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AFINAL, ELAS SÃO MULHERES

No documento PR BRIENA PADILHA ANDRADE (páginas 130-136)

Sempre evito falar que trabalho como profissional do sexo, principalmente nos lugares que não me conhecem, assim, as pessoas tem mais respeito, se eles souberem que é mulher da zona, acham que podem fazer tudo (SABRINA).

O ser e constituir-se mulher, atualmente, na sociedade, demanda uma série de comportamentos, atos, ações, direções e posturas que são historicamente construídos e empregados aos indivíduos do sexo feminino. Esses aspectos, referentes à forma de ser uma mulher, são dados e reproduzidos por uma sociedade patriarcal e machista, a qual pauta-se na heteronormatividade.

Simone de Beauvoir (1967), em sua obra O Segundo Sexo expõe a seguinte frase: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Segundo a autora a construção sociocultural do ser mulher está submetida a uma série de aspectos que esses indivíduos deverão exercer, caso queiram se aproximar da visão de mulher, por exemplo, doçura, contenção, discrição, passividade, submissão, pudor, graciosidade, silêncio, sensualidade. A esta é ensinado e esperado ações de cuidar, de se doar, formas específicas de vestir-se e pentear-se, ressaltando a feminilidade que deve ter. Esses atributos parecem ser socialmente construídos e reproduzidos quando se fala na figura feminina.

A frase de Simone Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se mulher, passou a serem reproduzidas por muitas mulheres de distintos posicionamentos, elas faziam referência a essa citação para dizer que o ser e estar nesse mundo não é algo dado a priori, mas que sim, representa todo um processo de construção. Nesse viés, a construção do ser mulher estava acoplada a uma série de atributos, tais como, gesticulações, comportamentos, das predileções e das contrariedades, os quais lhes eram instruídos e repetidos, em suas vivências cotidianas, seguindo as regras e

valores de determinada cultura (LOURO, 2008). Desde o princípio da existência do ser feminino, várias características lhes são dadas e, rotineiramente, são reproduzidas para que, assim, o ser mulher seja criado, moldado e adestrado para determinado local.

Bourdieu (2002), em sua obra “A dominação Masculina”, apresenta que os elementos contrastantes da identidade masculina e da feminina se esculpem, através de formas duráveis de se utilizar o corpo, ou ainda, de sustentar determinadas condutas, que se mostram como que efetuação, melhor dizer, a naturalização de uma espécie de ética.

Louro (2008) explana e discute sobre a ideia que nada é dado à priori, ou seja, natural, que já nasce com o indivíduo. O ser homem ou mulher acontece por meio de sistemas que se dão de acordo com o meio cultural em que vivem, que lhes vão moldando para tais posicionamentos. Posso fazer uma ligação lúdica com o que Louro (2008) diz sobre um escultor que, na hora em que pega o barro para fazer uma peça, essa peça não existe a priori naquele barro, mas, com o tempo, ela é moldada e toma forma para que, assim, possa atender a determinada encomenda, de acordo com os princípios a quem será vendida. Assim são os seres, quando nascem, são moldados para que atendam a determinados atributos para ser mulher ou homem.

Teóricos e intelectuais travam uma disputa para compreender e dar sentido a esses processos de vir a ser, porém, costumam aceitar a ideia de que não é na ocasião do nascimento e da instituição de um corpo como de mulher e homem que faz deste um indivíduo masculino e feminino. A formação do gênero e da sexualidade é um processo que ocorre ao longo da vida, e dá continuidade infinitamente (LOURO, 2008).

A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo (LOURO, 2008, p.18).

Todas essas instituições, igreja, família, escola, medicina, são partes que auxiliam em todo o processo de construção do ser homem e mulher, da sexualidade e forma de vivenciar essa. Foucault (1988), em sua obra A vontade do Saber,

relacionada à História da Sexualidade, expõe que desde o Século XVII, o sexo ganhou um discurso geral, porém que esse era realizado sob uma espécie de normativa, essa que era regida pela escola, pelo estado, pela família e, também, pela medicina. Essas instituições, mesmo que não de forma restritiva, punitiva, exerciam certo poder sobre sexualidade dos indivíduos, construindo-as para essas ordens. Trago essa passagem de Foucault, como forma de complementar a discussão referente à construção do ser homem e ser mulher e a influência que os meios institucionais e legais exercem sobre essa.

Recomendações, vocábulos de ordem nos interrogam incessantemente, disciplinando-nos sobre a saúde, comportamento, religiões e amor. Com isso, pronunciam o que devemos priorizar, acolher ou o que devemos enjeitar, auxiliando- nos a construir corpos e estilos, as quais nos guiam sobre a maneira de existir e viver. Como já citado anteriormente no texto, alguns desses conselhos partem de instituições que já são reconhecidas por certo grau de poder, como a ciência médica, família, religião e justiça (LOURO 2008). Essas autoridades, em nosso cotidiano, seguem nos moldando, tais como o barro do escultor, nos mostrando os caminhos certos e incertos, as coisas corretas ou incorretas, as posturas decentes ou indecentes, o que é ser homem ou não, o que é ser mulher ou não, e o que devemos fazer para sermos reconhecidos e respeitados enquanto tal.

