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4. N OTAS PRELIMINARES SOBRE A INSERÇÃO DA PSICANÁLISE EM SEU NOVO

4.1. A questão do pagamento

O fato de a psicanálise ter que ser paga não implica que ela seja uma terapia classista (LACAN, 2003g, p. 216).

Trata-se de uma questão fundamental na psicanálise, sobretudo em relação à clínica do recalcamento. Quanto a isso, Freud (1996f) vai nos dizer que “nada na vida é tão caro quanto a doença” (p. 148). Deixa a entender que, para o indivíduo que busca análise, seu sintoma é “caro” em dois sentidos: tanto como “querido” – pois, como não ver, e eis aqui a grande descoberta freudiana, que o neurótico é um sujeito que resiste em abrir mão de um gozo inconsciente, tanto que o realiza no sintoma? – quanto no sentido de que “há que se pagar” o preço que valha esse “deixar de sofrer” (deixar de gozar), pois “o dinheiro pode permitir amoedar esse capital do sujeito que é a libido” (QUINET, 2000, p. 76). O pagamento do tratamento é uma questão importante porque, do contrário, não só “o valor do tratamento não se realça aos olhos do paciente” (FREUD, 1996f, p. 147), como também “o paciente é privado de um forte motivo para esforçar-se” (ibidem, p. 148). Na clínica psicanalítica, em seu lócus tradicional, o manejo com o dinheiro (como representante do pagamento) é um dos recursos

que o analista pode utilizar na direção do tratamento, podendo inclusive ter valor de ato interpretativo. Obviamente que isso não consiste em uma regra, devendo ser avaliada em cada caso, mas em momentos específicos, por exemplo, ele não titubeia em aumentar o valor das sessões diante de faltas recorrentes de um sujeito em processo analítico: o manejo do valor do pagamento é instrumento de implicação subjetiva no tratamento. O pagamento também vem marcar que não se trata na filantropia (ibidem, p. 147), pois, do contrário, aquele que me faz um bem, por mera bondade, torna-se o meu carrasco: quanto maior é esse bem feito, maior é a dívida simbólica que me prende ao benfeitor, ao mesmo tempo em que ratifica (ou retifica) a alienante existência de um Outro benevolente supridor ao qual continuo preso, dependente, na posição de demandante-carente27. Assim, outra função do pagamento é a de rebater a dívida

simbólica que advém como resultado da diminuição do sofrimento. No entanto, temos em vista que se há, no contexto da Saúde Coletiva, ausência de pagamento em dinheiro, nem por isso há necessariamente uma inviabilização de um pagamento possível: se o dinheiro é, na economia do MCP, o equivalente universal do valor, como nos mostrou Marx, nem por isso ele é o único. Quanto a isso temos ainda que considerar que a questão do pagamento pode variar muito de sujeito para sujeito (QUINET, 2000, p. 87).

Figueiredo (1997), partindo de entrevistas realizadas com profissionais que ofertavam escuta psicanalítica em Ambulatórios públicos, constatou uma variada gama de possibilidades de equivalentes do pagamento no tratamento:

o tempo e dinheiro que gastam para chegar até o serviço pelo menos uma vez por semana; diaristas que perdem no mínimo um turno de trabalho e remuneração; donas de casa que deixam seus lares e filhos entregues à sorte por boa parte do dia; jovens que perdem às vezes um dia inteiro de aulas, [...] e têm que se haver com as provas e demandas dos professores; trabalhadores em geral que sofrem pressões para não se ausentarem regularmente dos empregos; desempregados que conseguem emprego e têm que arcar com uma escolha difícil de abandonar seus tratamentos ou negociar com os patrões; pais que têm que levar os filhos vencendo todo tipo de obstáculo, e por aí vai. Haja investimento e inventividade! Estes são alguns exemplos que devem ser contabilizados como pagamento e na avaliação da resistência (p. 106).

Em nossas intercessões no campo, quanto às psicotherapias realizadas, não foram poucas as vezes em que os sujeitos manifestaram gratidão pela melhora, manifestações que iam desde um “obrigado por me ouvir”, ao final das sessões, até a entrega de presentes. Em alguns casos, o ato de ressaltar – claro que em momento oportuno e não de forma generalizada para todos – o fato de que recebíamos do Estado pelo trabalho realizado já

27 “Recuo de amar meu próximo como a mim mesmo na medida em que nesse horizonte há algo que participa de

não sei qual crueldade intolerável. Nessa direção, amar meu próximo deve ser a via mais cruel” (LACAN, 2008a, p. 233).

operava efeitos eticamente interessantes. Em outros casos a questão persistia. Em um deles, a diminuição do tempo das sessões foi a operação que possibilitou efeitos; o que nos aproxima, inclusive, da discussão feita por Figueiredo (p. 97-108).

Se não são poucos os psicanalistas que consideram inviável a prática da psicanálise na Saúde Coletiva (FIGUEIREDO, 2010), por considerarem o pagamento em dinheiro uma condição imprescindível, questionamo-nos se tais afirmações não estariam apenas fazendo eco ao já dado (S1) da teoria; ou seja, por mais que estejamos em concordância com o que, até

o momento, a teoria discute quanto à questão do dinheiro na psicanálise, seguindo o espírito da pesquisa freudiana, nosso posicionamento é de que se o pagamento em dinheiro é imprescindível, no contexto outro da Saúde Coletiva, isso deverá ser colocado à prova e refletido a partir da práxis efetiva do dia-dia. Mesmo porque, o que se encontra em termos de literatura científica sobre a questão do pagamento é sobremaneira referente à psicanálise no seu lócus tradicional de atuação. Com exceção do pioneiro – e bastante recomendado – trabalho de Figueiredo (1997), não temos muitas investigações sobre o assunto na Saúde Coletiva. Ora, como pode haver o posicionamento de muitos psicanalistas que tomam de forma a priori a inviabilização da psicanálise na Saúde Coletiva, por conta da questão do pagamento em dinheiro, se a posição de Freud sempre foi a de que “o progresso do conhecimento não suporta que tais definições sejam rígidas” (FREUD, 2004b, p. 145)?28 Por outro lado – e isso é importante que fique claro – nossa postura não é a de que essa seja uma questão fácil; mas procuramos ressaltar a necessidade ética de que mais reflexões se façam a partir da práxis do dia-dia. Até o momento de nossas pesquisas, apesar de ainda preliminares, temos visto que há possibilidades efetivas de manejo dessa questão. Como sugere Figueiredo (2010), “é preciso ir além desse obstáculo [...] e localizar a cada caso o modo como cada um paga para levar adiante seu tratamento” (p. 13).