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Agentes atuantes na naturalização das sementes de origem industrial

2 AGENTES ECONÔMICOS E SUAS ESTRATÉGIAS NA CONSTRUÇÃO SOCIAL

2.2 DETERMINANTES DAS MUDANÇAS NAS PRÁTICAS: AGENTES E SUAS ESTRATÉGIAS PARA NATURALIZAÇÃO DAS SEMENTES INDUSTRIAIS

2.2.1 Agentes atuantes na naturalização das sementes de origem industrial

Para atender aos requisitos do campo econômico as sementes sofreram os mais significativos incrementos tecnológicos, mercadológicos e ideológicos, entre todos os outros insumos e máquinas utilizados na produção agrícola. Seria, portanto as sementes o símbolo que representa melhor a revolução de princípios, a di-visão de mundo que se processara no campo dos cultivos.

Nos anos 50, a semente ainda é concebida botanicamente, ou seja, um óvulo amadurecido, resultante da fecundação do núcleo do ovo com um grão de pólen. Toda a estrutura das sementes passa a ser conhecida em detalhes pela ciência, a exemplo: plumule, cotilédones, hipocótilos, radícula, endosperma, hilo, etc. (PORTER, 1959), que são denominações que só os especialistas compreendem, transformando-se em um capital específico dos especializados. Desta forma surgiu a classificação das sementes.

Para a Kiekebusch (2015) semente não é todo grão que germina. Semente é tecnologia. Portanto semente e grão seriam dois produtos distintos. Semente é specialities e grão é commodities. Ou seja, semente tem uma finalidade específica para a semeadura. Portanto, a classificação das sementes, que naturaliza como semente aquela que é produzida pelos agentes dominantes do campo, se faz através de uma luta de classificação, excluindo e condenando o uso de outros materiais, supostamente sob o controle dos grupos dominados, como são as sementes crioulas. O significado de sementes, ao longo das transformações do campo, passa de um produto biológico que germina, para um produto que atende requisitos de controle corporativo, visando a sustentação dos agentes dominantes do campo.

A indústria de sementes, cada vez mais, se apresenta como legítima produtora de sementes, à medida que padroniza, a nível mundial, a garantia de

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O campo científico e o campo político influenciaram decisivamente para a consolidação da autonomia relativa do campo das sementes, para a definição do que se considera seus agentes legítimos e ilegítimos, para a sua institucionalização e para a sua expansão global.

determinadas qualidades as sementes e as diferencia sobremaneira da produção artesanal, considerada assim de baixa qualidade por não possuir os quesitos da indústria. Este fato também corrobora com a naturalização da superioridade das sementes industriais.

2.2.1.1 A relevância dos cientistas

Conforme observam Wilkinson e Castelli (2000) a partir da produção de sementes híbridas, se pode classificar o setor como "baseado nas ciências" (science

based).

De um modo geral, observa-se uma interação potencial entre agentes de diferentes campos, onde atuação de agentes do campo científico amplia as possibilidades de negócio de agentes do campo econômico. A importância dos agentes do campo científico revela-se pelo vínculo da evolução do campo com as possibilidades abertas por avanços nas teorias e técnicas de melhoramento vegetal. Evidência da relação entre estes campos é dada, por exemplo, pelo fato que a entrada da indústria de sementes nos países em desenvolvimento coincide historicamente com intensificação da pesquisa39. Uma quantidade significativa de pesquisas sobre sementes foi realizada no Brasil no período entre 1950 a 1970 e entre 1970 e 198040, por exemplo. ―Lista Bibliográfica de Sementes‖ organizada por Wetzel (1972) e publicada pela divisão de Sementes e Mudas do Ministério da Agricultura apresentava 1158 referências em 87 periódicos, sendo 35 revistas e 647 autores41. Em 1980, Wetzel, como presidente da Associação Brasileira de Tecnologia de Sementes (ABRATES), comemora o lançamento de três volumes pela

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As bibliografias permitem evidenciar, a exemplo do desenvolvimento das variedades de alto rendimento, a interface do campo das sementes com o campo da ciência. Esta interface é também comprovada pela criação de uma coordenação internacional da pesquisa agrícola, denominada de CGIAR, onde participam agentes como a FAO e Banco Mundial, além da criação de muitos outros centros internacionais de pesquisa que tem nas sementes uma das principais preocupações.

