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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.3 Mudança construcional e construcionalização

qualquer relação histórica possam participar de uma mesma rede devido a motivações formais e de conteúdo. O pesquisador declara que os links de herança dão conta das relações sincrônicas entre as construções e apontam para os tipos de generalizações que os falantes identificam em suas línguas. Torrent (2015) acrescenta que a emergência de novos padrões construcionais produz reconfiguração dos links de herança na rede, permitindo que os falantes estabeleçam novas relações de motivação entre as construções em uso. Nos capítulos quatro e cinco, tratamos da entrada marginal da microconstrução alto lá na família dos marcadores discursivos formados por verbos e afixoides, investigada por Teixeira (2015). Em conformidade com Torrent (2015), embora o termo alto não tenha relação histórica com quaisquer verbos do português brasileiro, a integração de alto lá à rede de [VIndut Afix]MD

ocorre devido à associação entre algumas propriedades formais e de conteúdo da microconstrução emergente e do padrão macroconstrucional já existente. O estabelecimento

de alto lá permite que sejam destacadas outras propriedades da macroconstrução relacionadas à micro, entre elas, a característica pragmática da indução. Mudada a relação de motivação, ocorre reconfiguração da macroconstrução que passa a instanciar, em sua subparte nuclear, elementos indutores de modo geral: [Indut Afix]MD.

2.3 Mudança construcional e construcionalização

Para analisar as transformações linguísticas sofridas pelas construções em foco, devemos levar em conta os dois principais tipos de mudanças apontados por Traugott e Trousdale (2013): mudança construcional e construcionalização.

A mudança construcional é a mudança que afeta uma (1) das dimensões internas de uma construção já existente, sem que ocorra a criação de nova construção. A alteração pode ser referente às propriedades da forma (sintática, morfológica, fonológica) ou relacionada às propriedades do conteúdo (semântico, pragmático, discursivo). A construcionalização costuma ser precedida e sucedida por mudanças construcionais, isto é, por uma sucessão de passos incrementais convencionalizados.

As mudanças construcionais, que, por hipótese, precedem e possibilitam a construcionalização, envolvem tipicamente, segundo os autores, expansão pragmática, semantização dessa pragmática, mismatch entre forma e conteúdo e algumas pequenas mudanças distributivas. Sendo assim, são chamadas de mudanças construcionais pré- construcionalização. Por sua vez, a construcionalização pode possibilitar mudanças

construcionais ulteriores. Tais mudanças construcionais pós-construcionalização envolvem, tipicamente, de acordo com os autores, expansão de arranjos sintáticos (collocations) e podem também envolver reduções morfológicas e fonológicas.

A construcionalização é a criação de uma associação formanova-conteúdonovo, ou seja, é

o desenvolvimento de uma nova unidade ou signo. A construcionalização forma novos tipos de nós que têm nova sintaxe ou morfologia e novo conteúdo codificado na rede linguística de uma população de falantes. É acompanhada de mudanças referentes à esquematicidade, produtividade e composicionalidade. A construcionalização de esquemas (macroconstruções) sempre resulta de uma sucessão de micropassos, sendo, portanto, fruto de um processo gradual. Novas microconstruções podem ser criadas tanto de modo gradual quanto instantâneo. Microconstruções criadas gradualmente tendem a ser gramaticais e microconstruções criadas instantaneamente tendem a ser lexicais.

A construcionalização envolve, minimamente, neoanálise da forma morfossintática e do conteúdo semântico-pragmático. Mudanças discursivas e fonológicas também podem ocorrer em vários estágios. Mudanças somente formais e mudanças somente de conteúdo não constituem construcionalização, tratando-se, sim, de mudanças construcionais. Traugott e Trousdale (2013) focam em dois tipos principais de construcionalização: a gramatical e a lexical. A construcionalização gramatical é o desenvolvimento, por meio de uma série de mudanças em micropassos, de um pareamento de formanova-conteúdonovo que apresenta função

principalmente procedural/gramatical. Um signo gramatical aponta como um falante conceptualiza relações entre referentes nas cláusulas e como um ouvinte as interpreta. Em muitos casos, a construcionalização gramatical envolve perda do conteúdo lexical, no entanto, a fonte pode não ser lexical. A construcionalização lexical é o desenvolvimento de um pareamento de formanova-conteúdonovo que, no continuum, está mais relacionado ao polo

lexical, isto é, que faz referência a entidades/eventos do mundo biossocial. A seguir, retomamos alguns fragmentos anteriormente apresentados para ilustrar o tema desta seção:

(12) O Sr. Gastão Müller: Gastão, quando você tem um amigo chato que telefona dizendo que o vai visitar e se esquece da hora de sair, você fala o seguinte: estou com minha mulher saindo para te visitar. Espera aí na sua casa, porque vou aí. (Diário do Congresso Nacional, 11 abr. 1986).

(18) Espera. Espera aí... Não estejas a puxar por mim porque eu não posso ficar aqui contigo (Corpus do Português: Os nós e os laços, de Antonio Alçada Baptista, 1985).

