possíveis significados

Apoio Segurar; sustentar; aumentar a força na pelve; aumentar a pressão; manter o concreto “lá embaixo”; manter a postura dos músculos abdominais; é como a propulsão de um foguete; como pular de um trampolim; como a apneia de um mergulho

Relação entre canto e respiração

Tônus abdominal ideal para fornecer o melhor fluxo expiratório possível, fator indispensável para a qualidade final da voz Desapoiar; desmontar, perder o

apoio; perder a pressão

Diminuir fluxo de ar/ tônus abdominal

Garganta livre Rosto solto; boca e mandíbula livres; garganta aberta; boca aberta; tubo de PVC livre; um formato aberto da garganta, similar ao da inspiração ou de um bocejo; imaginar uma bolha dentro da boca que se expande em todas as direções ao inspirar ou ascender na escala

Manobras articulatórias Cantar sem tensionar mus- culatura extrínseca da laringe; aumento do espaço buco- faríngeo; levantamento do palato mole

Apertar, prender Tensionar musculatura extrín- seca da laringe; Perder a conexão entre respiração e caixa de ressonância; perder o controle do espaço buco- faríngeo

Ressonância alta Cantar alto (em ressonância alta); cantar projetado; cair na ressonância;

Sonoridade geral da voz Combinação de ajustes de respiração e articulação (“apoio” e “garganta livre”) garantindo conexão com caixas de ressonância

Deixar cair na garganta / no peito; fechar a garganta

Perder a conexão entre respiração e caixa de ressonância; perder o controle do espaço buco-faríngeo

Conceitos dominantes/Ferramentas técnicas:

Existe um ideal sonoro a ser atingido pelo aluno com o treinamento. Este ideal tem como principais características a projeção, a extensão vocal e a uniformidade timbrística.

A respiração e o tônus abdominal/intercostal ao expirar são a chave da sonoridade da voz lírica; o manejo desta musculatura deve ser extremamente preciso e vigoroso.

O relaxamento da musculatura extrínseca da laringe e a abertura interna da boca são imprescindíveis para o canto eficiente.

A ressonância alta (sonoridade ideal) é resultado da liberdade de produção e do apoio.

Os fenômenos de passagem de registro são automaticamente eliminados se a ressonância estiver alta (os registros pertencem ao domínio da ressonância).

O ar sob pressão deve atingir a caixa de ressonância, localizada na parte superior do aparelho fonador (incluindo seios nasais e paranasais), o que acontece se a garganta estiver livre e houver apoio suficiente.

O canto se desenvolve pela prática e pelo ouvido. Por isso a prática dos vocalises e o bom exemplo do professor são fundamentais

Série de vocalises semanais para todos os alunos, revezando a cada tonalidade uma das cinco vogais da língua italiana72, sempre contemplando 1) aquecimento, 2) frases longas, 3) extensão vocal, 4) flexibilidade/agilidade, e amiúde 5) controle da intensidade vocal (dinâmica – piano/forte). Não é favorável a explicações constantes sobre fisiologia, mas tende a utilizar poucas metáforas e recorrer mais a instruções físicas diretas (p.e. “abra mais a boca”)

Tabela 1: Benito Maresca: conceitos e ferramentas técnicas.

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Adriana Kayama

Termo Principal Termos relacionados/ semelhantes Contexto Termos negativos/ defeitos Possíveis significados

Conexão Contato; estar conectado; suporte Relação entre canto e respiração;

Energia respiratória ideal: nem insuficiente nem demasiada; ajuste de fonação ideal Empurrar X desconectar Imprimir pressão subglótica

exagerada ou insuficiente ao canto

Mecanismo leve/ pesado

Fonação Registros laríngeos

Posturas Achar o ressoador; postura alta e baixa; boa ressonância

Manobras articulatórias Configurações de trato vocal adequadas

Sair ou cair da postura; postura baixa

Perder a configuração de trato vocal ideal

Máscara Foco; brilho; ponta; na frente; mordido; alto; no ressoador; projeção; boa ressonância

Sonoridade geral da voz; harmônicos agudos, caráter de “penetração” do som

Ataque vocal preciso; configuração de trato vocal adequada (ênfase nos zi- gomáticos e na elevação do palato mole); presença de har- mônicos agudos e ausência de ruídos transientes ou sopro- sidade

Ficar aquém da máscara; perder o foco; escapar; desmontar

Sonoridade insatisfatória

Redondo Corpo; som cheio; espaço; bexiga que cresce dentro da boca; mastro de circo que se expande

Sonoridade geral da voz; harmônicos graves, sensação de preenchimento ou de “volume”

configuração de trato vocal adequada (alargamento fa- ríngeo, abaixamento de la- ringe);

Apertar X entubar; pinçar a voz

Alargamento insuficiente X alargamento excessivo; tensão na musculatura extrínseca da laringe

Conceitos dominantes/Ferramentas técnicas:

Existe um ideal sonoro a ser atingido pelo aluno com o treinamento. Este ideal tem como principais características a projeção, a beleza e a flexibilidade da voz e a uniformidade timbrística

Não utiliza instruções fisiológicas, mas costuma explicar ao aluno o que ocorreu em termos fisiológicos quando ele obteve o ajuste ideal. Possui um amplo repertório de termos para referir-se à sonoridade ideal ou à inadequada

Importância do ataque vocal equilibrado

Uniformidade timbrística das vogais e regiões da extensão Transição suave entre sons (legato/glissando)

Postura facial “farejada” (elevação dos arcos zigomáticos)

Exercícios com sons facilitadores: vibração de língua e lábios, sons fricativos ([v], [z])

Exercícios com atenção ao legato apenas com vogais; [i] como vogal de “máscara” e [o] como vogal de “redondo”

Plano de exercícios varia conforme o aluno.

Tabela 2: Adriana Kayama – conceitos e ferramentas técnicas