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Nota-se certa evolução na agenda de pesquisa. Na edição de 1972 os assuntos estão melhores organizados, sendo possível perceber uma concentração de temas sobre germinação (mais citações), armazenamento, botânica, conservação, doenças, inseticidas, fungicidas, produção, tratamento e variedades. Os estados mais citados, onde se realizaram as pesquisas é o Rio Grande do Sul e São Paulo, seguidos pelo Paraná e Minas Gerais. Os assuntos mais recorrentes na edição de 1980 foram análise de sementes, produção, conservação, tratamentos, geminação, doenças, fungicidas, sementes básicas, fiscalizadas, certificada, cultivares, semeadura, vigor, híbridos entre outras.

41 s publicações vinham embaladas de desejo de aumento da produtividade pelo uso da ―boa

EMBR P da ―Bibliografia Brasileira de Sementes‖. Neste ano se contavam 1985 referências42.

Pode se inferir que o capital específico que propiciou afirmar praticas relacionadas ao uso de sementes melhoradas, dando origem ao mercado de sementes foi uma espécie de capital científico. Obviamente o campo necessitou mobilizar grande volume de capital financeiro para esta produção, que lhe garantiu o domínio sobre o capital científico, produzindo e se valendo dos conhecimentos em genética e em química para criar novas plantas.

O reconhecimento da relevância dos agentes do campo cientifico levou-nos a periodização de ―fases‖, guardando a relação com os avanços no âmbito do melhoramento genético. A importância da pesquisa científica tornou-se tão relevante na criação de possibilidades para os agentes econômicos que, por fim, uma parte significativa da pesquisa passou a ser feita dentro do campo (pesquisadores como funcionários da indústria ou trabalhando a seu serviço mediante modalidades diversas de relações contratuais). Entendemos que, quando tais aspectos passam a ocorrer, observa-se a internalização da pesquisa no campo – de forma que pode ser considerada uma atividade econômica específica – geradora de valor, por exemplo, através do patenteamento das descobertas, descaracterizando-se a especificidade da lógica cultural.

Outro aspecto a considerar refere-se ao papel dos agentes do campo científico para além da criação de possibilidades para os agentes econômicos, ou seja, o papel que os agentes da ciência passam a exercer no campo cultural. Nesse sentido, a internalização das noções de progresso pela sociedade se deu a partir de discursos gerais da ciência sobre a evolução das sociedades os quais, por sua vez, ressaltam a centralidade da pesquisa para os avanços de bem-estar da humanidade. Segundo Scandizzo (2009), a evolução da agricultura mundial é contada como uma narrativa de conquistas onde há somente heróis. Esta história sustenta avanços científicos ininterruptos e com aumentos contínuos de produtividade. Nesse contexto, observa-se que agentes do campo cientifico foram capazes de produzir simbolicamente a chamada ―ideologia da modernização‖, que

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Sendo 725 para as culturas do algodão, arroz, feijão, milho, soja, trigo, entre outras (volume 1). Sobre sementes florestais, ornamentais, forragicultura, fruticultura e olericultura (volume 2) foram encontradas 615 referências e 645 para assuntos diversos. Se contam 659 autores no volume 1 e 502 no volume 2.

permitiu a aceitação tácita de sua visão de mundo. Desta forma, as tentativas de questionamento do status quo de agentes do campo, são respondidas como se fossem ataques a ciência e a ordem institucional. Da mesma forma, o interesse das indústrias é enunciado como se fosse o interesse da ciência e da humanidade.

2.2.1.2 A relevância das entidades de representação

A recomposição histórica aponta para a relevância de um conjunto diverso de entidades de representação. Para entender a importância destes diferentes agentes é necessário considerar que as normas assumem influência definitiva na dinâmica do campo. Wattnem (2016) enumera quatro características das normas que as tornam poderosas. A primeira é que depois de instituída, se naturaliza, se torna óbvia e, portanto, não é objeto de contestação. Segundo porque se comporta como um poder anônimo. Terceiro porque incorpora as preferências dos agentes dominantes e quarto porque gera dependência. Desta forma, a autora se reporta as teses que afirmam que aqueles que definem e fazem os outros cumprirem as normas são muito poderosos. Ou seja, são os agentes dominantes do campo.

