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3. D AS PSICOTERAPIAS EM GERAL A UMA PSICOTHERAPIA O UTRA:

3.2. Uma psicotherapia Outra: discussões a partir da Intercessão-Pesquisa

3.2.1. O sujeito e o inconsciente

Oculto ao fundo o Minotauro, / mas o labirinto sou eu. / Corredores e corredores, / eu esconso, eu escuro, e ele / nem mesmo touro, só espanto. / O monstro que nunca demonstro / o labirinto é que o faz, / [...] De noite ouço o seu bramido.

(Annibal Augusto GAMA, 2002, p. 524, grifo nosso).

O Eu nunca é senão metade do sujeito (LACAN, 1998h, p. 348).

Se os conceitos fundamentais da psicanálise são rizomaticamente articulados entre si, isso se radicaliza quanto ao sujeito e o inconsciente, pois ao nível deste há algo homólogo em

13 Ao propor esse jogo de palavras temos a intenção de ressaltar que, em certa medida, a significação (ordem da

decifração do sintoma) e a significantização (ordem da cifração de gozo para além do recalcado da história) podem se dar simultaneamente; ou seja: ao passo em que se decifra, como ato que possibilita efeitos de desalienação, abrem-se também possibilidades para o processo [simbólico-]criativo[-desejante] que se pode experimentar no trabalho analítico para-além da decifração. Mas é fato que há, no processo analítico, um ponto onde se alcança certo esgotamento dos conteúdos do recalcado da história do sujeito, posto que, a partir de então, a significantização se coloca em primeiro plano.

todos os pontos ao que se passa ao nível daquele (LACAN, 2008b, p. 31); o que nos leva à locução “sujeito do [desejo] inconsciente”. Lacan opera, em relação a Freud, uma potencialização das teses fundamentais psicanalíticas acerca do inconsciente a partir das teorizações sobre o sujeito, à medida que este é concebido como articulado ao significante como sendo nada menos que o seu efeito. Mas o que significa dizer que o sujeito do [desejo] inconsciente é efeito do significante?

No campo da psicanálise não confundimos o eu (moi) com o sujeito (je), pois uma coisa é aquilo que apresentamos ao Outro social, como imagem supostamente ideal, e outra coisa é o que em nós sempre aparece como desejo inconsciente, desvelando a divisão subjetiva constituinte do sujeito a partir de um “isso fal[h]a”14: impossibilidade de totalização

da experiência humana, que Lacan articulou no axioma da “inexistência da relação sexual”. Em termos freudianos, trata-se do fato de não sermos mestres em nossa própria casa, uma vez que sob a predominância do registro Imaginário “o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena de si mesmo” (LACAN, 1998a, p. 116, grifo nosso). Vejamos como Rinaldi (1996), de forma bastante precisa, diferencia o eu, objeto de intervenção da psicologia e da sociologia científicas, do sujeito tal como a psicanálise o postula:

O sujeito da psicanálise, portanto para Lacan, é um sujeito descentrado, sujeito do

inconsciente que se distingue do eu enquanto inserção do indivíduo num sistema de

comportamentos sociais. O sujeito do inconsciente desloca-se na cadeia significante, que numa ‘outra cena’ se repete e insiste. Por oposição, o eu, pelas suas inércias

imaginárias, opera justamente para acobertar esse deslocamento que é o sujeito (p.

30, grifo nosso).

De tal forma, quanto mais um sujeito se afirma como eu, numa identidade fixa, mais se aliena, tanto em relação a si mesmo como em relação ao tipo, e aos efeitos, dos vínculos que estabelece com o grupo social no qual se insere, pois a consciência individual-egóica sempre faz sombra ao instituído social (ALTHUSSER, 1984, p. 84-5). Fixação que o aliena da possibilidade de ser sujeito no deslize significante, criativo e subversivo, como o que surge, sempre devir Outro, a partir desse “isso fal[h]a”, contingente ao registro Simbólico:

Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali alguma outra coisa quer se realizar – algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa

14 Mais uma vez, no dizer do poeta (que Freud diz sempre se antecipar ao psicanalista): “[...] este rosto de frente

sorri / com todos os seus trinta e dois dentes; / o outro é que amargou com o que sofri, / mordido da vida cruelmente. / O rosto careável e social / é só o meu lado condescendente; / o outro, selvagem, turvo e amoral, /

hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente (LACAN, 2008b, p. 32, grifo do autor).

O diferir desejante, para além do que comumente se entende por esse termo, é o que aí aparece como achado de sentido novo, colocando a “máquina humana de subjetivar” em movimento. Na lógica não-toda do significante é exatamente porque o sentido está sempre escapando, falhando em significar o todo, que há possibilidade de novos sentidos, pois, se o diferir advém da falta-a-ser é porque “só existe causa para o que manca” (ibidem, p. 29, grifo nosso). No entanto, ao agarrar-se predominantemente aos recursos de subjetivação do registro Imaginário, nostalgia do todo, o sujeito se distancia de tal possibilidade. Um tratamento psicanalítico permite ao sujeito assumir seu impossível (de significação toda) para não cair na

impotência (de significação parcial e, por isso mesmo, sempre Outra): destituição subjetiva,

efeito de uma análise, como remoção do excesso de imaginário. Somente assim o sujeito pode

tornar-se mais dono e menos inquilino da casa que habita, cujos efeitos poderão ser vistos

também no seu reposicionamento no laço social. Nesses termos, o dito “ego forte” é, rigorosamente, fraco, dado o fato de que um eu pautado em significações tautológicas – e, portanto, cristalizadas, fixadas – está mais longe de produzir a subjetivação singularizante, para além da adaptação, como possibilidade de respostas de teor simbólico aos impasses do Real e da realidade subjetiva e social subjetivada.

Segundo Freud, algum tipo de intenção estranha/familiar parece constantemente forçar entrada, batendo à porta da consciência. Mas esse sujeito concebido como retorno do recalcado descreve o sujeito freudiano, sendo necessárias outras formulações para vislumbrarmos o sujeito tal qual enuncia Lacan. A concepção lacaniana de sujeito não exclui a freudiana, mas a transcende de forma dialética, principalmente como consequência da teoria do significante:

O sujeito é, então, tanto o homem em sua divisão (às vezes dito “eu do enunciado” e “Eu da enunciação” ou sujeito) quanto os efeitos-sujeito, evanescentes, dessa divisão. Esses efeitos-sujeito podem produzir deciframento na dissolução sintomática, e podem permitir a inscrição pulsional nas situações angustiosas,

ainda não associadas às representações inconscientes já recalcadas (COSTA-

ROSA, 2013c, p. 260-1, grifo nosso).

Assim, o sujeito freudiano está para a significação (decifração do sintoma via recordação e elaboração do recalcado da história) assim como o sujeito lacaniano está para a significantização (cifração de angústia para além do recalcado da história do indivíduo). Se a clínica, até onde Freud conseguiu avançar, era definida como o ato de recuperar o sentido

recalcado, a partir de Lacan passamos a conceber o inconsciente também, e sobretudo, como produção de sentido novo, e não apenas como retorno do recalcado. Se o sujeito do [desejo] inconsciente é efeito do significante é porque, como veremos no seguimento desse ensaio, “o sujeito [somente] pode ser a figuração dos próprios efeitos de sentido advindos do processo de enunciação, pelo encontro dos significantes” (ibidem, p. 260, grifo nosso), posto que “o inconsciente é o significante em ação” (LACAN, 1999, p. 111)15.

3.2.2. Enlace transferencial: o tratamento de ensaio ou as entre-vistas preliminares