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1 TERMINOLOGIA E CONCEITOS

1.3 Afixoide locativo

Os pronomes locativos, conforme Câmara Jr. (1985), são pronomes demonstrativos em função adverbial13 de lugar, cujo papel é indicar a posição no espaço de um elemento do

mundo biossocial tratado na língua como “ser” ou “nome”, em relação à localização do enunciador. No entanto, ao constituírem subpartes periféricas de construções mais complexas, como ocorre, por exemplo, em calma lá, os locativos não mais apontam para uma referência espacial no mundo biossocial. Em casos como esse, passam a contribuir, com sentidos mais abstratos, para a função da nova unidade, isto é, da nova vinculação sintático-semântica como um todo. Sendo assim, devido à necessidade de nos valermos de uma denominação apropriada

13 Na língua latina, os advérbios eram formados, principalmente, por pronomes ou nomes que se declinavam, em geral, no caso ablativo, ou recebiam um sufixo específico. Eram três os principais tipos de advérbios: locativos (ex.: hic > aqui; illic > ali), temporais (ex.: hodie > hoje; heri > ontem), ambos de natureza pronominal, e modais (ex.: belle > bem; celeriter > depressa), de natureza nominal. (CÂMARA JR., 1985).

para a categoria dos locativos em integrações desse tipo, elegemos para esse fim o termo

afixoide.

Em consonância com Booij (2013), definimos afixoide14 como uma categoria gradiente, situada no intervalo entre termos lexicais, mais plenos, como nomes e verbos, e termos de maior significado procedural, mais abstratos, como afixos e desinências. Trata-se de constituintes mais leves, em termos de conteúdo e forma, que, vinculados a outros elementos nucleares, concorrem para a configuração de expressões específicas. A lev eza de conteúdo reside no fato de o afixoide não mais veicular apontamento lexical, e sim significados mais abstratos, conforme dito anteriormente. A leveza de forma confirma-se pela integração (morfo)fonêmica do afixoide ao elemento nuclear, produzindo redução a um (1) só vocábulo fonológico.

Para justificar a escolha do termo afixoide em detrimento de outros termos utilizados por diferentes analistas para se referirem a elementos periféricos em variadas expressões, consideramos importante apresentar as definições de clítico, desinência15 e afixo. Vocábulos

clíticos, ou átonos, segundo Bechara (2009, p. 89), são aqueles que “perdem seu acento

próprio para unir-se a outro que os segue ou que os precede”. Braga e Paiva (2003, p. 209) referem-se ao uso clítico de aí em formações como alguma fofoquinha aí. Posteriormente, Aguiar (2015) investiga tais expressões sob a ótica da abordagem construcionalista , identificando vinculações sintático-semânticas, entre nomes e locativos, de caráter atributivo. Tendo em vista que o clítico constitui com a palavra a que está ligada uma unidade apenas no nível da forma (morfo)fonêmica, entendemos que o elemento aí, como na formação supracitada, exerce papel afixoide, definido como integrante de pareamentos de forma e conteúdo. De acordo com Cunha e Cintra (2008, p. 92), as desinências, ou morfemas flexionais, servem para indicar: i) o gênero e o número dos substantivos, dos adjetivos e de certos pronomes; ii) o número e a pessoa dos verbos. Por se tratar meramente de flexão sem alteração de significado, tal definição não corresponde ao papel dos locativos em formações construcionais. Para Cunha e Cintra (2008, p. 93-94), afixos, ou morfemas derivacionais, são elementos que modificam geralmente de maneira precisa o significado do radical a que se agregam, podendo antepor-se (prefixos) ou pospor-se (sufixos) a ele, até mesmo alterando-lhe a classe. Logo, o afixoide possui aspecto de afixo, contudo, o significado do novo arranjo linguístico por ele composto não corresponde à soma dos significados das subpartes

15 Segundo Cunha e Cintra (2008), a distinção entre sufixo e desinência, nem sempre é observada pelos linguistas modernos, pertencendo, portanto, à análise mórfica tradicional.

envolvidas, conforme ocorre com o segundo. Com base no exposto, entendemos que afixoide

locativo é o elemento resultante do (ou ainda em trânsito no) processo de construcionalização

ou mudança construcional16 da unidade complexa [Indut Afix

Loc]. A seguir, apresentamos um

quadro sintético de análise dos componentes da sequência/construção espera aí, em que são apontadas as características do pronome locativo e do afixoide:

Quadro 2: Análise sintética dos componentes de espera aí.

