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Parte III Método, Resultados e Discussão

Capítulo 5. Canto Erudito

5.4. As metáforas proprioceptivas e a teoria acústica inharmônica

O termo “ressonância alta” aparece na linguagem de Benito Maresca como a sonoridade ideal desejada, que resulta da voz do aluno quando este é capaz de integrar bom domínio do “apoio” e da “garganta livre”:

A ressonância é a coisa mais importante. E tem uma maneira de chegar na ressonância, como você mesma já experimentou. Se você respirar pela boca, a tua garganta está livre, e automaticamente o palato mole levanta um pouco - o suficiente para você entrar na ressonância. Acabou... Mas tem que estar apoiado, senão não funciona. (Benito Maresca, Apêndice 2, p. 205)

O termo aparece, portanto, como representante de uma qualidade positiva a ser atingida pelo cantor, assim como em A. Kayama o termo “boa ressonância”. “Ressonância” parece de fato ser um dos termos científicos que foram mais largamente incorporados ao jargão do ensino de canto, embora quase sempre com acepções metafóricas que se distanciam do conceito acústico de mesmo nome.93

Evidentemente, como já discutido no Capítulo 2, é uma tendência natural do processo pedagógico do canto que isso ocorra. Entretanto, a descrição de B. Maresca sugere também uma linhagem de pensamento sobre a ressonância que remonta à teoria inharmônica, proposta no século XIX por pensadores como E.W. Scripture.94

Como comentado no capítulo 3, tal teoria esteve em voga no final do século XIX, momento de explosão da literatura especializada em canto e da tendência de se vincular bases científicas aos manuais de estética vocal. Muitos manuais importantes, como o de Lilli Lehmann95, utilizaram-na como base, e pela relevância

93

Sobre isso, ver a observação de Vennard a respeito da mescla de termos científicos e metafóricos no Capítulo 3, tópico 3.3.

94

Ver Capítulo 4, tópico 4.4.

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LEHMANN, Lilli. How to sing. Trad. do alemão de Richard Aldrich. Nova Iorque: MacMillan, 1924. Este foi um dos livros citados por B. Maresca como referência teórica, além do livro de Enrico Caruso (TETRAZZINI, Luisa, CARUSO, Enrico. Caruso and Tetrazzini on the art of singing /by Enrico Caruso and Luisa Tetrazzini. Nova Iorque: Dover, 1975). Segundo ele, os vocalises, e não a parte teórica, são os conteúdos mais úteis de tais títulos – e de fato ele inclui alguns deles em sua série semanal.

artística seus autores, além do valor empírico de seus ensinamentos, acabaram se tornando referências importantes na pedagogia vocal até os dias de hoje.

A herança da referência teórica inharmônica aparece no pressuposto de que o ar dos pulmões atinge uma ou outra cavidade do aparelho fonador e da face, conforme a estratégia respiratória que o cantor utiliza para expirar ou mesmo conforme ele mentaliza a projeção vocal em uma dessas cavidades. Tal pressuposto gera a ideia de que o ar pode ou deve ser direcionado para diferentes pontos do corpo, produzindo assim diferentes tipos de ressonância.

A teoria de Scripture foi refutada em favor da teoria harmônica, que considera que as pregas vocais produzem não apenas pulsos de ar, mas um som complexo, composto de fundamental e harmônicos, e que a ressonância vocal acontece pela interação entre estes harmônicos e os formantes do trato vocal96. No entanto, a teoria inharmônica vai ao encontro das sensações proprioceptivas do cantor, e origina uma série de metáforas correntes no jargão atual. São exemplos deste jargão as expressões “voz na frente”, “voz atrás”, “focalizar a voz”, “ressonância alta” ou “voz na máscara” (em geral associadas à vibração dos seios paranasais), além de referendar as já antigas “voz de peito” e “voz de cabeça”.

Tais termos são muito presentes não só nas aulas de Benito Maresca, que citou Lilli Lehmann como uma de suas referências, mas talvez até mais numerosamente na prática pedagógica de Adriana Kayama, como é possível observar se comparamos a tabela 1 à tabela 3. A utilização dos termos ligados à referência de Scripture coexiste em sua prática, no entanto, com os conceitos modernos sobre ressonância, como é possível perceber pelo trecho abaixo, transcrito de uma das aulas regulares da Unicamp:

Você está perdendo o foco onde está querendo fazer mais doce. Não deixe o instrumento se desorganizar para fazer isso. Não precisa socar pra chegar lá, mas não pode abandonar. Não coloque mais pressão pra voz ficar naquele ponto onde o dedo está [o dedo indicador da aluna está colocado no Ponto de Mauran97]. É claro que tem um ajuste no trato vocal pra eu sentir a sensação fixa do dedo.

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Para ler mais sobre as duas teorias, ver item 3.4 desta tese.

