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2. C ONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

2.1. Afinal, psicanálise ou psicoterapia na Saúde Coletiva?

Pela psicanálise é a noção mesma de psicoterapia que se acha subvertida (CLAVREUL, 1983, p. 181).

Muito se tem escrito sobre a dicotomia psicanálise/psicoterapia. Neste ponto, nos vemos diante da necessidade de alguns esclarecimentos a despeito do fato de Lacan [d]enunciar que “a psicoterapia, seja ela qual for, estanca, não porque não exerça um certo bem, mas por ser um bem que leva ao pior” (LACAN, 2003h, p. 513, grifo nosso). Aqui, Lacan faz referência ao pior da alienação, pela cristalização do sintoma, operada no sujeito, já

que as psicoterapias, por se darem nos laços sociais da Opressão/Reprodução6, pautam-se na

negação da falta-a-ser fundamental (parlêtre) que marca a constituição do sujeito e a hiância que constitui a pulsação que causa seus movimentos criativos, necessários ao equacionamento dos impasses de subjetivação. “O inconsciente se havia fechado sobre sua mensagem graças aos cuidados desses ativos ortopedeutas em que se tornaram os analistas de segunda e terceira geração, que se dedicam, no que psicologizando a teoria, a suturar essa hiância” (LACAN, 2008b, p. 30-1). Lacan faz referência a Isso que, ao ser reprimido pela mestria do psicoterapeuta, retorna pior (LACAN, 2003h; FINGERMANN; DIAS, 2005). Nossa hipótese é de que essa clássica dicotomia já expressa algo do impasse para o qual tentaremos esboçar equacionamentos iniciais neste ensaio: se a psicanálise não pode ser simplesmente transposta para a Saúde Coletiva, dadas as especificidades tanto do novo lócus de operação quanto do público que aí demanda tratamento, como pensar essa possibilidade sem abrir mão do rigor teórico, técnico e ético inaugurado por Freud e maximizado por Lacan? Primeiramente, se não se trata da prática da intensão típica à psicanálise, e sim da inserção desta em outro lócus de atuação, com atravessamentos outros, propomos não falar de “psicanalistas na instituição”, mas sim – e até por motivos estratégicos7 – de trabalhadores (diversos) precavidos teórico-

técnica e eticamente pela psicanálise (e, necessariamente, por outras “coisitas” mais). Mas

nem por isso serão menos psicanalistas, pois o que define um analista não é seu lócus de atuação, mas sua formação – imprescindível ao trabalhador-intercessor – a partir do 1) estudo rigoroso da teoria (dos processos de subjetivação, da técnica e da ética), 2) da práxis clínica com os “sujeitos do sofrimento”, 3) da supervisão clínica dessa práxis e, principalmente, 4) do percurso de sua própria análise. O psicanalista é um tipo de intercessor, capacitado para atuar no seu contexto específico, ou seja, o do consultório particular. Da mesma forma, onde houver um trabalhador-intercessor atuando a partir da ética da psicanálise, junto à demanda de um sujeito em sofrimento, poderá haver psicanálise. Ora, e por que o trabalhador-intercessor inserido na Saúde Coletiva, ao qual eticamente são exigidos referenciais que, inclusive, extrapolam o campo estrito da psicanálise (FREUD, 1996j, p. 143), não poderá ser

6 Os Discursos da Opressão/Reprodução englobam o Discurso do Mestre e o Discurso da Universidade,

teorizados por Lacan (1992) em seu seminário 17, e o Discurso do Capitalista, esboçado nesse seminário e melhor caracterizado em outros momentos.

7 Quanto a isso, concordamos com Figueiredo (1997): “considero que não é imprescindível instituir a psicanálise

como mais uma especialidade na lista de ofertas [...] porque a clínica psicanalítica é praticada por profissionais com diferentes designações como psicólogos, psiquiatras e outros. Ao instituí-la, é como se só aqueles designados como psicanalistas pudessem praticá-la. Quem designaria?” (p. 10, grifo nosso).

considerado um tipo de psicanalista tentando, nesse contexto – e haverá outros8 –, “alcançar

em seu horizonte a subjetividade da sua época” (LACAN, 1998g, p. 322)?