Abordei a questão da construção social acerca dos indivíduos e as forma de ser, estar, viver, para adentrar à problemática da prostituição. Como foi passível de observar no início do texto, com a frase de Beauvoir, que se refere à construção do ser mulher, ou seja, algumas características e comportamentos que denotam o ser mulher na sociedade. Profissional do sexo vem confrontar com os comportamentos esperados para uma mulher de recato, submissão, fechamento, doçura. Ela rompe com essa ética esperada de seu corpo, de sua postura. Ao se exibir, ao erotizar a sua figura, ao conquistar os homens, ao ir à luta por sua presa, repassando a ela um papel que é masculino. Dessa forma, é anulada nesse ponto, ou na melhor das hipóteses, o seu lado de mulher fica latente, dando lugar apenas a sua profissão. Pois, ainda hoje, na contemporaneidade, mesmo que de forma mais sutil, essas características formam o ser mulher, e aquelas, no caso das profissionais do sexo, que não se enquadram nesse estereótipo de ser mulher, acabam sofrendo a exclusão e, quando a figura da mulher é posta em dois lados, aquela que é decente para casar, e a prostituta libertina, muitas vezes nem reconhecida como mulher, que

é para realizar fantasias, não merecendo ser valorada.

Essa divisão da mulher profissional do sexo e da não profissional, talvez seja um dos principais problemas que as mulheres que exercem a prostituição enfrentam, podendo arriscar em dizer que esse seja o fio condutor de tudo. Scott (2005), ao tratar a questão de indivíduos e grupos, expõe que ao escolher o grupo, anula indivíduo. A profissional do sexo ao escolher a prostituição (grupo de trabalho), anula o ser mulher digna, mulher normal, por toda a problemática de estigma em torno de seu trabalho.

Louro (2008) expõe que é necessário discernir quem é considerado um indivíduo normal e aquele que é posto no padrão da anormalidade. As ideias de norma e distinção são especialmente importantes atualmente. Faz-se necessária uma reflexão sobre os seus conceitos. Ou seja, porque determinados sujeitos são considerados normais, e outros, não, o que determina essa normalidade. O que faz com que a profissional do sexo seja segregada das mulheres comuns? Seria o fato de a sua atividade envolver a sexualidade, prazeres sexuais, algo que à mulher, muitas vezes, é imposto de forma comedida?

A diferença não preexiste nos corpos dos indivíduos para ser simplesmente reconhecida; em vez disso, ela é atribuída a um sujeito (ou a um corpo, uma prática, ou seja, lá o que for) quando relacionamos esse sujeito (ou esse corpo ou essa prática) a um outro que é tomado como referência. Portanto, se a posição do homem branco heterossexual de classe média urbana foi construída, historicamente, como a posição de sujeito ou a identidade referência, segue-se que serão “diferentes” todas as identidades que não correspondam a esta ou que desta se afastem (LOURO, 2008, p. 22).

A diferença só existe porque se atribui a alguns indivíduos, com base em atributos socialmente construídos, o grau de normalidade, quando outros contrapõem a esses atributos tidos como “normais”, os quais são estereotipados como “anormais” e sofrem o estigma, a segregação, por serem quem são. Ou seja, como Goffman (1988), expõe que os sujeitos normais são o patamar para segregar os demais. Assim é o caso da profissional do sexo quando se dedica à prostituição; o status de normalidade é rompido, pois ela deixa de manter comportamentos esperados para uma mulher ou, melhor dizendo, ela age de algumas formas que são condenadas a essas. Desse modo, ocorre a seletiva entre as mulheres de bem, para casar, mães de família e a profissional do sexo; apesar de muitas mulheres que exercem a prostituição perpassarem entre os primeiros papéis, pelo de mulher de família.

Moraes (1995) discorre sobre a dualidade presente nos modelos de representação da sociedade ocidental, esses que oportunizaram a criação de formas duais de classificação, a exemplo: certo/ errado, imaculada/ pecadora, puta/casta, dentre outras. Na criação desse sistema de categorias, os locais com características eróticas e libertinas, são considerados espaços para as mulheres pervertidas, despudoradas, pecadoras. Essas classificações interferem na ordem moral, as pervertidas vão se ocupar em deixar longe das puritanas os tipos vistos como sexualmente pervertidos. O lado da libertinagem seria para a profissional, o lado do lar, da família, para as demais moças.