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O Ponto de Mauran se situa no interior da boca, próximo à borda alveolar, logo atrás dos dentes da frente da arcada superior. M. Mauran foi um célebre professor francês de canto, que acreditava que a projeção vocal atingia seu nível ótimo se focalizada neste ponto específico (DOURADO, 2004, p. 260).

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Não é que o trato vocal se posicione para direcionar o som de fato pra aquele lugar. É que ele adquire um formato que faz com que sintamos lá o som.

A gente pensa que se canta tudo numa postura só. Talvez outros instrumentos sim. Mas pra nós é muito móvel o tempo todo. É preciso mudar de postura, mas sem movimentos bruscos. Porque se fizermos movimentos bruscos, perdemos a conexão de um som com o outro. (transcrição realizada em 11/05/2010, a partir de observação de aula regular da Unicamp, negritos nossos)

Foi comum no período observado que A. Kayama fornecesse uma explicação fisiológica para as metáforas ou manobras que sugeria. Os negritos mostram os pontos em que a professora utilizou termos metafóricos para complementar sua explicação.

Seja com ou sem explicações fisiológicas associadas, a força das imagens proprioceptivas e da herança subliminar da teoria inharmônica na pedagogia vocal e na área de voz brasileira parece evidente, pois tal tipo de metáfora aparece não só na terminologia de B. Maresca e na de A. Kayama, mas na de todos os outros professores abordados nesta pesquisa, como será apontado mais adiante. Além disso, é difundida também em vários tipos de literatura sobre voz produzidos no Brasil. Por exemplo, nos manuais de canto, como em GOULART, COOPER (2000):

Os vocalises que contrastam as ressonâncias de peito e cabeça são sempre frases com grande extensão (...) Coloque uma das mãos no peito (…) e suba glissando até o mais agudo. Observe que no início, você vai sentir uma forte vibração em sua mão; mas num determinado ponto deste contínuo, ela desaparece. Neste ponto é

que a ressonância de peito é substituída pela de cabeça. (p. 17,

itálicos nossos)

Na literatura acadêmica sobre performance vocal, como em RATZERSDORF (2002):

Mais especificamente, [o encorpamento sonoro] trata-se de uma sutil sensibilização para a produção de voz ressoando predominantemente nas cavidades frontais da cabeça, mesclando-se com a ressonância na caixa toráxica trabalhada em toda a extensão

vocal, sustentada pelo trabalho dos músculos envolvidos na respiração diafragmático-abdominal-intercostal, de maior potência. (p. 68, itálicos nossos)

Constatou-se que as pessoas de face longa apresentam qualidade vocal grave com tendência a ser abafada e escura, associada à

ressonância posterior. E as pessoas de face curta se caracterizam

por qualidade vocal aguda com tendência metálica e ressonância

faríngea (RAMIRES et al., 2010, itálicos nossos)

Diante deste quadro terminológico complexo, e das diferenças de história pessoal e estética dos dois sujeitos pesquisados no universo do canto erudito, um tópico de concordância desperta especial atenção:

Eu sempre concilio as metáforas com o conhecimento fisiológico. O problema é que se você começa só a falar em cima da fisiologia da voz, você começa a dar um nó no aluno, é como tentar ensinar a andar, ou a dirigir um carro, pensando no movimento que você tem que fazer com a perna, ou com braço... Você não pode pensar por aí: o quanto que eu tiro o pé, o quanto que eu não tiro o pé... Você tem que ir por outro caminho... Mas é importante entender o porquê de estar funcionando. É difícil você não interferir no gesto se você está tentando observar o gesto. Mas eu não nego a informação, pelo contrário, eu complemento com a informação. (Adriana Kayama, Apêndice 2, p. 221)

Eu nunca usei os termos da foniatria né? Você vai falar de cricóide, de aritenóide para um aluno, ele vai ficar louco... Nem precisa falar. Porque toda essa musculatura, Joana, ela é regida pelo cérebro. E quem é que manda no teu cérebro? É você. (Benito Maresca, Apêndice 2, p. 208)

Conquanto A. Kayama explique os processos fisiológicos com maior frequência do que B. Maresca, tende a utilizar maior número de metáforas para simbolizar as sonoridades pretendidas. O professor, por outro lado, adota uma linguagem mais simples, recorrendo com muita frequência aos três termos metafóricos principais relatados (“apoio”, “garganta livre” e “ressonância alta”), e a instruções objetivas como “abra mais a boca”, embora tenha se referido apenas na primeira aula recebida aos processos fisológicos envolvidos no canto.

Ambos os professores julgam que o processo de construção da voz cantada possui dimensões cognitivas holísticas, que necessitam de um tipo de atenção multi- fatorial a fim de favorecer a aquisição do automatismo técnico. A escolha assumida de ambos pela linguagem metafórica parece estar diretamente relacionada a este julgamento.

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