Que a psicanálise não é uma psicoterapia – ao menos não uma psicoterapia cujo laço social se dê nos Discursos da Opressão/Reprodução e na ética em que resultam, e eis aí a

nossa “carta na manga” – isso nos é absolutamente claro e constatável. No entanto,

colocamo-nos uma questão, que tentaremos responder a partir dos desdobramentos da conclusão de Lacan acerca da psicanálise ser ou não uma Ciência9: como definir uma práxis

“psi” na Saúde Coletiva que inclui a [ética da] psicanálise? Mais especificamente, para o intuito central desse ensaio, como definir uma “psicoterapia” na Saúde Coletiva em cuja práxis a psicanálise do campo de Freud e Lacan é “aplicada” sem a conspurcação dos seus fins ético-políticos?

Se por um lado não se trata, de forma alguma, de reduzir a psicanálise a uma [psico]terapêutica, por outro vemos que “a questão não é recusar à psicanálise seu estatuto de psicoterapia, e sim diferenciá-la [rigorosamente] das demais psicoterapias” (FIGUEIREDO, 1997, p. 10). De forma alguma se trata de uma “quase psicanálise” na Saúde Coletiva, o que nos faria cair na dicotomia: psicanálise para os ricos e psicoterapia – que faz algum bem, mas conduz ao pior! – para os pobres (QUINET, 2008b). A ética da psicanálise não admite concessões. Da nossa parte, não podemos deixar de lado a “crítica assídua” contra “os desvios e concessões que amortecem o progresso da psicanálise” (LACAN, 2003b, p. 235). Se propomos uma “psicoterapia” referida à psicanálise na Saúde Coletiva é na medida em que discorremos sobre uma prática rigorosamente analítica e não psicoterapêutica aos moldes clássicos, ou seja: é na medida em que caracterizamos uma “psicoterapia” cuja prática tem em seu horizonte a ética psicanalítica; portanto, o mesmo horizonte ético de produção subjetiva

singularizada. Se a necessidade ética de pensar os dispositivos de ação na Saúde Mental

Coletiva, a partir da psicanálise, diz do próprio futuro da psicanálise (FREUD, 1996i; LACAN, 2003h), propomos, neste ponto, uma hipótese segundo a qual tal empreendimento –

8 Quanto a isso ver, por exemplo, o pioneiro trabalho do prof. Dr. Silvio José Benelli (BENELLI, 2014;

BENELLI; COSTA-ROSA, 2011, 2012, 2013) que, partindo das produções de Costa-Rosa, vem iniciando uma proposta de análise paradigmática do campo da Assistência Social. Benelli parte da sugestão de Costa-Rosa (2013e) segundo a qual “esse conjunto de proposições [o PPS] pode ser desdobrado para referenciar situações de outras demandas do campo social e institucional, e para outros intercessores e outros processos de intercessão, além das clínicas e das práticas ‘psi’” (p. 321, grifo nosso).

9 Segundo Lacan (2003d), quanto ao Modo de Produção de subjetividade e de “conhecimento” inaugurado por

Freud, a pergunta que sempre retoma seu “projeto radical” não é “que condições a psicanálise deve satisfazer para se transformar numa ciência”, mas, ao contrário: “o que é uma ciência que inclua a psicanálise?” (p. 195). No mesmo sentido, Althusser (1984) nos indaga: “em que medida a descoberta de Freud [...] pode, pela simples definição do seu objeto [que é sujeito!], e de seu lugar, repercutir nas disciplinas de que ela se distingue (tais como a psicologia [...]) e provocar nelas questões sobre o estatuto (por vezes problemático) do objeto das mesmas?” (p. 70).

não esquecendo a necessidade enunciada por Freud (1996i) de “[...] adaptar a técnica às novas condições” (p. 181), sempre a partir da práxis –, expressa o que podemos propriamente chamar de ampliação do campo da “psicanálise em intensão” (COSTA-ROSA, 2012; ELIA, 2010)10. Pautamo-nos, para tal, em Freud (1996j) quanto ao fato de que “as aplicações da

