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Não se trata, afinal, de formar antropólogos, mas de aprender a pensar a partir da desnaturalização do familiar

Empoderar aos indivíduos, aos sujeitos da educação, aos futuros professores e gestores da educação, empoderar aos cidadãos brasileiros, cearenses, fortalezenses, foi o que buscou a professora através da tentativa de refletir, compreender e transformar sua prática pedagógica, o que deu origem à metodologia aqui analisada, algo que já lhe escapa aos dedos, começando a ser compreendido e apropriado por seus orientandos e demais componentes de

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nosso Grupo de Pesquisa. Queremos compreender a educação brasileira e o Brasil. Queremos entender, mas não fazer julgamento de valor. Queremos entender e intervir em nossas práticas cotidianas, mostrar que é possível sim ser bom professor em nosso país e, melhor ainda, que existem possibilidades reais de resistir à violência simbólica que perpassa o campo educacional e no qual, quando conscientes, podemos agir adotando as melhores estratégias para garantir posições socialmente estáveis e construir (ou aprimorar) espaços de resistência, espaços de luta.

Para a socioantropologia que nos guia (a formação da professora é em sociologia e antropologia), o que há é a verdade sociológica, não as verdades, visões ou ações dos indivíduos, mas as estruturas, as relações sociais. Toda a economia de trocas simbólicas às quais estamos constantemente expostos durante nossas trajetórias individuais, guiando nossa visão de mundo, nossa interpretação dos fatos, nossa empatia ou aversão a este ou aquele personagem da trama social. Nossa “verdade”, enfim. Romper com essas verdades, estimular

os alunos a buscar outro olhar, crítico, sobre suas próprias existências e sobre o contexto no qual encontram-se inseridos é uma das principais construções pretendidas pelo método que, por sua limitação temporal, não permite um aprofundamento maior na teoria socioantropológica, cabendo aos interessados buscarem, individualmente, desenvolver ainda mais seu capital cultural. A verdade é que esse método (como qualquer método), apesar de poderoso, somente evidencia sua força quando ocorre também o engajamento político do indivíduo. Por isso minha experiência foi visceral, porque me envolvi com a política, porque conheci alguns dos segredos do campo e dos agentes que o compunham. E agora, ao final de minha jornada de formação como pesquisador (ou de seu início dependendo do olhar), acredito que a escola pública possa ser apropriada e servir como espaço de resistência ao modelo atual de dominação simbólica e perpetuação do sistema capitalista como único e imutável na construção do imaginário das pessoas, e que a educação possa sim ser transformadora e ao mesmo tempo apartidária, desde que os professores assumam uma conduta consciente de desviantes ao poder estabelecido nos mais diversos campos onde possam atuar para, quando politicamente engajados, agirem subversivamente, interessados em criar espaços de discussão, entendimento, resistência e superação das diferentes formas de dominação às quais somos expostos ao longo de nossa experiência existencial na periferia do sistema.

Em síntese, a metodologia proposta pela professora não buscava, afinal, formar antropólogos mas, através da utilização de algumas ferramentas do fazer antropológico,

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treinar o olhar de futuros professores do ensino básico para enxergar que a sua trajetória existencial e sua visão de mundo seriam decisivos para suas práticas. No mínimo, caso não aplicassem o conhecimento adquirido em sua atuação profissional, não seriam mais indivíduos alienados da realidade, e poderiam, caso fizessem um esforço pessoal consciente (estratégico), e desenvolvessem capitais que ainda não possuíssem, poderiam alcançar boas posições sociais. É preciso lembrar que estar numa universidade num país socialmente injusto como o nosso é um privilégio. O que é preciso mudar é a forma como a universidade, professores e alunos lidam com o conhecimento e com a formação de alguém que será responsável por também formar indivíduos ao longo de muitos anos.

Nessa abordagem, a atuação da professora sempre foi voltada para que os alunos enxergassem a concretização desses processos mais gerais e abstratos nas suas próprias histórias, nas suas biografias, indo na direção proposta por Pedro Demo (1999): a da desmistificação da pesquisa através da sua prática no ensino das ciências sociais aplicadas à educação.61 A pesquisa era ensinada e exercitada, mesmo que de maneira limitada e deslocada, devidos às pressões sofridas pela professora – e a verdade é que, devido a repercussão das fofocas de corredor, do controle social exercido pelos estabelecidos que julgavam-se afrontados pelo artigo onde a professora revelava os “segredos” do campo, os alunos esperaram até o final para que a lenda se transformasse na criatura desequilibrada que esperavam encontrar no início da disciplina.