(20) Copérnico - começou a desconfiar - mas espera aí - o sol gira em volta da terra - mas o sol é muito maior do que a terra - está a uma enorme distância - as estrelas - as nebulosas - estão a longínquas distâncias de nós perdidas - e como é que tudo isso pode girar em vinte e quatro

horas - em torno da terra? é impossível - alguma coisa está errada (Corpus do Português: Linguagem Falada: Recife, séc. XX).

No exemplo (12), a sequência espera aí é empregada em contexto original, em que a forma espera denota um pedido de que o interlocutor o aguarde em algum lugar, e o pronome locativo aí indica o local da espera: a casa dele. Apesar do sequenciamento sintático, trata -se de elementos independentes, havendo a possibilidade de intercalação de outros termos, tais como “Espera tranquilamente aí na sua casa” etc. No exemplo (18), verifica-se que a expressão espera aí não mais exprime um pedido de espera de alguém em lugar especificado, e sim o pedido/ordem de que o interlocutor cesse a ação de puxar a locutora. O enunciado poderia ser, grosso modo, parafraseado por “Pare de me puxar, pois não posso ficar aqui com você”. Os elementos que integram a expressão espera aí tampouco apresentam a independência anteriormente mencionada. O que se constata é o surgimento de forma nova (fixação sintática não antes existente e, posteriormente, redução morfofonêmica: peraí) vinculada a novo conteúdo (indução de refreamento de atividade do mundo biossocial: IRB). Considerando ter havido desenvolvimento de um pareamento de formanova-conteúdonovo e o

fato de a unidade emergente estar mais relacionada a entidades/eventos do mundo biossocial, linguisticamente representados por termos lexicais, concluímos tratar-se de construcionalização lexical.

No que se refere ao exemplo (20), quando comparado ao (12), constatamos, igualmente, que a expressão espera aí não mais é empregada para expressar pedido de que se aguarde alguém em determinado lugar. O que se observa é o uso discursivo da expressão para se posicionar diante da proposição “o sol gira em volta da terra” e, então, desenvolver a alegação argumentativa, mais especificamente, a refutação da tese em questão. Ademais, os elementos constituintes da expressão espera aí n apresentam independência sintático- semântica. Ao contrário, o que se verifica é o surgimento de forma nova (fixação si ntática não antes existente e, posteriormente, redução morfofonêmica: peraí) vinculada a conteúdo novo (marcação discursiva refreador-argumentativa). Levando em conta ter havido o desenvolvimento de um pareamento de formanova-conteúdonovo que apresenta função

procedural/gramatical, concluímos tratar-se de construcionalização gramatical.

2.4 Mecanismos de mudança: neoanálise e analogização

A exemplo de Andersen (2001), Traugott e Trousdale (2013) preferem o termo neoanálise a reanálise, por entenderem que nem sempre as estruturas são reanalisadas. Por

exemplo, um usuário da língua que ainda não internalizou determinada construção, a interpreta de modo diferente do enunciador, logo não ocorre reanálise e, sim, nova análise, pois não se pode reanalisar uma estrutura de que não se tem conhecimento prévio. Os autores definem a neoanálise como um micropasso na mudança construcional. Mudanças em micropassos, sejam referentes à forma, sejam ao conteúdo, podem ser bem apreendidas por meio de modelos da gramática de construções que tratam das propriedades construcionais. Nesta investigação, adotamos o modelo de Croft (2001), analisando as construções em termos de forma (sintática, morfológica e fonológica) e conteúdo (semântico, pragmático e discursivo). Na comparação realizada entre os exemplos (12), (18) e (20), na seção anterior, é possível observar algumas mudanças, por meio de neoanálise, referentes às propriedades de forma e conteúdo da construção espera aí. Um detalhamento mais acurado nesse sentido é apresentado em cada uma das seções do capítulo de análise de dados.

No que se refere à analogização, Traugott e Trousdale (2013), em primeiro lugar, preocupam-se em distinguir o processo de pensamento analógico do mecanismo da anal ogia. Tal mecanismo é preferencialmente chamado de analogização para evitar a ambiguidade entre o pensamento (a motivação) e a mudança baseada na correspondência a um padrão (um mecanismo). O pensamento analógico combina aspectos de significado e forma, el e possibilita, podendo ocorrer ou não, a mudança. A analogização é um mecanismo ou processo de mudança que acarreta correspondências de conteúdo e forma que não existiam antes. A maioria das discussões envolvendo analogização é centrada em exemplares. Bybee (2006, p.714) declara: “precisamos conceber a gramática como um conjunto de construções, com representações de exemplares, que são afetadas por instâncias específicas de uso”. Uma perspectiva construcionalista de mudança sustenta fortemente a ideia de que a correspondência com um padrão é um fator importante nas transformações linguísticas, porque a gramática de construções destaca associações de grupos. Para Traugott e Trousdale (2013), o pensamento analógico e a analogização são essenciais para dar conta, em perspectiva histórica, do surgimento ou desaparecimento de grupos linguísticos.