Em termos do estabelecimento das fronteiras do campo observa-se que as normas avançaram em termos de institucionalização de controles sobre o direito a comercialização de sementes (registro, certificação, proteção), de variedades melhoradas e direitos sobre material genético. Assim, o estudo das normas é essencial na revelação dos agentes do campo. Tais normas, supostamente vindas da ciência são retraduzidas como lei. Dada a potencial legitimidade, as normas podem ser estabelecidas de forma autônoma por este conjunto de poucos agentes dominantes e especializados do setor43. Segunda a OS , ―É desejável ter definições e procedimentos fundamentais acordados, baseados em um conhecimento profundo dos princípios envolvidos‖ ( OS , 1965, p. 01). s associações que se erigiram para criar, desenvolver e salvaguardar tais interesses asseguram que esta estrutura funcione, não somente em um país, mas nível mundial, com os mesmos princípios ao promover treinamento de pessoal e

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Percebeu-se que o campo das sementes se monta com aportes científicos específicos, por exemplo, de conhecimentos de análise de sementes, entre outras ciências agrícolas. Desta forma, participam deste espaço, cientistas de empresas públicas e privadas, que se intitulam autoridades em ciência e tecnologias no que diz respeito a sementes.

imposição legítima de legislações acordadas em espaços de concertação intencional uma vez que, ao longo dos anos, as estruturas nacionais dos EUA e da Europa evoluíram para organizações de alcance internacional. Na Figura 1 apresenta-se um conjunto de agentes destacados do campo das sementes em diferentes períodos.

Figura 1 – Agentes destacados do campo das sementes em diferentes períodos.

Fonte: (Elaborado pelo autor)

Destaca-se que a comercialização esteve, desde os primórdios, condicionada ao atendimento de normas de qualidade do produto, que haveriam de ser certificadas por entidade devida. No que se refere a análise de sementes, nas palavras de Justice44 tudo teria se iniciado em 1921 com a criação da Associação Europeia de Análise de Sementes, que em 1924 se transformou na ISTA. A evolução das regras comuns se deu conforme a citação: ―entre 1924 e 1928 um comitê de pesquisa elaborou regras para análise de sementes, mas alguns problemas não resolvidos impediram a sua adoção. No entanto, esses obstáculos foram finalmente eliminados e as primeiras normas IST foram adotadas em 1931‖45

(JUSTICE, 1965, p. 13).

Portanto, o estabelecimento de normas para análise de sementes, certificação internacional de qualidade de sementes e pesquisa em melhoramento de plantas

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Proferidas por ocasião de um curso para formação de analistas de sementes, realizado no Brasil em 1964.

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Desta forma fica confirmada a relação harmonizada entre as regras da AOSA e da ISTA e das legislações de sementes pelo mundo, estabelecendo-se sociedades comerciais de sementes conformadas a lógica e os princípios, mantidas as condições de autonomia de estabelecê-la e de impô-las a quem do campo se aproximar.

1883 - EUA • Associação Americana de Comércio de Sementes e outras associações nacionais. 1908 – EUA e Canadá • - Association of Official Seed Analysts (AOSA) 1921 • Associação Europeia de Análise de Sementes 1924 • Associação Internacional de Análise de Sementes – ISTA 1924 • Federação Internacional de Comércio de Sementes - FIS 1924 - 1938 • Associação Internacional dos Melhoristas de Plantas para a Proteção das Obtenções Vegetais - ASSINSEL 2002 • Federação Internacional de Sementes - ISF (FIS + ASSINSEL). • Svalbard. Cofre Global de Sementes. Noroega, 2008.

são os objetivos principais da ISTA. Segundo Justice (1965) 41 países, mais de 100 unidades experimentais de sementes eram membros da ISTA, oferecendo a exato alcance a instituição. Segundo Justice ― s normas IST são publicados oficialmente em inglês, francês e alemão, e de forma não oficial em espanhol, português e chinês‖ (JUSTICE, 1965, p. 17). Este fato permite evidenciar que um mesmo conjunto de normas internacionais foram se institucionalizando em diferentes países. Desta forma é correto afirmar que, no campo das sementes, não se pode falar, em qualquer país em desenvolvimento, de produção autêntica de regramentos sobre sementes.

Os melhoristas de sementes, por sua vez, são os agentes que, por sua especificidade, se posicionam de forma estratégica no controle de todo o campo, como afirmam Fernandez Cortejo (2004). A necessidade de investimentos econômicos, científicos e de produção em escala cobra compensação pelas suas criações, evitando, por intermédio de mecanismos, que os concorrentes copiem e que os produtores reproduzam livremente as inovações. O argumento do autor é que se não houver exclusão destas possibilidades, o setor corre o risco de ver os incentivos privados para as inovações cessarem. Por esta razão, agentes, por meio de entidades de representação, lutam por adoção de mecanismos - a exemplo de leis de patentes ou de efeitos similares – justificando tal medida na tese de que só o setor privado recompensado seria capaz de inovar. Para o Estado, reservam o papel de suprir os investimentos onde a iniciativa privada não tem interesse. Fernando Cortejo (2004) destaca que os agentes do campo competem pelas inovações, mas estão de acordo entre sí que sem mecanismos que impeçam a livre reprodução de sementes o campo estaria ameaçado. A citação a seguir explica as mudanças que ocorreram em relação a posição dos melhoristas e sua representação nestes últimos anos no campo das sementes:

