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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 Rede construcional: nós, links e reconfiguração

Conforme declaram Traugott e Trousdale (2013), um tema recorrente na gramática de construções é a metáfora da rede. Goldberg (2003) sugere que todo o nosso conhecimento linguístico é abarcado por uma rede de construções. Croft (2007) identifica dois princípios fundamentais na gramática de construções: o pareamento de forma e conteúdo (nos termos aqui propostos) e a associação desses pareamentos em uma rede. Uma primeira linha de pensamento sobre redes mantinha foco na semântica e no léxico. Lakoff (1987), por exemplo, propôs que as polissemias são irradiadas de um protótipo ou “significado central” como se fossem extensões. Contudo, a maioria das pesquisas acerca das redes, pela perspectiva da gramática de construções, também se refere à forma.

Os pontos cruciais para a ideia de rede são os conceitos de nós e links entre os nós, “distância” entre membros da família, agrupamentos de propriedades, graus de convencionalização e acessibilidade de uma construção. Hudson (2007) postula que a língua é uma rede conceptual; é conceptual, porque é cognitiva, e é uma rede, porque é um sistema de entidades interconectadas. Conforme Hudson (2007), as redes eram o centro da caracterização saussuriana da língua como “um sistema de termos independentes em que o valor de cada termo resulta unicamente da presença simultânea de outros termos” (SAUSSURE, 2006). A esse respeito, Traugott e Trousdale (2013) acrescentam duas questões críticas para seus propósitos de pesquisa: as redes (i) não são limitadas ao léxico como ocorre no trabalho de Saussure e (ii) são dinâmicas, isto é, novos links e novos nós são estabelecidos de modo contínuo.

Alguns nós na rede representam macroconstruções, outros mesoconstruções e outros microconstruções, isto é, cada nó representa uma construção em algum nível de abstração. Portanto, um nó apresenta forma e conteúdo (apesar dos variados graus de complexidade e especificidade) e links que podem apontar para múltiplas direções diferentes em relações semânticas, pragmáticas, discursivas, sintáticas, morfológicas e/ou fonológicas com outros nós. Na projeção dos objetos desta investigação em rede, valemo-nos da hierarquia construcional tratada anteriormente, em que se estabelecem associações entre conceitos de nível básico (subcategorias) e conceitos mais esquemáticos (supercategorias), que constituem generalizações sobre os primeiros. Assim, apresentamos o arcabouço26 da rede a ser detalhada

no quinto capítulo:

26 Os níveis construcionais receberam ordenação crescente de baixo para cima, por entendermos que as análises pautadas na Linguística Funcional Centrada no Uso são iniciadas pela observação do construto.

Figura 2: Arcabouço hierárquico da rede dos MD refreador-argumentativos

Fonte: Autoral.

Segundo Hudson (2007), na linguística cognitiva, o postulado da rede não descreve uma parte da língua, e sim toda a sua arquitetura, portanto, tudo na língua pode ser descrito formalmente em termos de nós e suas relações, e a língua como um todo é uma rede, em contraste com a visão mais tradicional que a limita como um conjunto de gramática e dicionário.

Traugott e Trousdale (2013) comentam que a ideia de que a língua é uma rede é consonante com as postulações da linguística cognitiva de que outros aspectos da cognição, como as habilidades da visão e as musicais, por exemplo, também são estruturados em rede. Para Bybee (2010), a padronização da língua é parte da nossa capacidade de domínio geral de categorizar, estabelecer relações e operar tanto em nível local quanto global. A rede é um dos modelos centrais na linguística cognitiva devido ao entendimento de que a organização da língua não é intrinsecamente diferente da organização de outros aspectos da cognição. Hudson (1984, p.1) propõe que “a língua é uma rede conceptual”. Langacker (2008) descreve o seu modelo de gramática cognitiva como uma rede construcional. “Podemos descrever uma língua como um inventário estruturado de unidades linguísticas convencionais. Essa estrutura – a organização de unidades em redes e agrupamentos – está intimamente relacionada com o uso da língua, moldando-o e sendo moldada por ele.” (LANGACKER, 2008, p.222).

Segundo Traugott e Trousdale (2013), as mudanças que ocorrem ao longo do tempo nas redes não estão limitadas a criação e perda. Como consequência dos processamentos on-

line e das neoanálises, é possível haver mudanças na configuração das famílias de nós

relacionados na rede, isto é, nos subesquemas (mesoconstruções) e até mesmo nos esquemas (macroconstruções). Tratando da reorganização dos links de herança, Torrent (2015) declara que os falantes, diferentemente dos linguistas, não conhecem necessariamente a história das construções. Portanto, os falantes apenas acessam as propriedades de forma e conteúdo dos padrões e, a partir dessas propriedades, as relações de motivação existentes entre as construções. Para o autor, padrões existentes motivam novas construções e constroem

Microconstrução nível I Microconstrução nível II Mesoconstrução nível I Mesoconstrução nível II

relações de herança com elas. Consequentemente, é possível conclui r que construções sem qualquer relação histórica possam participar de uma mesma rede devido a motivações formais e de conteúdo. O pesquisador declara que os links de herança dão conta das relações sincrônicas entre as construções e apontam para os tipos de generalizações que os falantes identificam em suas línguas. Torrent (2015) acrescenta que a emergência de novos padrões construcionais produz reconfiguração dos links de herança na rede, permitindo que os falantes estabeleçam novas relações de motivação entre as construções em uso. Nos capítulos quatro e cinco, tratamos da entrada marginal da microconstrução alto lá na família dos marcadores discursivos formados por verbos e afixoides, investigada por Teixeira (2015). Em conformidade com Torrent (2015), embora o termo alto não tenha relação histórica com quaisquer verbos do português brasileiro, a integração de alto lá à rede de [VIndut Afix]MD

ocorre devido à associação entre algumas propriedades formais e de conteúdo da microconstrução emergente e do padrão macroconstrucional já existente. O estabelecimento

de alto lá permite que sejam destacadas outras propriedades da macroconstrução relacionadas à micro, entre elas, a característica pragmática da indução. Mudada a relação de motivação, ocorre reconfiguração da macroconstrução que passa a instanciar, em sua subparte nuclear, elementos indutores de modo geral: [Indut Afix]MD.

2.3 Mudança construcional e construcionalização

Para analisar as transformações linguísticas sofridas pelas construções em foco, devemos levar em conta os dois principais tipos de mudanças apontados por Traugott e Trousdale (2013): mudança construcional e construcionalização.

A mudança construcional é a mudança que afeta uma (1) das dimensões internas de uma construção já existente, sem que ocorra a criação de nova construção. A alteração pode ser referente às propriedades da forma (sintática, morfológica, fonológica) ou relacionada às propriedades do conteúdo (semântico, pragmático, discursivo). A construcionalização costuma ser precedida e sucedida por mudanças construcionais, isto é, por uma sucessão de passos incrementais convencionalizados.

As mudanças construcionais, que, por hipótese, precedem e possibilitam a construcionalização, envolvem tipicamente, segundo os autores, expansão pragmática, semantização dessa pragmática, mismatch entre forma e conteúdo e algumas pequenas mudanças distributivas. Sendo assim, são chamadas de mudanças construcionais pré- construcionalização. Por sua vez, a construcionalização pode possibilitar mudanças