Assim, através do desenvolvimento do olhar crítico, a disciplina exercitava a

estratégia da exotização do “familiar”62 e de desnaturalização das práticas institucionais, oferecendo elementos para que os alunos compreendessem a formação de professores como um processo de aculturação como outro qualquer. Eles eram assim instigados a compreender seus interesses, limitações e potenciais como produzidos pelas suas histórias de vida, mas também pelas políticas de Estado. Como já descrito anteriormente, os resultados alcançados foram extraordinários para o breve período de contato com a pedagogia proposta pela professora e, como demonstram os diários apresentados no início do trabalho, os alunos passavam compreender-se e localizarem-se socialmente, e alguns que antes não demonstraram interesse pela docência passavam a adotar um discurso de valorização de sua prática profissional e de seu papel na sociedade. Claro que nosso capital cultural deve ser

61 Como deixa claro em texto desenvolvido para o Concurso de Professor Titular em Antropologia da

Educação no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Ceará: “Antropologia da Educação Superior: Reflexões a partir de uma trajetória e de um campo” (2015).

62 Beserra e Lavergne, “Exotização do ‘dar/assistir aula’: contribuições da etnografia à formação de

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constantemente reforçado, mas desenvolver o pensamento crítico é o primeiro passo para superação de nossas próprias limitações enquanto indivíduos. Se bem empregado quando da análise de sua atuação profissional, o professor tem condições de repensar sua prática, superar a alienação que nos caracteriza enquanto classe profissional e reinventar-se, até mesmo a resistir a pressões sociais e profissionais que possa vir a receber, seja pelo motivo que for, como bem demonstrou a professora e seu posicionamento no campo estudado.

Finalmente, é importante destacar o destemor da professora em ser avaliada e em ensinar isso aos monitores-estagiários, visto que deveríamos realizar uma etnografia de nossas práticas, apresentando as dificuldades gerais e particulares dos alunos e as nossas próprias, assim como os limites da professora, das aulas e da disciplina. Jamais vivenciei iniciativa similar a essa. E, se era essa análise e a comparação com a professora o que temia no início da disciplina, foi também o que me tornou mais forte, preparado para lidar com as críticas, compreendê-las e tentar constantemente melhorar, como profissional e pessoa. O investimento na formação de um leigo em pesquisador e postulante a antropólogo havia valido a pena. Assim, sabia agora que não existe nada menos neutro do que o chamado processo de ensino-aprendizagem, e que também tenho papel estratégico e de protagonismo para a transformação da realidade de um sem-número de indivíduos, a começar pela minha própria.

108 6 MAS, AFINAL, POR QUE ESTUDAR ESSA DIDÁTICA?

“Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas.” José Saramago

Nos capítulos anteriores evidenciei como, a partir das pressões políticas sofridas num campo acadêmico por uma professora que passa a questionar criticamente o que é ser professor no Brasil, foi desenvolvida a Didática Antropológica (a qual se mostrou uma eficaz ferramenta na formação de professores) e no que consiste metodologicamente (sob o olhar antropológico) sua aplicação prática, a qual, quando também aplicada à formação de professores-pesquisadores, resulta na produção de uma ciência combativa, preocupada em evidenciar o contexto no qual estamos inseridos e as diferentes formas de dominação e violência simbólica às quais somos cotidianamente submetidos, mas, acima de tudo, capaz de formar agentes da educação engajados com uma educação de qualidade, libertadora e crítica para todos os cidadãos (e também sub-cidadãos, sob um olhar crítico) brasileiros.

Porém, para completar essa pesquisa, é necessário que fique evidente a importância e urgência dessa metodologia – e de toda sua potência para uma interpretação crítica da realidade, especialmente quando aplicada às particularidades institucionais e culturais brasileiras, o que reflete em tudo o que somos e à forma como enxergamos o mundo, as pessoas e nossa própria existência.

Somos a periferia, somos os explorados, mas somos a maioria. Podemos ser os desviantes. Devemos ser os outsiders. Assumamos ao papel, e então resistamos.