O meado dos anos 1970 viu mudanças significativas no melhoramento de plantas e na indústria de sementes com fusões, consolidações e "integração" de toda a cadeia de sementes. Melhoristas de plantas e produtores de sementes tornaram-se uma única entidade. A lógica de ter duas organizações distintas que representam a indústria de sementes estava sob questão. Uma primeira tentativa frustrada de fundir FIS e ASSINSEL foi feita em 1986. Após dois anos de intensas conversações e negociações, finalmente se fundiram na ocasião do Congresso anual em Chicago em 2002 para se tornar ISF, a International Seed Federation (ISF, 2015, tradução nossa).

A Fédération Internationale du Commerce des Semences (FIS), carrega os elementos da gênese e evolução dos agentes dominantes do campo das sementes: primeiro como instituição que desenvolve as normas de comercialização e depois assume a defesa as novas tecnologias da indústria de sementes e dos direitos dos melhoristas. Conforme citação extraída da International Seed Federation (ISF):

Desde o início a FIS salientou a importância da evolução tecnológica para a indústria de sementes. Em 1954 FIS enfatizou a importância dos Direitos dos Criadores de Plantas e estimulou seus membros a pressionar os governos para reconhecer a proteção recíproca de produtos de melhoramento. Em 1958, o Congresso (FIS) aprovou uma resolução reconhecendo direitos de obtentor e o direito de cobrar taxas de licença quando variedades protegidas forem vendidas (ISF, 2015).

2.2.1.3 A relevância dos agentes políticos

Ao campo político cabe o estabelecimento de mecanismos de enforcemet de determinadas possibilidades e nesse sentido atuam tanto Estados Nacionais como organizações de cooperação, por exemplo. Neste contexto, uma vez alcançada a legitimidade, busca-se por meio da política criar condições favoráveis aos projetos dos agentes econômicos implicados no campo das sementes.

Normas de análise de sementes, leis de sementes, programa de sementes e treinamento de pessoal constituem-se ferramentas que contribuem para formação de discursos harmonizados entre os países que seguem os princípios classificatórios dos agentes dominantes do campo das sementes a nível internacional. A interface do campo das sementes com o campo da política, dá-se no sentido da expansão do campo para os países pouco desenvolvidos. A própria Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em 1961 promove a campanha World Seed Year, que assegurava politicamente a expansão do uso das sementes melhoradas pelo mundo. Publicações de Delouch e Potts (1974) revelam os esforços políticos para a implantação da indústria de sementes nos países pobres, cujo esforço, na época, se transmutava sob o nome de ―programa de sementes‖.

Em 1953 cria-se o Sistema de Sementes dentro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o que indica o reconhecimento pela OCDE dos princípios econômicos do campo das sementes. O ano de 1961 vai ser designado como World Seed Year pela FAO. Atendendo esta ênfase, quase de forma simultânea em muitos lugares do mundo realizaram-se cursos para formação

de analistas de sementes, tomando por base as regras de análise de sementes do ISTA. Comprova-se estes fatos com duas publicações, uma para América Latina e a outra do Oriente Médio, que foram realizadas por influência da referida associação e dos organismos multilaterais, a exemplo da FAO. A saber:

A Campanha Mundial de Sementes de 1961, patrocinada pela Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, foi culminando com uma reunião de seis dias em Roma, Itália, em abril de 1962. Por sugestão do Dr. AF Schoorel do Comitê Executivo da Internacional Seed Testing Association (ISTA) decidiu continuar o trabalho recomendado na reunião de Roma. Assim, foi explorada a possibilidade de realizar cursos de formação de melhoramento de sementes para os países em desenvolvimento. Em fevereiro de 1963, o Comitê Executivo havia definitivamente decidido realizar três cursos de formação [...] (JUSTICE; BUNCH, 1965, p. 01).

Os registros indicam colaboração das Universidades nestas iniciativas. A importância dos agentes dominantes internacionais revela-se também aos países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), que são obrigados a atualizar sua legislação de Direito de Propriedade Intelectual de acordo com as normas internacionais. As normas incluem a proteção de variedades de sementes e plantas com patentes ou direitos de propriedade semelhante e prevêem sanções pelo descumprimento (FERNANDEZ CORTEJO, 2004. p. 23).

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