Perrot (2003) retrata em sua obra, o comportamento que as mulheres do século XIX, deveriam seguir para serem consideradas boas e dignas. A autora relata que essas mulheres deveriam ser discretas, se mostrando muitas vezes por meio de códigos, que variam de acordo com a sociedade vigente. O pudor era intrínseco da mulher dessa época, elas não poderiam falar de sexo, deveriam ficar dormentes em meio a ele. A mulher, nessa época, era ligada ao pecado, sendo grande tentadora a induzir os outros a cometê-lo. Por isso, muitos eram os artifícios para deter esse pecado, para calá-la, vedá-la.

Para elas, o prazer era proibido, até mesmo negado, a experiência dessa sensação era coisa de prostitutas, ou seja, o prazer, a sexualidade, diferenciava as boas das más mulheres. Dessa forma, a profissional do sexo era (e, ainda é) assimilada ao pecado, pois ela rompe com a pureza, com a discrição que é cabível à mulher, pois ela desfruta e faz os outros desfrutarem de inúmeros prazeres, portanto, seriam elas as pecadoras mais potentes.

Dois séculos se passaram desde o século XIX, no entanto, a dicotomia entre as boas e as más mulheres se faz bastante evidente na contemporaneidade e impregna o pensamento e as ações de muitas pessoas, que são levadas a acreditar que a profissional do sexo é uma espécie de feiticeira perigosa, que sai pelas ruas dissipando as mentes corretas de homens, sendo uma afronta à esposa imaculada. Essa colocação da profissional enquanto uma ameaça à boa moral é bastante visível no relato abaixo:

Você não quer estragar a vida de ninguém, e não vai até a casa de ninguém chamar o homem para vir, ele vem porque quer (CAPITU).

(1989), quando ela apresenta que Eva e Maria são visualizadas como símbolo de mulheres, porém que, no legado Cristão Ocidental, elas assumem papéis contraditórios, mesmo pertencendo ao mesmo gênero. Maria carrega o mito de luz, purificação, inocência, ao passo que Eva sustenta a escuridão, a poluição, a corrupção. Esse fato pode ser compreendido pela ótica de que Eva provou do fruto proibido (prazer), desrespeitou regras e induziu o homem (Adão) a pecar; porém, Maria era casta, recatada, complacente às situações. Trazendo para a realidade experimentada pelas profissionais do sexo, esse fato ainda se faz presente, elas são as Evas, pois vivenciam o pecado, o contrário e as mulheres que não dedicam- se à prostituição, são Marias, por sua pureza e afastamento do pecado, do condenado; uma é para casar, constituir família, a outra para o prazer.

Brivio (2010) conta que até meados de 1970, a preocupação com a preservação da honra e com o manter-se virgem assombrava uma grande parte das mulheres, a preocupação em ver a sua imagem vinculada a algo impuro era bastante forte, pois se assim não fosse, muitas eram excluídas e impedidas de se casar. É passível de observação que esse ditame de regras evoluiu consideravelmente, a virgindade, na cultura ocidental não é, em muitos casos, valorada como algo primordial para o casamento. O que não mudou é que as mulheres ainda continuam presas a algumas dessas exigências, como ter parceiro único, conhecer aquele com quem terá relações sexuais, bem como manter uma postura adequada. A seleção para o casamento ainda existe, de forma menos rigorosa, mas existe. As profissionais do sexo são, então, o contraponto desse perfil, sendo segregadas para o lado do prazer, mas nem sempre do casamento.

Barreto (2008), com base em sua pesquisa com profissionais do sexo de Belo Horizonte, considera que existe uma linha que divide as mulheres boas e más, em que a figura da “puta” exerce uma espécie de separador e disciplinador das mulheres, dando ênfase à virgindade e à monogamia, rebaixando aquelas que ousam ir para o outro lado dessa divisão. Essa divisão pode ser responsável pela grande exclusão que as profissionais do sexo vivenciam.

Os locais de prostituição, espaços onde os prazeres se dão de forma livre, foram constituídos como contrários ao domicílio, espaço no qual se dá a procriação. Esses dois ambientes, lar e zonas de prostituição, são incompatíveis, aquela em que cursa um, não pode ser vista no outro. Ao mesmo passo que podem se aproximar, haja vista que muitas profissionais sonham em casar-se e assumir o papel da

respeitável dona de casa, o mesmo acontece com as outras mulheres, que pensam na sexualidade libertária da profissional do sexo, nas práticas e fantasias que elas realizam algo que para elas, muitas vezes, é impedido (CECCARELLI, 2008).

As profissionais do sexo e as mulheres que não exercem tal profissão, ao mesmo tempo em que são colocadas, visualizadas e vivenciadas enquanto seres opostos podem, algumas vezes, querer a troca de papel ao observar o viés bom de cada lado. Mas isso, na maioria das vezes, não se configura; a linha nada tênue que as separa, é constantemente reafirmada no meio social, fazendo com que, apesar de todas serem mulheres, sejam segregadas como boas e más, ficando a profissional do sexo em desvantagem, pois ela não reproduz, ou não reproduz fielmente o papel criado, idealizado e imposto para uma mulher.

No documento PR BRIENA PADILHA ANDRADE (páginas 130-136)