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Agorafobia e o renascimento da localidade

No documento Globalização: As consequências humanas (páginas 43-46)

Richard Sennett foi o primeiro analista da vida urbana contemporânea a dar o alarme sobre o iminente “declínio do homem público”. Muitos anos atrás, ele notou a lenta mas inexorável redução do espaço público urbano e a retirada igualmente irrefreável dos habitantes da cidade (e a subsequente devastação) das pálidas sombras da ágora que escaparam à destruição.

No seu posterior e brilhante estudo sobre os “usos da desordem”,6 Richard Sennett evoca as descobertas de Charles Abrams, Jane Jacobs, Marc Fried e Herbert Gans — pesquisadores de temperamento variado mas de sensibilidade semelhante para a experiência da vida urbana e com discernimento investigativo — e ele mesmo pinta um quadro assustador do estrago causado às “vidas de pessoas reais em nome da realização de algum plano abstrato de desenvolvimento ou renovação”. Sempre que foi empreendida a execução de tais planos, as tentativas de “homogeneizar” o espaço urbano, de torná-lo “lógico”, “funcional” ou “legível” redundaram

na desintegração das redes protetoras tecidas pelos laços humanos, na experiência fisicamente devastadora do abandono e da solidão — combinada com a de um vazio interior, um horror a desafios que a vida pode colocar e o expediente da ignorância ante opções autônomas e responsáveis.

A busca da transparência teve um preço espantoso. Num ambiente artificialmente concebido, calculado para garantir o anonimato e a especialização funcional do espaço, os habitantes da cidade enfrentaram um problema de identidade quase insolúvel. A monotonia impessoal e a pureza clínica do espaço artificialmente construído despojaram-nos da oportunidade de negociar significados e, assim, do know-how necessário para chegar a um acordo com esse problema e resolvê-lo.

A lição que os planificadores puderam aprender com a longa crônica dos sonhos grandiosos e dos abomináveis desastres que combinam para formar a história da arquitetura moderna foi que o segredo primordial de uma “boa cidade” é a oportunidade que ela dá às pessoas de assumir responsabilidade por seus atos “numa sociedade histórica imprevisível” e não “num mundo onírico de harmonia e ordem predeterminada”. Quem quer que resolva operar a invenção de um espaço urbano guiado exclusivamente pelos preceitos da harmonia estética e da razão faria bem em ponderar primeiro que “os homens jamais podem se tornar bons simplesmente seguindo as boas ordens ou o bom plano de outros”.

Podemos acrescentar que a responsabilidade, essa condição última e indispensável da moralidade nas relações humanas, encontraria no espaço perfeitamente planejado um solo infértil, senão inteiramente venenoso.

Com toda a certeza, não brotaria nem medraria num espaço higienicamente puro, livre de surpresas, ambivalência e conflito. Só poderiam assumir sua responsabilidade as pessoas que tivessem dominado a difícil arte de agir sob condições de ambivalência e incerteza, nascidas da diferença e variedade.

As pessoas moralmente maduras são aqueles seres humanos que cresceram a ponto “de precisar do desconhecido, de se sentirem incompletos sem uma certa anarquia em suas vidas”, que aprenderam a “amar a ‘alteridade’”.

A experiência das cidades americanas analisadas por Sennett aponta para uma regularidade quase universal: a suspeita em relação aos outros, a intolerância face à diferença, o ressentimento com estranhos e a exigência de isolá-los e bani-los, assim como a preocupação histérica, paranoica com a “lei e a ordem”, tudo isso tende a atingir o mais alto grau nas

comunidades locais mais uniformes, mais segregadas dos pontos de vista racial, étnico e de classe.

Não admira que nessas localidades o apoio ao sentimento de grupo tende a ser procurado na ilusão da igualdade, garantida pela monótona similaridade de todos dentro do campo visual. A garantia de segurança tende a se configurar na ausência de vizinhos com pensamentos, atitudes e aparência diferentes. A uniformidade alimenta a conformidade e a outra face da conformidade é a intolerância. Numa localidade homogênea é extremamente difícil adquirir as qualidades de caráter e habilidades necessárias para lidar com a diferença humana e situações de incerteza; e na ausência dessas habilidades e qualidades é facílimo temer o outro, simplesmente por ser outro — talvez bizarro e diferente, mas primeiro e sobretudo não familiar, não imediatamente compreensível, não inteiramente sondado, imprevisível.

A cidade, construída originalmente em nome da segurança, para proteger de invasores mal intencionados os que moram intramuros, tornou-se em nossa época “associada mais com o perigo do que com a tornou-segurança”, diz Nan Elin. Nos nossos tempos pós-modernos, “o fator medo certamente aumentou, como indicam o aumento dos carros fechados, das portas de casa e dos sistemas de segurança, a popularidade das comunidades ‘fechadas’ e

‘seguras’ em todas as faixas de idade e de renda e a crescente vigilância nos espaços públicos, para não falar nas intermináveis reportagens sobre perigo que aparecem nos veículos de comunicação de massa.”7

Os medos contemporâneos, os “medos urbanos” típicos, ao contrário daqueles que outrora levaram à construção de cidades, concentram-se no

“inimigo interior”. Esse tipo de medo provoca menos preocupação com a integridade e a fortaleza da cidade como um todo — como propriedade coletiva e garante coletivo da segurança individual — do que com o isolamento e a fortificação do próprio lar dentro da cidade. Os muros construídos outrora em volta da cidade cruzam agora a própria cidade em inúmeras direções. Bairros vigiados, espaços públicos com proteção cerrada e admissão controlada, guardas bem armados no portão dos condomínios e portas operadas eletronicamente — tudo isso para afastar concidadãos indesejados, não exércitos estrangeiros, salteadores de estrada, saqueadores ou outros perigos desconhecidos emboscados extramuros.

Em vez da união, o evitamento e a separação tornaram-se as principais estratégias de sobrevivência nas megalópoles contemporâneas. Não há mais

a questão de amar ou odiar o seu vizinho. Manter os vizinhos ao alcance da mão resolve o dilema e torna a opção desnecessária; isso afasta situações em que a opção entre o amor e o ódio se faz necessária.

No documento Globalização: As consequências humanas (páginas 43-46)