• Nenhum resultado encontrado

19 Para aprofundar o assunto, ler Pierre Bourdieu (1974, 2004, 2013, 2014). Para uma abordagem direta

54

Se a formação do conhecimento do professor se dá socialmente, devemos lembrar também que o mesmo está exposto a condições sociais definidas, que imprimem nos indivíduos um conjunto de disposições duráveis e transferíveis (a interiorização da realidade externa), o que Bourdieu definiu como habitus. A sala de aula, como campo de atuação dos professores, é também espaço de formação de um sistema de esquemas de percepção, de apreciação e de ação (além de formar um conjunto de conhecimentos práticos adquiridos ao longo do tempo que nos permitem perceber e agir, além de nos desenvolver com naturalidade nesse universo social), podemos trazer para o trabalho a proposta de Da Silva (2005), de que a prática professoral aí constituída pode ser classificada como habitus professoral, uma vez que se aprende a ensinar na prática da experiência de ensinar, e é dessa prática que se desenvolve esse habitus:

O desenvolvimento desse habitus se dá independentemente da formação didática específica e relaciona-se precariamente com a metodologia dos modelos de ensino disponíveis na literatura, que são ensinados na sala de aula dos cursos que preparam professores (DA SILVA, 2005, p. 158).

Foi no conjunto de ações visivelmente exercidas pelo professor, ou na análise do

habitus professoral, que a autora percebeu que era aí que o professor recebia respostas imediatas, objetivas e espontâneas de seus alunos, onde estas estabeleciam relação direta com os gestos de ensino decididamente intencionais praticados por esse profissional. Mais adiante os depoimentos dos alunos envolvidos na etnografia desta pesquisa evidenciarão tal comportamento na prática da professora, e na forma como eles apreendiam o conhecimento. Ao que parece, a velha máxima de se educar pelo exemplo permanece, inclusive no conjunto de práticas repetidas coletiva e harmoniosamente, sem que se tenha negociado entre os agentes – e próprias do processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, no início do semestre, mesmo com a professora estimulando a participação dos alunos, e oportunizando essa participação, estes, ainda sujeitos de seus habitus educacionais, não se perguntavam como deviam se comportar em práticas repetitivas e coletivas, agindo harmoniosamente, mesmo oriundos de diferentes campos educacionais. Ou seja, há um habitus professoral que ainda é esperado pelo aluno em qualquer período educacional – o de explicar a matéria. E é nesse detalhe pedagógico que pode estar toda a eficiência, ou não, do professor em exercer futuramente sua profissão, uma vez que existe uma linha tênue entre a formação de um conhecimento superficial e a formação de um conhecimento complexo, e isso pode diferenciar aqueles indivíduos que serão sujeitos ou agentes da educação:

55 Aqueles alunos não respondiam adequadamente ao habitus professoral manifestado por seus professores porque não praticavam o ensino durante a formação; praticavam, sim, a aprendizagem. Portanto, se praticavam algum habitus era o de estudante, e não o de professor. No que ainda diz respeito ao descompasso gestual, podemos dizer que se originava do fato de que aqueles professores nunca haviam ensinado para aqueles alunos; que a explicação do texto era efetivada pela leitura, como mostrava o habitus que exibiam (DA SILVA, 2005, p. 159)

Para a autora, tal quadro se perpetua porque, na constituição do habitus

professoral, a ação prática é estritamente vinculada com recursos teóricos que foram apreendidos abstratamente. O que leva a dizer que o aprendizado teórico vai ser manifestado na prática do exercício que o produz. Ou seja, durante sua formação os discentes estruturam o

habitus estudantil, e não o habitus professoral, pois o último será desenvolvido somente no e com o exercício da docência. Por isso mesmo, a autora afirma que o ato de ensinar na sala de aula denomina-se habitus, e não prática docente. Essa colocação nos permite, à luz da metodologia discutida no trabalho, questioná-las. Ora, pudemos ter acesso, no breve período de um semestre, a um método que nos permitiu refletir sobre nosso lugar social, sobre nossa função social e sobre a diferença que poderíamos encontrar na escola. Os alunos foram capazes de entender que toda política pública é interessada e que reflete na educação a que teremos acesso enquanto inseridos na cultura de determinado país. Capazes de desenvolver tal reflexão, conforme foi evidenciado pelos depoimentos contidos ao longo do texto, o sujeito da educação também é capaz de identificar as formas nocivas de desenvolvimento de sua formação.

Assim, não é o fato de estruturarem e manterem um habitus estudantil ao longo do curso o que ocorre com professores em formação, como os alunos investigados, mas sim a falta de estímulo para desenvolverem um habitus diferenciado. Sabemos que as disposições que compõem os habitus são continuamente atualizadas por meio de novas experiências, e por isso mesmo podem ser estimuladas e desenvolvidas. Se os alunos reclamavam inicialmente da quantidade de textos – porque não eram estimulados noutras disciplinas da mesma forma – a compreensão ao final da disciplina era a de que, para o desenvolvimento do pensamento crítico, é necessário dedicação ao conhecimento da teoria e, inconscientemente, eles haviam aprendido – como pudemos observar nos depoimentos do capítulo anterior – o que é almejar a autodeterminação, um dos princípios que fundamentam o processo de formação de professores no contexto da sociedade contemporânea, segundo Therrien (2015). Se essa metodologia foi capaz de alcançar a reflexibilidade dos alunos sobre suas experiências com a educação, e ajudou-os a re-significar a escola e o processo educativo a que foram expostos (e

56

são, durante a graduação) e no qual poderão vir a atuar futuramente, ela alcançou aquilo que geralmente deixa a desejar na formação do professor brasileiro: ensinar a aprender a saber ensinar. A partir do aprofundamento de uma teoria que é debatida, e através do estímulo à participação, os alunos puderam refletir sobre sua formação e sobre sua relação com o docente que lhe oferece o conhecimento, estimulando a formação de um olhar mais amplo, capaz de posicionar-lhes no lugar do outro. Tal quadro evidencia-se também nos depoimentos que

tratam da “timidez” de certos alunos – ou da limitação de seu capital cultural, a qual vai sendo

superada ao longo da disciplina, justamente pela apreensão da teoria, ou pela ampliação de seu capital cultural.

Com base na reflexão apresentada, podemos dizer que o habitus professoral faz parte do conjunto de elementos que estruturam a epistemologia da prática, e que, portanto, podem ser transformados enquanto cultura institucional, seja na instituição onde os sujeitos serão formados (a universidade) ou na qual atuarão como professores (a escola, a universidade ou qualquer outro espaço de aprendizagem). Assim, apesar da estruturação do

habitus professoral ser comum a todos os profissionais de ensino, em qualquer área do conhecimento, e apesar de sabermos que aprendemos a ensinar durante o exercício da profissão, a pesquisa desenvolvida mostra que uma metodologia contestadora, que estimule à interpretação crítica da realidade e que rompa com o modelo formativo de professores atual, com excesso de carga horária, mas sem aprofundamento teórico, pode ensinar a ensinar já durante a formação, caracterizando-se como uma vantagem significativa no que diz respeito à transformação do atual cenário da educação pública brasileira. No mínimo, estimulando a superação da condição de passividade por parte do aluno, ou de seu habitus estudantil.