Enquadramento Exemplo Componente

nuclear: espera

Componente periférico: aí Espaçotemporal (12)“estou com minha mulher saindo

para te visitar. Espera aí na sua casa, porque vou aí.” (Diário do Congresso Nacional, 11 abr. 1986). - elemento indutor (verbo); - conteúdo lexical; - elemento central; - elemento sintática e semanticamente imprescindível na relação com aí.

- pronome locativo; - conteúdo lexical; - elemento sintática e semanticamente deslocável; - elemento sintática e semanticamente prescindível na relação com espera. Temporal-

discursivo

(13) “Jose Paulo de Andrade: Muito bem, Ministro. Então nós perguntaríamos, já no final do programa ao senhor [...] Quando é que os juros deixarão de aumentar o principal? Joelmir Beting: Não, um momentinho. Espera aí. Hoje, o Ministro embarca para Nova Iorque, e a gente vai colocar primeiramente esta questão: o que o senhor vai fazer em Nova Iorque?” (Diário do Congresso Nacional, 24 mar. 1983). - elemento indutor (verbo/subparte da expressão complexa); -conteúdo menos lexical que o anterior; - elemento não deslocável em relação a aí; - elemento sintática e semanticamente imprescindível na relação com aí.

- afixoide (subparte da expressão complexa); - conteúdo abstratizado; - elemento não deslocável em relação a espera; - elemento sintática e semanticamente imprescindível na relação com espera.

Discursivo (14) “O Sr. José Luís Escanhoela: [...] Porque há dificuldade de vir um prefeito à Brasília, pedir a um Deputado ou coisa assim; é muito difícil. O Sr. Itamar Franco: Não.

Espera aí. V. Sª. diz que nunca veio à

Brasília. Então, qual é a dificuldade? O escritório de V. Sª. nunca veio à Brasília; tinha aqui apenas um intermediador; uma hora era o Dr. Paulo, outra hora foi o Dr. Boni?” (Diário do Senado Federal, 15 dez. 1988). - elemento indutor (subparte da expressão complexa); -conteúdo abstratizado; -elemento não deslocável em relação a aí; - elemento sintática e semanticamente imprescindível na relação com aí.

- afixoide (subparte da expressão complexa); -conteúdo abstratizado; -elemento não deslocável em relação a espera; - elemento sintática e semanticamente imprescindível na relação com espera.

Fonte: Exemplos retirados do Diário do Congresso Nacional: <https://www.congressonacional.leg.br/>.

Embora o significado construcional não corresponda à soma dos significados das subpartes envolvidas, cada subparte concorre para a instanciação da construção como um todo. Desse modo, traços semânticos dos locativos, como aqueles relacionados à proximidade (primeira, segunda ou terceira pessoa do discurso), à granulidade17 (fina/estreita ou vasta), à

perspectivização do espaço, à referenciação dêitica e anafórica, entre outros, devem impactar e motivar sua instanciação em construções. No capítulo de análise de dados, objetivamos observar alguns dos fatores que motivam a seleção dos locativos para a instanciação de construções, entendidas, conforme Goldberg (1995; 2006) e Croft e Cruse (2004), como pareamentos convencionais de forma e conteúdo18. Tendo em vista que a vinculação sintático-

semântica dos elementos indutor-refreadores com os afixoides serve à função por nós denominada refreador-argumentativa, definimos, na próxima seção, o que entendemos por

argumentação.

1.4 Argumentação

Charaudeau19 (1992), em seu capítulo sobre “O modo de organização argumentativo”,

fornece algumas respostas para a pergunta “O que é argumentar?” no intuito de chegar à sua definição e função:

A) A argumentação não pode se reduzir à identificação de uma sequência de frases ou proposições ligadas por conectores lógicos.

B) Não se deve confundir argumentação com outros atos do discurso que se combinam frequentemente a ela, mas possuem existência autônoma, tais como a negação, a refutação, a proibição. A argumentação relaciona-se ao raciocínio do interlocutor (capacidade de refletir e compreender) ainda que seja para obter o mesmo resultado. O sujeito que argumenta passa pela expressão de uma convicção e de uma explicação que ele tenta transmitir ao interlocutor para persuadi-lo e modificar seu comportamento.

