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Os modos de produção da Atenção ao sofrimento psíquico na Saúde Mental

2. C ONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

2.2. Os modos de produção da Atenção ao sofrimento psíquico na Saúde Mental

Partimos da hipótese de que há, no campo da SMC, dois paradigmas de Atenção ao sofrimento psíquico em constante contradição dialética. Segundo a proposta de Costa-Rosa, a análise dos paradigmas é realizada a partir da perspectiva de quatro parâmetros básicos, a saber: 1) “concepção do ‘objeto’” e dos “‘meios’ de trabalho”, 2) Formas da organização das relações intra e interinstitucionais, 3) Formas do relacionamento com a clientela, a População e o Território e 4) Formas de seus efeitos em termos terapêuticos e ético-políticos. Em linhas gerais – tendo a psiquiatria médico-positivista como base epistemológica e as demais disciplinas como coadjuvantes – temos o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM), que aparece como o conjunto, atualmente hegemônico, de práticas de Atenção ao sofrimento psíquico, baseado: 1) em uma visão biologizante (médica) de “sujeito” e “‘meios’ de trabalho” adaptativos-aprisionantes; 2) em modalidades estratificadas tanto das relações intra e interinstitucionais (entre os trabalhadores), quanto 3) da relação com a clientela (entre os trabalhadores e os “sujeitos do tratamento” e a população); e 4) na produção de subjetividade capitalística/adaptada como efeitos de suas práticas (ética da adaptação). Por outro lado, tentando se instaurar nas brechas abertas no instituído do paradigma hegemônico, vislumbramos o Paradigma Psicossocial (PPS) como o que desponta, ainda no horizonte, dialética e rigorosamente alternativo ao seu antípoda: partindo das inovações iniciais de várias propostas de reformas no campo da SMC em vários países (FLEMING, 1976), bem como de referenciais teórico-técnicos e ético-políticos transdisciplinares (Psicanálise, Materialismo Histórico, Análise Institucional francesa e Filosofia da Diferença), o PPS parte dos princípios de: 1) uma visão complexa de sujeito (sujeito entre social – “existência sofrimento” – e “ser” de sentido em movimento entre

significantes – sujeito do [desejo] inconsciente) e “‘meios’ de trabalho” singularizantes; 2)

modalidades horizontalizadas tanto das relações intra e interinstitucionais (entre os trabalhadores), quanto 3) da relação com a clientela (entre os trabalhadores e os “sujeitos do tratamento” e a população); e 4) produção de subjetividade desejante/singularizada, no que diz respeito aos efeitos de suas práticas (ética da singularização)11.

11 Para um exame mais detalhado desta proposta de análise paradigmática no campo da SMC, confira Costa-

Rosa (1987, 1991, 2000, 2013a, 2013e) e Costa-Rosa, Luzio e Yasui (2003), bem como o ensaio “Do Terapêutico Alienante ao Analítico Singularizante...” nesta dissertação.

2.2.1. As modalidades de clínica na Saúde Mental Coletiva

Ao longo da história, podemos identificar três modalidades de clínica que ocuparam a dianteira das instituições públicas de Atenção ao sofrimento psíquico, e que, muitas vezes, continuam dividindo os mesmos espaços no momento histórico atual (BEZERRA, 2013; MONDONI; COSTA-ROSA, 2010; MONTEZUMA, 2001). Nossa hipótese é de que tais modalidades de clínicas, respectivamente, resultam do PPHM, da Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb) e do PPS. Primeiramente, identificamos uma Clínica do Olhar, que calcada no princípio doença-cura exclui a subjetividade, na medida em que parte de uma relação estritamente vertical entre médico e doente, na qual aquele possui o Saber-Poder sobre este

tomado como objeto passivo no tratamento. Nessa perspectiva clínica, o paciente não tem,

muitas vezes, sequer o reconhecimento como indivíduo (FOUCAULT, 1980), que dirá como

sujeito em sua singularidade, já que “o doente é convidado, assim, a se desprender de

qualquer interpretação subjetiva sobre o que lhe ocorre” (CLAVREUL, 1983, p. 97).

