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O olhar estranhado: os futuros professores e sua relação com a educação

No início da disciplina, frente ao estranhamento inicial ante novos conceitos e percepções da realidade, alguns alunos ainda se encontravam perdidos no que dizia respeito à aproximação da antropologia com a educação e à necessidade efetiva daquela disciplina no currículo do curso de Pedagogia. Tal impressão, no entanto, foi transformada a partir da leitura do texto Nacirema (1956), de Horace Miner, que apresentou àqueles neófitos a

primeira “surpresa” da antropologia: a possibilidade de tornar exótico o que é naturalizado.

Enquanto os alunos divertiam-se percebendo “especialidades semelhantes à nossa cultura”, conforme descreveu uma aluna num de seus diários, a professora revelava que era esse o objetivo da disciplina em relação à escola, desnaturalizar o que é natural e estimulá-los a perceber a aula como histórica, não natural, como uma atividade social carregada de sentido, valores e crenças particulares do professor e interpretada pelos alunos conforme suas próprias crenças e valores. Nesse momento, obviamente, ainda seria cedo para discutir Bourdieu e a economia das trocas simbólicas. Assim, já na aula inaugural da disciplina, esses alunos e futuros professores da Educação Básica, eram convidados ao estranhamento, o que, mais à frente, quando aplicado à educação, através do olhar de Pierre Bourdieu, Lorena de Freitas, Jessé Souza e da própria professora, tornar-se-ia chocante. Porém, a professora destacava o esforço que deveria partir de cada um para alcançar o conhecimento, que a observação deveria ser disciplinada, onde método e apreensão do conhecimento eram fundamentais, ou não seríamos capazes de enxergar nada. Meu estranhamento ao campo, além da disciplina em si, também seria completado no próximo semestre, ao acompanhar a eleição para coordenador da pós-graduação. Aliás, creio que nesse momento os alunos estranhavam ao estranhamento, mesmo a professora insistindo na questão da formação do conhecimento, visto que, quanto

56 No sentido bourdieusiano, limitado e, portanto, mutável, como no sentido de habitus professoral

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mais elementos possuímos, mais sofisticado é nosso julgamento, mas até lá, é preciso disciplina e vontade.

Portanto, o desafio do olhar antropológico na educação (e que era apresentado aos alunos) era o de não se deixar levar pelas aparências, pelo senso comum que trazemos quando ingressamos em cursos de formação de professores (junto ao capital cultural limitado que possuímos) e que pode perigosamente nos acompanhar ao longo da vida, caso não façamos nada a respeito, visto que adentra inclusive ao meio acadêmico. Além disso, não é somente o distanciamento que é fundamental nessa construção, mas o método, o conhecimento que devemos adquirir para alcançar o pensamento socioantropológico, uma vez que sabemos que nossa posição social limita nossa visão. É essa a noção que aflora ao longo dos diários e dos trabalhos finais da disciplina: a ideia do coitadismo do professor brasileiro sendo superado pelo entendimento da realidade da formação de professores no Brasil, e da possibilidade de transformação desse quadro através do engajamento com uma formação de qualidade que deve, na condição brasileira atual, partir de cada um para ser depois aplicada quando no momento de sua atuação, conforme fez inclusive a professora, numa representação das

estratégias de reconversão propostas por Bourdieu.

Nesse sentido, a professora perguntava: “O que faz o professor para fazer seu aluno aprender?”, e ela mesma respondia: “Dê atenção, dê poder. Em vez de um inimigo, ganhe um cúmplice. Vão para aula melhor preparados…” Essa era a largada daquela

disciplina que buscava desenvolver a construção de um olhar antropológico sobre a educação,

transformando em “campo” a própria disciplina, mas também o curso de Pedagogia onde ela e

os alunos se encontravam. Assim, era aprendendo antropologia que os alunos faziam antropologia: assistindo aula, frequentando a cantina, buscando conhecimento na biblioteca. E nós, ao mesmo tempo, também aprendíamos antropologia (e a ser professores) a partir de

nossas experiências como professores, estagiários e monitores. Nesse “não-lugar”

conhecíamos o mundo universitário sob outro olhar, e eu passaria a me interessar por minha formação, o que me traria até esse objeto.

Nesse período, porém, ao contrário do momento em que começa a desenvolver sua didática57, a professora já tinha ideia do que queria com aquela observação coletiva: construir os rudimentos de um olhar antropológico através do estranhamento do familiar e

estimular aos alunos que identificassem e refletissem sobre as várias “culturas” existentes na

instituição (a aula, a faculdade, a escola), na perspectiva de desnaturalizá-las. Ela queria

57 Para aprofundar a questão, ler Bernadete Beserra, “Da antropologia da educação a uma didática

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empoderar, enfim, os alunos. Novamente, a escrita dos diários, os trabalhos finais e o engajamento de alguns alunos dessa turma na política institucional (através da formação de uma chapa que concorreria ao Centro Acadêmico da Faculdade e que se declarava “de

oposição” à Diretoria naquele momento – ao contrário do que vinha ocorrendo nos anos

anteriores) comprovam que os objetivos foram atingidos, como atesta a própria professora quando reflete sobre sua didática:

Os efeitos da pesquisa eram quase imediatos: os alunos se davam conta dos entraves envolvidos na sua aprendizagem: o capital cultural limitado de alguns era relacionado à má-fé institucional e ao populismo docente, dentre tantos fatores e categorias que passavam a fazer parte dos seus vocabulários. Não apenas aprendiam racionalmente: tanto praticavam com a leitura dos textos e os debates em sala de aula, que praticamente incorporavam o instrumental que os ajudava a compreender a própria posição naquele ‘mundo’ e nos outros em que circulavam. Sentiam-se inteligentes e capazes, um fenômeno extraordinário num curso em que os professores em geral repetem a ladainha do aluno ‘fraco’: ‘o nosso aluno é fraco’, ‘temos de ir devagar’, etc. (BESERRA, 2015, p. 6).

Mas, como desenvolver esse olhar estranhado e aprofundá-lo a ponto de desenvolver o pensamento crítico? É aí que entra outra ferramenta antropológica: o diário de campo.