C) Para que haja argumentação, é preciso que exista:

17 De acordo com Batoréo (2000, p. 439), a granulidade, termo oriundo da Inteligência Artificial, define as diferenças nas regiões de vizinhança dos conjuntos, a partir de dois subsistemas: a) granulidade vasta do binômio

cá/lá e granulidade fina ou estreita, correspondente a um ponto específico, como aqui/aí/ali.

18 Proposta autoral.

19 A Semiolinguística, vertente teórica do autor, é também, em termos gerais, uma orientação funcionalista, pois se volta para os usos e análises linguísticas.

- uma declaração sobre o mundo que seja discutível, para alguém, quanto à sua legitimidade.

- um sujeito que se engaje em relação a essa discussão (convicção) e desenvolva um raciocínio para tentar estabelecer uma verdade (seja particular ou universal, seja uma simples aceitação ou legitimidade) sobre a proposição.

- outro sujeito que, imbuído da mesma proposição, discussão e verdade, constitui o alvo da argumentação. Trata-se da pessoa a quem se dirige o sujeito que argumenta, na esperança de levá-lo a partilhar a mesma verdade (persuasão), sabendo que ele pode aceitar ou recusar a argumentação. A argumentação, portanto, define-se por meio de uma relação triangular entre um sujeito argumentador, uma declaração sobre o mundo e um sujeito alvo.

D) Argumentar é, então, uma atividade discursiva que, considerada do ponto de vista do sujeito argumentador, envolve uma dupla busca:

- uma busca de racionalidade que tende a um ideal de verdade quanto à explicação dos fenômenos do universo. Porém, trata-se apenas de um ideal, porque quando esses fenômenos têm uma explicação (uma razão de ser) universal, eles são percebidos por meio de filtragens: da experiência individual e social do indivíduo, inserido necessariamente em um determinado enquadramento espacial e temporal, e de operações do pensamento que constroem um universo discursivo de explicação, o qual depende de esquematizações coletivas.

- uma busca de influência que tende a um ideal de persuasão, que consiste em partilhar com o outro (interlocutor ou destinatário) um certo universo do discurso a ponto de ele ser levado a compartir do mesmo ponto de vista (co-enunciação).

Charaudeau (1992), então, faz alguns apontamentos:

- Não se deve confundir “fazer aderir”, “fazer compreender”, “manipular o outro”, que correspondem a objetivos da comunicação, com “seduzir” e “persuadir”, que resultam do emprego de certos meios discursivos.

- Argumentar é uma atividade que inclui muitos processos, mas o que distingue esses processos dos MOD é, precisamente, que eles se enquadram em um objetivo racionalizante, em que se joga o jogo do raciocínio, marcado por uma lógica e um princípio de não contradição. Os processos dos outros MOD (descritivo e narrativo) enquadram-se em um objetivo descritivo e mimético das percepções do mundo e das ações humanas.

O linguista acrescenta ainda que a argumentação é uma totalidade que o MOD argumentativo contribui a construir. Ela é, portanto, o resultado textual de uma combinação entre diferentes componentes, que depende de uma situação persuasiva. Esse texto, inteiro ou parcial, poderá apresentar-se sob forma dialógica (argumentação interlocutiva), escrita ou oratória (argumentação monolocutiva). É nesse enquadramento que são utilizadas expressões do tipo “desenvolver uma boa argumentação”, “ter bons argumentos”, “argumentar bem” etc. O MOD argumentativo constitui a mecânica que permite produzir argumentos sob diferentes formas. Sua função é licenciar a construção de explicações sobre asserções feitas a respeito do mundo (sejam fruto da experiência ou do conhecimento).

Diferentemente de alguns teóricos que acreditam que toda asserção é necessariamente argumentativa, Charaudeau (1992) afirma que toda asserção pode ser argumentativa, desde que esteja inserida em um mecanismo argumentativo. De acordo com o autor, um processo argumentativo não deve ser confundido nem com uma simples asserção (“eu bebo água”) nem mesmo com um simples encadeamento lógico de duas asserções (“eu bebo água para emagrecer”). Asserção e encadeamento de asserções se combinam para constituir a parte do processo argumentativo chamada de proposição. Porém, para que tal processo se desenvolva, é preciso cumprir duas condições:

- que o sujeito que vai argumentar tome posição em relação à veracidade de uma proposição existente (enunciada para si mesmo ou para outro).

