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4 RESULTADOS

4.2 UMA VISÃO COMPARATIVA DOS CASOS

4.2.3 Afinidade cognitiva

A análise apresentada nesta subseção complementa a anterior para atender ao objetivo específico de avaliar as formas de capital social nas relações organizacionais com stakeholders, considerando a dimensão cognitiva do capital social das relações com stakeholders.

Em ambos os casos estudados, existe afinidade cognitiva entre os membros internos das organizações. O desenvolvimento de afinidades cognitivas entre os gestores da Fazenda Progresso sobre o direcionamento do negócio é facilitado por residirem dentro da própria fazenda, que proporciona uma maior frequência de interações entre eles. As residências dos gestores são parte da infraestrutura que foi construída dentro da Fazenda Progresso desde quando ela foi fundada, devido à distância dos centros urbanos e à falta de estrutura das cidades mais próximas. O compartilhamento de significados entre os membros da APASPI quanto

ao uso da terra e dos cultivos mostra uma afinidade cognitiva associada à identidade cultural da comunidade remanescente do povo Zabelê, que costumava viver de maneira integrada ao meio ambiente em áreas onde hoje são reservas do Parque Nacional Serra da Capivara. Atualmente, a comunidade onde moram os membros da APASPI é habitada também por pessoas com outra origem cultural e outros costumes, devido ao processo de assentamento realizado pelo INCRA em busca de atingir metas de reforma agrária.

Dois grupos de agricultores dedicados à produção de algodão fazem parte da APASPI, sendo um localizado na região da Lagoa dos Prazeres, e outro localizado no povoado Novo Zabelê. Em ambos os grupos de produtores, a APASPI estabelece comissões de avaliação da conformidade da produção orgânica, cuja efetividade depende da afinidade cognitiva sobre os padrões de produção orgânica entre os demais agricultores e os membros das comissões. Essa afinidade cognitiva leva à implementação dos padrões desejados de produção orgânica pelos agricultores, que são reconhecidos recebendo a certificação necessária para comercialização dos seus produtos. O compartilhamento de significados é reforçado em grupos sociais com forte lealdade interna, provocando uma reciprocidade particular e constituindo um capital social de união (PUTNAM, 2000). Os grupos sociais coesos são dotados de um poder de ação coletiva, sendo capaz de restringir o comportamento de atores com pouca afinidade cognitiva e que não compartilham os mesmos significados por meio de sanções coletivas (COLEMAN, 1988). Assim, as comissões são capazes de canalizar a afinidade cognitiva sobre a produção de algodão entre os membros da associação e facilitar o compartilhamento de significados.

As relações das organizações estudadas com organizações governamentais são caracterizadas de maneiras distintas quando se trata da afinidade cognitiva entre elas. Uma forte afinidade cognitiva na identificação de problemas e implementação de soluções entre os gestores da APASPI e os gestores do Projeto Dom Helder Camara (PDHC) é proporcionada pelo relacionamento de confiança entre eles, representando a inter-relação entre as dimensões relacional e cognitiva do capital social (TSAI; GHOSHAL, 1998; RÉGIS; DIAS; BASTOS, 2006). As relações de confiança e afinidade cognitiva construídas entre os gestores da APASPI e do PDHC, a partir das experiências positivas que foram consolidadas ao longo do tempo, levaram essas organizações a manter o laço entre elas mesmo após o término dos vínculos formais.

Na sua relação com a APASPI, o Projeto Dom Helder Camara proporciona a construção e o desenvolvimento de competências para os

agricultores acerca dos conhecimentos e das práticas da agroecologia, intensificando a afinidade cognitiva entre essas organizações. Essa afinidade cognitiva é o resultado final de um processo de aprendizagem promovido pelo acesso a fontes de informações não redundantes para os membros da associação, constituindo um capital social de ponte (BURT, 2007; PUTNAM, 2000). A afinidade cognitiva entre a APASPI e os gestores do PDHC é fortalecida quando as opiniões dos membros da associação são formadas com base no conhecimento acerca das práticas agroecológicas. Diferentemente do caso da APASPI, a relação entre Fazenda Progresso e a ANVISA não é caracterizada por afinidade cognitiva na identificação de problemas e implementação de soluções, possivelmente devido às diferenças de interesses entre essas organizações. O caso recente de infestação da lagarta helicoverpa na produção de algodão ilustra a diferença nos interesses dos cotonicultores empresariais e da agência reguladora, levando a uma falta de afinidade cognitiva entre eles para solucionar o problema. Enquanto o interesse dos empresários era erradicar a praga rapidamente com o uso de novos produtos desenvolvidos por indústrias agroquímicas, o interesse da ANVISA era impedir o uso desses produtos por precaução aos efeitos danosos que poderiam provocar na saúde coletiva.

As atividades dos cotonicultores empresariais são regulamentadas por organizações governamentais, como a ANVISA, forçando a adoção de determinadas soluções pelos produtores a partir da identificação de problemas. As ações desses produtores, diante da identificação de problemas e na adoção de soluções, decorrem de instrumentos normativos com força coercitiva das organizações governamentais, em vez de uma afinidade cognitiva com essas organizações. As relações dos cotonicultores empresariais com as organizações governamentais são caracterizadas por morosidade nos processos burocráticos, que não atende ao critério de urgência dos produtores na busca de soluções, tornando menos propensa a afinidade cognitiva para tratar dos problemas no campo.

As relações da Fazenda Progresso com os gestores da ABRAPA e da APIPA são mais propensas a ter maior afinidade cognitiva acerca da identificação de problemas no campo e da implementação de soluções, pois esses stakeholders compartilham a urgência para implantar soluções, a fim de evitar perdas na produção. A importância da relação entre os gestores da Fazenda Progresso e as associações de cotonicultores empresariais, como a APIPA e a ABRAPA, repousa em ter suas demandas representadas perante órgãos nacionais e internacionais. As relações com as associações de cotonicultores empresariais permitem o

acesso a um capital social organizacional, concentrado em um pequeno grupo de atores com poder simbólico para representar, falar, agir e exercer autoridade em nome de todo o grupo com a contribuição pessoal dos seus membros (BOURDIEU, 1980).

A afinidade cognitiva entre os gestores das diversas organizações que compõem as associações de cotonicultores empresariais e entre os seus próprios gestores é um requisito para a representação efetiva das demandas dos produtores. Essas associações são organizações que podem levar a melhorias na cadeia produtiva, conferindo legitimidade a uma série de projetos e ações, que, por sua vez, geram a oportunidade de constituição de capital social entre os produtores de algodão. Por exemplo, a ABRAPA assume o papel de organização articuladora de soluções, promovendo a troca de informações sobre os problemas compartilhados entre os produtores, como os prejuízos econômicos significativos causados pela infestação da helicoverpa na produção de algodão. Assim, as associações de cotonicultores empresariais facilitam a afinidade cognitiva entre os produtores e a constituição de um capital social que se torna disponível para ser usado na resolução de problemas futuros (LOPOLITO; NARDONE; SISTO, 2011; PUTNAM, 2002).

Entre os cotonicultores empresariais, existe uma afinidade cognitiva na adoção de soluções desenvolvidas pelas empresas multinacionais fornecedoras de agroquímicos para os problemas produtivos causados por pragas, doenças e ervas daninha, constituindo um capital social cognitivo baseado em visões compartilhadas (NAHAPIET; GHOSHAL, 1998). O uso de agroquímicos, que caracteriza o campo da agricultura convencional, é compartilhado nas decisões dos produtores empresariais por influência das empresas multinacionais fornecedoras desses agroquímicos. A adesão às soluções oferecidas pelas empresas fornecedoras de agroquímicos é comum entre os gestores de estabelecimentos produtores de algodão convencional, mas os gestores da Fazenda Progresso não compartilham essa visão, buscando desenvolver soluções próprias internamente por meio da agricultura de precisão. Apesar de ser um modelo que não abandona o uso de agroquímicos, a agricultura de precisão é uma técnica agronômica capaz de reduzir o uso de agrotóxicos em função das propriedades do clima e do solo.

No caso da APASPI, existe uma forte afinidade cognitiva com os técnicos da Cáritas quando se trata da identificação de problemas e implementação de soluções. A APASPI e a Cáritas compartilham o interesse pela agroecologia como base de conhecimento para uma agricultura adequada ao sistema familiar de produção, enfatizando o

convívio das populações rurais com o meio ambiente. A atuação conjunta dessas organizações ao longo do tempo construiu uma trajetória de experiências que serviu de base para o desenvolvimento de afinidade cognitiva entre seus gestores e, consequentemente, para a constituição de capital social. Esse capital social desenvolvido entre a APASPI e a Cáritas permite que a relação de assistência técnica se mantenha por vínculos informais após a conclusão da parceria formal intermediada pelo PDHC.

A figura 11 ilustra os casos da APASPI e da Fazenda Progresso sobre a afinidade cognitiva entre os seus gestores e os das organizações com quem estabelecem relações. As organizações identificadas nas áreas azuis são as que possuem grande afinidade cognitiva com as organizações estudadas, enquanto as organizações identificadas nas áreas periféricas são as que possuem pouca ou nenhuma afinidade cognitiva com a APASPI ou a Fazenda Progresso. Em ambos os casos, existe uma forte afinidade cognitiva entre os gestores e membros internos em cada uma dessas organizações, que é facilitada por alguns mecanismos como a formação de comissões na APASPI e as residências internas na Fazenda Progresso. Também existe uma forte afinidade cognitiva entre os gestores da APASPI e da Fazenda Progresso com os gestores de organizações do terceiro setor como a Cáritas, que presta suporte técnico no sistema produtivo da APASPI, e a ABRAPA, que representa as demandas dos cotonicultores empresariais, inclusive da Fazenda Progresso. Quando se trata das relações com organizações governamentais, é notada uma distinção entre os casos estudados.

Figura 11: Afinidades cognitivas da APASPI e da Fazenda Progresso

Os gestores da APASPI possuem uma forte afinidade cognitiva com os gestores do PDHC em decorrência da construção de uma trajetória de experiências positivas, enquanto que a ANVISA é vista como uma organização que cria barreiras para a solução de problemas comuns entre os cotonicultores empresariais, resultando em pouca afinidade destes com a agência governamental. Os gestores da Fazenda Progresso ainda destacam uma fraca afinidade cognitiva com as multinacionais fornecedoras de agroquímicos, apesar de a interação com essas organizações ser uma relação de forte afinidade com as demais empresas no seu campo de atuação.