Vejamos a seguir as implicações da ideia de rede para a analogia. Segundo Hudson (2007, p.42), as inovações linguísticas são interpretações de construtos, que são itens transitórios da experiência tanto para falantes quanto para ouvintes, e estão limitadas à

margem da rede. Traugott e Trousdale (2013) explicam: o falante produz um enunciado ambíguo, que pode ser analisado de mais de um modo. Os processos on-line (como a inferência sugerida, interpretada como um tipo de ativação de expansão: spreading), resultantes de uso particular de um construto pelo falante, podem habilitar o ouvinte a analisar a sentença de um jeito singular, novo, sem encontrar uma construção existente que possa sancionar o construto. O ouvinte, então, cria um token/nó para o construto, e esse nó pode conter muita informação sobre o contexto do enunciado, o relacionamento entre falante e ouvinte e o indicativo do pareamento forma-conteúdo. Enquanto o signo pode ter particularidades fonológicas e fonéticas, as características morfológicas e sintáticas podem ser menos específicas ou, até mesmo, ausentes. De igual modo, as propriedades discursivas e pragmáticas do signo podem ser bastante ricas, mas o ouvinte pode não estar apto a acessar nenhuma semântica convencional a ele associada. Logo, para que o enunciado seja completamente processado, o ouvinte aplica o princípio do melhor encaixe para encontrar uma construção existente que forneça o alinhamento mais próximo das propriedades discursivas e pragmáticas do construto observado e do tipo construcional ( type) ou macro/mesoconstrução27 armazenada. Quando o ouvinte tenta relacionar um construto com

uma parte existente da rede construcional e falha, por não haver construção que sancione completamente o construto, ocorre mismatch. O máximo que o ouvinte pode fazer é criar um

link para alinhar o sentido ou a forma do construto com a (sub)função ou a forma de outra

meso/macroconstrução existente na rede. Esse ato baseia-se nas propriedades discursivo- pragmáticas associadas ao (novo) construto e à (pré-existente) macro/mesoconstrução. Ocorre, então, mismatch entre o significado pretendido e o compreendido.

Construtos inovadores são simbólicos no sentido de que envolvem um pareamento de forma e conteúdo, mas carecem de convencionalização por não serem compartilhados por membros de uma comunidade. Contudo, em alguns casos, os links parecem ser tão naturais e são repetidos tão frequentemente que podem chegar ao nível de consciência ou até mesmo ser manipulados retoricamente.

A habilidade de construir significado associando características na rede é a essência do pensamento analógico, uma motivação que pode conduzir ao melhor encaixe para um construto temporário. Mais criticamente, a ativação da expansão (spreading) é um mecanismo associado ao princípio do melhor encaixe (Hudson, 2010, p. 95). Se pensar analogicamente pode conduzir ao melhor encaixe para um construto temporário, então, é provável que a

ativação de expansão, como um mecanismo neural, seja relacionada ao pensamento analógico. Como ela também está associada à análise (parsing), exerce um papel na neoanálise. Portanto, a ativação de expansão como um mecanismo neural parece estar relacionada a ambos os mecanismos de mudança linguística. Esses links são, de modo geral, altamente transitórios. No entanto, se forem adotados por uma comunidade linguística, podem levar a mudanças.

Para Traugott e Trousdale (2013), a consequência lógica do que foi anteriormente exposto é que nenhuma construção é inteiramente nova (com exceção dos empréstimos e de algumas criações) e, portanto, sempre haverá ao menos um link com uma característica de algum nó. Nesse sentido, Fisher (2007) e De Smet (2009) sugerem que a analogia é primária. De Smet (2012, p.629) declara que o termo “primário” deve ser entendido de dois modos: como noção temporal (precedente) e como noção avaliativa (mais importante). O pensamento analógico, que habilita a associação do melhor encaixe, é claramente precedente na maioria das mudanças. Já a analogização envolve a reconfiguração das características ou “dimensões internas” (Gisborne, 2011, p. 156) de uma construção. Analogização, portanto, implica necessariamente mudança em micropassos, ou seja, neoanálise. Descartando questões de sucessão temporal, Traugott e Trousdale (2013) afirmam que analogização é neoanálise. E completam com o seguinte comentário: se toda analogização é neoanálise, mas é possível haver neoanálise sem analogização, então, como um mecanismo, a neoanálise é, no ponto de vista deles, primária, no sentido de ser mais importante, por englobar mais casos de mudanças.

Em nossa investigação, constatamos ter havido analogização da expressão alto lá com algumas características da macroconstrução [V Afix]MD (Teixeira, 2015), por meio do

princípio do melhor encaixe. Tal associação ocorre devido a correspondências com links de forma (sintática, morfológica, fonológica) e/ou conteúdo (semântico, pragmático, discursivo). Posteriormente, alto lá passa a ser base de analogização para o surgimento de outras microconstruções, em diferentes estágios de mudança.