No entanto, essa condição não é suficiente, já que o sujeito pode se contentar em dizer que está de acordo (“sim, é verdade”, “você tem razão”) ou em desacordo (“não, não é verdade”, “você está enganado”) sem desenvolver uma argumentação. Portanto é necessário: - que o sujeito diga por que está de acordo ou não, ou, se é ele mesmo que está em meio a um questionamento, que ele apresente a prova da veracidade de sua proposição, desenvolvendo um ato de persuasão (“eu bebo água para emagrecer, porque, devido à sua característica diurética, a água elimina as toxinas”).

Logo, para o teórico francês, o mecanismo argumentativo se compõe de três elementos, que, na configuração de uma argumentação, são suscetíveis de se sobreporem:

- proposição: é constituída pela relação, explícita ou implícita, entre asserções que tratam de fenômenos do mundo; pode corresponder a uma tese.

- alegação: baseia-se na possível discussão da proposição. Tal discussão depende da tomada de posição do sujeito diante da veracidade da proposição, que desencadeia o desenvolvimento da argumentação para uma ou outra direção. O sujeito pode 1- tomar

posição contra a proposição, refutando-a; 2- tomar posição a favor da proposição, justificando-a; 3- não tomar posição, realizando uma ponderação.

- persuasão: trata-se de um raciocínio convincente que deve desenvolver uma das opções de discussão: refutação, justificação ou ponderação, recorrendo a recursos diversos a fim de se estabelecer a prova da posição adotada na alegação.

Longe da pretensão de realizar análises exaustivas do mecanismo e dos procedimentos argumentativos empregados, observemos o seguinte exemplo retirado do corpus de pesquisa a fim de verificarmos amostras da explanação anterior:

(15) Sr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: [...]. Estamos trabalhando em cima do quê? Do fato imputado. Mas a questão da [ininteligível] não é do fato imputado. É uma definição injurídica diante de fatos novos que muda-se a qualificação jurídica [...]. Sr. Eugênio Pacelli de Oliveira: Não. Jacinto, escuta aqui, se você descobre fatos novos que não tem relação com o fato que está sendo apurado, você não tem que aditar nada. Tem que entrar com a nova ação penal. É outra história. Não é isso, não. Nós não estamos descobrindo a pedra, não. Isso aqui, a mutatio libelli é apuração de fatos que não foram narrados, mas que tem inteira conexão com o núcleo da ação. Se não for assim, não cabe mutatio, cabe é nova ação penal. Eu acho que é bobagem a gente pensar em acabar com a mutatio. (Diário do Senado Federal, 18 jun. 2009).

No fragmento (15), é possível observar que “É uma definição injurídica diante de fatos novos que muda-se a qualificação jurídica” constitui a proposição enunciada por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Seu interlocutor, Eugênio Pacelli de Oliveira, posiciona-se, então, contra a tese do enunciador: “Não”, e dá início à refutação da mesma. Ao conduzir sua alegação, Eugênio vale-se de procedimentos da lógica argumentativa, como, por exemplo, o que Charaudeau chama de dedução pragmática: “se você descobre fatos novos que não tem relação com o fato que está sendo apurado, você não tem que aditar nada. Tem que entrar com a nova ação penal”. O argumentador utiliza ainda um procedimento discursivo bastante comum em MOD descritivos: a definição. O seu uso produz um efeito de evidência e conhecimento por parte do sujeito que argumenta, o que contribui para a efetivação da persuasão: “Isso aqui, a mutatio libelli é apuração de fatos que não foram narrados, mas que tem inteira conexão com o núcleo da ação”.

Entendendo que nosso objeto de pesquisa é frequentemente empregado nos mecanismos da argumentação, nos moldes anteriormente descritos, decidimos lançar mão de uma fonte de dados linguísticos, da sincronia atual, cujos textos fossem predominantemente argumentativos: o Diário do Congresso Nacional. Em se tratando de um ambiente em que cada coligação política quer não só defender o seu ponto de vista como também convencer os

demais grupos da validade e importância de sua opinião, é natural que os parlamentares se valham de tessituras argumentativas para tal fim. Assim, acreditamos que esse contexto favorece o uso das construções refreador-argumentativas, enquadradas na categoria dos marcadores discursivos, sobre a qual discorremos na seção seguinte.