Inspirada na experiência italiana, desde o final da década de 1970, a RPb vem propondo uma modalidade de tratamento que, dadas suas características, podemos chamar de Clínica do Cuidado, como proposta de substituição à Clínica do Olhar. A principal contribuição da RPb se verifica no fato dela ter diversificado os “‘meios’ de trabalho”, bem como ter ampliado em parte a “concepção do ‘objeto’”. No entanto, se a Clínica do Cuidado concebe seu ‘objeto’ para além do orgânico – contudo, apenas na sua versão racional, ainda

eu do ente, cidadão de direitos como “existência-sofrimento” na sua relação com o corpo

social (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 1990) – isso ainda não é suficiente para o horizonte de produção subjetiva Outra proposto pelo PPS. Sem a ampliação da “concepção do ‘objeto’” até o ponto de se considerar a dimensão propriamente subjetiva do Homem, como sujeito do [desejo] inconsciente entre significantes, as ações de Atenção continuarão tendo o caráter tutelar e alienante, como efeito imediato do “saber enciclopédico-pedagógico- cuidador”, típico do princípio sujeito-objeto presente nas disciplinas profissionais (COSTA- ROSA, 2013e; FOUCAULT, 2004). Sem a inclusão dos referenciais teórico-técnicos e éticos necessários para a efetiva transposição paradigmática, partindo da bandeira da luta política por resgate dos direitos dos “sujeitos do tratamento”, a RPb acaba desembocando em um ímpeto por incluir a todo custo (RINALDI, 2005, 2006) sem ver que “O ‘Manicômio Químico’ é a forma mais sofisticada dessa lógica [manicomial]: exclusão sem reclusão, com inclusão (na comunidade e na família, como se costuma dizer, elidindo que é na ‘comunidade de consumidores’)” (COSTA-ROSA, 2013f, p. 217). Assim, as clínicas do Olhar e do

tamponamento dos impasses psíquicos, no que diz respeito ao plano da política – que também

é subjetivado –, corroboram a manutenção do instituído social opressor dentro do Processo de Estratégia de Hegemonia (PEH) capitalista. Um dos aspectos mais importantes a destacar nessas modalidades de clínica, típicas do PPHM – mesmo que a Clínica do Cuidado da RPb já seja uma (primeira) diferenciação importante, apesar de ainda não dialética, da Clínica do Olhar –, é o fato de não ocorrer, por parte dos “sujeitos do sofrimento”, a apropriação do produto final do processo de produção da Atenção (COSTA-ROSA, 2013a): o produto final, em última instância, continua sendo a extração indireta da mais-valia, pela via do consumo do produto de outras instituições do MCP (COSTA-ROSA, 1987, 2013a; MERHY, 1987; LUZ, 1979), bem como, e consequentemente, a produção de subjetividade serializada/adaptada (GUATTARI; ROLNIK, 1996), igualmente interessantes ao MCP. Se a Clínica do Cuidado vem tentar superar a anterior, é fato que se apresenta apenas como diferenciação não

essencial (COSTA-ROSA, 1987, 2000). É isso que nos permite englobar a Clínica do Olhar

do PPHM, e mesmo ainda a Clínica do Cuidado da RPb, como fazendo parte do que propomos nomear como Tratamento Terapêutico Alienante. Com isso, enunciamos a modalidade de clínica que convém ao PPS como Clínica do Sujeito, tal como propõe a psicanálise do campo de Freud e Lacan (BEZERRA, 2013; COSTA-ROSA, 2013c, 2013e, 2012; COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2003; FIGUEIREDO, 1997; RINALDI, 2005, 2006; VIGANÒ, 1999), para, somente assim, colocar em ação um Tratamento Analítico Singularizante capaz de ter como efeito possível a produção de subjetividade singularizada, simultaneamente nos planos subjetivo e político-social12.

Ao propor uma modalidade de psicotherapia Outra, como dispositivo imprescindível para tal clínica, partimos do fato de que o sujeito, tal como o definimos a partir da psicanálise,

não está em questão no mote das psicoterapias em geral, nem mesmo naquelas ditas de

“orientação psicanalítica” que, ao passarem ao largo dos conceitos fundamentais da psicanálise (o sujeito e o inconsciente, a transferência e a interpretação), distanciam-se da experiência singularizante psicanalítica.

12 Para um exame mais detalhado sobre a diferenciação dos dois tipos de tratamentos presentes no campo da

SMC, dialeticamente contrários, ver o ensaio “Do Terapêutico Alienante ao Analítico Singularizante...” nesta dissertação.

3.

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AS PSICOTERAPIAS EM GERAL A UMA PSICOTHERAPIA

O

UTRA: