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Parte III Método, Resultados e Discussão

Capítulo 6. Canto Comercial Contemporâneo Norte-americano (CCCA)

6.1. Marconi Araújo, Isabêh e as características do canto comercial contemporâneo

Na amostra de CCCA, foram analisados os termos e procedimentos utilizados pelos professores Marconi Araújo e Isabêh.

Ambos os professores tem histórias formativas muito diferentes. Isabêh começou sua carreira como instrumentista e aprendeu a cantar com o tempo, a partir de pesquisa de repertório e a prática, sem nunca ter tido um professor de canto regular. Sua iniciativa de se envolver com a pedagogia vocal veio de dois fatos marcantes em sua vida: o primeiro, seu envolvimento com o movimento de música

black brasileira, junto a Paula Lima, Bukasa, Cassiano, Firma Soul e Silveira. Isabêh

tornou-se um pesquisador da história da música negra norte-americana e brasileira, e, em seguida, da música Gospel, sua especialidade atual, atraindo um público que não encontrava professores especializados no gênero.

O segundo foi um problema de disfonia, que o levou ao mesmo tempo a questionar a falta de sistematização do canto popular e a tomar contato com a Fonoaudiologia. O professor passou a buscar informações na literatura fonoaudiológica nacional (citando como principais referências Marta Andrada e Silva, fonoaudióloga especialista em canto popular, e Sílvia Pinho, fonoaudióloga especializada em treinamento da voz cantada) e pedagógica internacional e hoje é uma das principais referências no meio black e das mais importantes no ensino de CCCA.

Marconi Araújo também começou a pesquisar o canto popular americano de maneira autônoma, mas teve formação regular em canto erudito e realizou pós- graduação em performance vocal erudita nos Estados Unidos. Atuando como regente e professor de canto em Brasília, formou diversos cantores no estilo CCCA. Quando da chegada das franquias de musicais americanos no Brasil, que teve seu marco na montagem do espetáculo Les Misérables, no início dos anos 2000, os produtores americanos quiseram conhecer o professor brasileiro responsável pelo treinamento de uma série de cantores que preenchiam os requisitos vocais trazidos por eles do padrão norte-americano de canto. M. Araújo terminou por ganhar, assim, o cargo de preparador vocal da versão brasileira do espetáculo, e a partir de então

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tem atuado como um dos principais professores de teatro musical do Brasil, orientando ou tendo orientado a maior parte dos cantores em atuação nesse mercado, além de seguir com sua carreira como contra-tenor erudito.

Apesar da diferença de background em sua formação como cantores, os dois professores relatam que na área da pedagogia vocal de CCCA são pesquisadores autodidatas e disciplinados, sempre em busca de novas informações sobre as particularidades do tipo de canto que ensinam e de um embasamento teórico mais sólido. Além das influências vindas da fonoaudiologia brasileira, encarnadas especialmente na figura de Sílvia Pinho, M. Araújo afirma basear-se nos escritos de Richard Miller e nos tratados escritos pelos castrati Tosi e Mancini, além de no de Manuel Garcia. Na parte de CCCA, cita Jan Sullivan como principal referência. Já Isabêh relata sofrer influências da dinamarquesa Kathrine Sadolin, fundadora do método Complete Vocal Technique.

Ambos os professores realizam workshops regulares sobre pedagogia do canto popular em parceria com a fonoaudióloga Sílvia Pinho. A influência da terminologia e dos conceitos apresentados por ela são notáveis, em especial no caso de Isabêh, como se verá mais adiante. Isabêh relata também ter buscado apoio no estudo da Pedagogia para abordar melhor o ensino do canto.

Ao analisar o material colhido durante o ciclo de pesquisas, um fator imediatamente se sobressaiu: a diversidade de tipos de qualidade vocal diferentes que o cantor deve dominar para ter um desempenho satisfatório em seu mercado de trabalho. Tal diversidade se deve em parte, é claro, à efetiva infinidade de estilos musicais contidos na sigla CCCA: teatro musical, rock, pop, country, gospel,

Rhythm’n’Blues, etc. Mas percebe-se que mesmo dentro de um só estilo busca-se

uma formação vocal que disponibilize uma gama de sonoridades muito distintas entre si, tais como a voz soprosa e o vocal fry, por exemplo, ou o falsete e o belting.

No ciclo de aulas particulares realizadas como parte do procedimento de observação participante desta pesquisa, chamou a atenção como a cada novo encontro com os dois professores havia uma nova manobra vocal a ser conhecida, praticada e integrada ao universo interpretativo. Ambos relataram ter mostrado um panorama do que costumam fazer em seus processos regulares, que podem ser bem mais lentos, mas que tais tópicos tão distintos fazem de fato parte de seu repertório corriqueiro. Em relação ao canto erudito, portanto, em que a pesquisadora percebeu haver um objetivo vocal central a ser perseguido por meio do controle de

vários detalhes técnicos, pareceu que o CCCA tem de fato diversas metas vocais definidas que, juntas, compõem o todo da interpretação.

Sobre esta questão, a professora Jeanie LoVetri assim coloca as diferenças de ideal sonoro entre os dois tipos de canto:

Na minha opinião, o treinamento vocal erudito, não importa quem o esteja fazendo, acaba sendo mais ou menos focado em duas coisas: criar um ajuste de ressonância específico e também ter energia respiratória suficiente para produzir muito volume [intensidade]. À parte disso, cada professor gosta de um certo tipo de estilo: alguns gostam do som bem na frente, outros preferem mais atrás. Mas o som realmente tem que ter aquela ressonância que nós chamamos da ressonância do formante do cantor, e apoio respiratório, de modo que o som seja forte mas a garganta continue confortável. Já o canto popular tem a ver com conseguir manipular a sua voz falada e extendê-la em todas as direções: mais agudo, mais grave, mais forte, mais piano, utilizando mais formas, qualidades e cores nos sons das vogais. (Jeanette LoVetri, Apêndice 2, p. 330)98

A questão da forte relação com a voz falada explica não somente as diferenças entre o CCCA e o canto erudito, mas entre o CCCA e o canto MPB, embora ambos pertençam ao domínio do canto popular: a sonoridade da língua inglesa de sotaque norte-americano enseja ajustes vocais completamente diferentes daqueles naturalmente adotados pelos falantes do português brasileiro. Além disso, as culturas do Brasil e dos EUA tende a gerar preferências estético-vocais diferenciadas, que levam esses dois tipos de canto a se distinguirem bastante em sonoridade. Embora a influência norte-americana no Brasil seja acentuada, especialmente no mercado da grande mídia, tais diferenças linguístico-culturais podem ajudar a explicar as dificuldades encontradas por estudantes de CCCA em transpor a sonoridade vocal característica do estilo ao português, ou, por outro lado, em cantar em português sem que a voz soe com “sotaque” norte-americano.

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In my opinion classical vocal training, no matter who is doing it, ends up being about more or less

two things: about creating a specific resonance and also having enough breath power to make a lot of volume. Beyond that, individual teachers like a certain kind of style: someone would like it very forward, someone would like it more back… But it really has to have that resonance that we call the singer’s formant resonances and breath support, so that the sound can be loud in a way that the throat gets comfortable. Whereas commercial music is really about extending the speaking voice in all directions: higher and lower, louder and softer, and more shapes and qualities and colors in the vowel sounds.

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Segundo Marconi Araújo, tal discrepância gera a necessidade de se adaptar a pedagogia do CCCA à realidade brasileira:

O belting, por exemplo, é uma coisa praticamente estrita da língua inglesa, Tem toda uma colocação específica dessa língua. Pessoas que saem daqui e vão estudar belting nos Estados Unidos, voltam pra dar aula e não conseguem dar aula aqui. Por quê? Porque o ensino que se dá de belting lá nos Estados Unidos você não pode dar aqui. É impossível. O background deles é um e o nosso é outro. Se você pedir pra uma belter americana, uma aluna minha americana falar o nome dela, ela fala de um jeito. Se você pedir pra uma brasileira falar o nome dela, ela vai falar de outro jeito. Então, se o belting é baseado na voz falada, a voz falada americana é muito mais frontal do que a voz falada no Português. Então, você vai mudar completamente o approach. (Marconi Araújo, Apêndice 2, p. 251)

Outro fator a observar é que é comum que os professores de CCCA, em especial os de teatro musical, possuam a característica do cross-over99 com o canto erudito. São exemplos no Brasil de professores com esta característica, além de M. Araújo, Mirna Rubim e Rony Kneblewski100, três dos principais profissionais atuantes na área no eixo Rio-São Paulo.

Quase todos os métodos vocais de CCCA mais famosos se propõem a ensinar técnica vocal baseada na fisiologia, expondo os ajustes fonoarticulatórios dos diversos tipos de canto e desenvolvendo ferramentas para o domínio dos mesmos. É o caso do Speech Level Singing™, de Seth Riggs, do Complete Vocal Technique™, de Cathrine Sadolin, do Estil Voice Training™, de Jo Estill, do Vocal

Power™, de Elizabeth Howard, e do Voiceworks®, de Lisa Popeil. Os nomes de

alguns dos métodos já dizem bastante sobre seu propósito de domínio universal da técnica por meio do manejo eficiente do aparelho fonador.

M. Araújo comenta que sua abordagem pedagógica não é pré-concebida, mas condicionada pelas necessidades do aluno:

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Ver definição na introdução desta tese.

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Mirna Rubim, ex-professora de canto da Unirio, atua tanto em óperas quanto em musicais, e é uma das principais professoras particulares de CCCA do Rio de Janeiro (ver: http://www.estudiovoce.com.br/users/mirna-rubim). Rony Kneblewski formou-se em canto lírico e pós- graduou-se em fonoaudiologia na PUC. É um dos professores certificados no método criado pelo professor norte-americano Seth Riggs, o Speech Level Singing™, foi preparador vocal de musicais como “Os Produtores” e um dos professores particulares de CCCA mais requisitados de São Paulo.

Eu tenho vários tipos de abordagem. Eu acho que o ensino do canto é uma das coisas mais difíceis, porque nós não temos um mesmo instrumento. Nunca. Então, nenhum instrumento é igual ao outro. Tem que haver uma adaptação na hora do ensino. E também, o estilo que o aluno vai cantar influencia muito em posicionamento laríngeo, posicionamento faríngeo, em ressonadores, em articuladores. Eu tenho que, primeiro, saber o que o aluno quer. (Marconi Araújo, Apêndice 2, p. 250)

Isabêh não trabalha com canto erudito; ensina predominantemente os estilos vocais ligados ao chamado canto black, mas forma também cantores de música popular brasileira, em especial cantores de pagode. Sua atuação cross-over entre os estilos originalmente norte-americanos e estilos forjados na cultura brasileira sugere a crescente permeabilidade entre a cultura vocal brasileira e a norte-americana. De fato, é cada vez mais comum observar na música brasileira da grande mídia a influência da música pop dos Estados Unidos, principalmente no campo da ornamentação vocal, uma das especialidades desse professor. É possível que tal influência se dê também por meio da crescente busca pelos novos cantores por formação com professores cross-over tais como os citados neste trabalho.

Nos dois casos analisados observou-se também a preocupação com a eficiência e a rapidez do treinamento: Isabêh possui um programa definido que denomina “Sete Passos para o Canto Popular”, a ser cumprido em mais ou menos um ano de estudo. M. Araújo afirma ter uma preocupação grande em estabelecer objetivos definidos para cada aluno:

A minha aula é uma aula para profissionais. Geralmente, o meu público-alvo são ou cantores líricos que querem aprender a fazer teatro musical ou cantores de teatro musical que já cantam e vêm para mim com uma voz estragada (...) De acordo com o que o aluno quer, e o que eu acho que ele pode fazer, eu crio um achievement, eu crio um projeto. Este projeto pode mudar no meio, mas eu crio uma meta para este aluno, e geralmente essa meta é um curto período de tempo, geralmente dois meses, porque depois de dois meses eu vejo como ele rendeu e crio outra meta. (Marconi Araújo, Apêndice 2, p. 261)

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