[psic]análise são, também, confirmações dela” (p. 143). Neste contexto, a fim de evitarmos querelas da dicotomia psicanálise/psicoterapia, propomos o significante psicotherapia para esse novo dispositivo de produção de subjetividade singularizada na Saúde Coletiva. O th presente nesse novo significante fará ressonância com aquilo que Lacan (2007) definiu como o mais singular da produção de um sujeito, a saber, a construção de um Sinthoma, ou seja, de um “saber-fazer com o sintoma” (savoir faire avec ce symptôme), sempre pela via da [inquiet]ação criativa-desejante. A própria ressignificação de Lacan do Sintoma em Sinthoma nos parece um ponto que corrobora a nossa proposta de uma psicotherapia Outra. Ou não seria a psicoterapia, que é um equipamento clínico já legitimado no discurso médico científico, aquilo que – e eis aqui nossa visada estratégica –, ao incluir a psicanálise, transpõe- se em seu avesso (psicotherapia), tal como o sinthoma, alcançável tanto quanto possível em um trabalho analítico, é o avesso do sintoma-que-faz-sofrer? Se a psicoterapia é o avesso da psicanálise, a psicotherapia, por ser nossa proposta de materialização de “uma ciência que inclua a psicanálise” (LACAN, 2003d, p. 195), é, como ampliação da psicanálise, também confirmação dela (FREUD, 1996j, p. 144). Já que Lacan (1998h) – ao discutir a importância de privilegiar o “rigor ético” em detrimento do “formalismo prático” – enfatizou o não do “padrão ou não”, a proposta de uma psicotherapia Outra rigorosamente se apresenta como sendo uma das variantes do “tratamento que se espera de um psicanalista” (p. 331).

10 Com a exceção dos trabalhos de Costa-Rosa (2012) e Elia (2010), não encontramos, na literatura a que

tivemos acesso, outros autores que coloquem a questão precisamente nesse plano. O mais aproximado, o que apoia em parte nosso posicionamento, foi a afirmação de Figueiredo (1997) de que se trata de “ampliar as possibilidades do exercício da psicanálise” (p. 31) e Rinaldi (2005) quanto à necessidade de “ampliação do âmbito da incidência psicanalítica” (p. 87), bem como a de Birman (1994) ao enunciar que “a experiência

psicanalítica admite diversas possibilidades de clínica, desde que nesta diversidade sejam reconhecidas as

condições epistemológicas e éticas para a construção do espaço psicanalítico” (p. 27, grifo nosso). Sobre a “ampliação da psicanálise em intensão”, para ficarmos somente em um exemplo, como não ver que o tratamento psicanalítico de sujeitos estruturalmente constituídos por foraclusão (Verwerfung), em franco processo de reconstrução subjetiva, tem sua exequibilidade maximizada no contexto do tratamento institucional? Se “esses quadros clínicos demandam uma resposta social, em termos institucionais, que um analista na solidão de seu consultório não poderia dar” (RINALDI, 2005, p. 103), é porque – e aqui temos que recorrer principalmente às importantíssimas contribuições da “Psicoterapia Institucional francesa” (OURY, 2009) – faz-se necessário um “Coletivo” que, a partir de uma oferta de múltiplos pontos de transferência, dialetize tanto quanto possível o modo de vinculação totalizante do sujeito com o Outro da experiência da psicose deflagrada. Partindo das produções teóricas de Costa-Rosa, podemos afirmar, seguramente, que quando o trabalhador-intercessor está atuando no trabalho clínico com os “sujeitos do tratamento” (intercessão nos processos de subjetivação), trata-se mesmo de “psicanálise em intensão” ampliada, ao passo que a práxis do dia-dia do trabalhador-intercessor junto à “prática entre vários” outros trabalhadores – possíveis outros intercessores – (intercessão nos coletivos de trabalho inter/transdisciplinar) diz respeito à “psicanálise em extensão”.

2.2. Os Modos de Produção da Atenção ao sofrimento psíquico na Saúde Mental