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3.1 – Sistema Agroecológico Subordinado

Segundo Alfredo Kingo Oyama Homma, o extrativismo é historicamente a primeira forma de exploração econômica, “limitando-se à coleta de produtos existentes na natureza”. Para ele, o extrativismo tem como característica principal a baixa produtividade ou produtividade declinante e tendendo à extinção no decorrer do tempo: “muitas das antigas formas de extrativismo fazem parte hoje de culturas ou criações racionais; outras desapareceram; algumas estão em vias de domesticação e novas atividades extrativas poderão surgir na dimensão espacial e temporal”. (HOMMA, 1993, p. 1)

Em outras palavras, o extrativismo é intermitente no espaço e no tempo, além de mudar também na qualidade do produto (vegetal ou mineral) que é extraído em dado momento e lugar. Disso decorre o fato de que esse sistema agroecológico ocorre em concomitância com outros, o que por sua vez implica em um relacionamento entre as diversas formas, estabelecendo uma hierarquia na produção global. Além destas, ele cita outras características da economia extrativista:

x Possui caráter cíclico, apresentando fases de expansão, estabilização e declínio relacionadas com a competição com outras formas de produção, expansão de plantios domesticados ou concorrência com produtos sintéticos, aumento dos níveis salariais, expansão da fronteira agrícola e crescimento populacional, fatores esses que concorrem para que o extrativismo tenda a se desagregar enquanto forma de atividade econômica.

x Classificação da economia extrativista em dois tipos: por aniquilamento ou predação, quando a obtenção do recurso implica na extinção da fonte, e extrativismo de coleta, quando não há destruição da fonte produtora. (HOMMA, 1993, p. 4)

Homma argumenta que o extrativismo sempre implica em dispersão da atividade por um grande território e intensa utilização de mão-de-obra, com baixa rentabilidade e produtividade econômicas apesar de apresentar também boa sustentabilidade do ponto de vista agronômico/florestal e ecológico. (HOMMA, 1993, p. 5)

A questão central para ele reside exatamente no fato de o extrativismo não ser capaz de garantir a sustentabilidade econômica por um período longo, além de não oportunizar o desenvolvimento13 das regiões e populações onde é praticado: reservas extrativistas podem até retardar a expansão de uma fronteira agrícola e assegurar momentaneamente a posse da terra e um estilo de vida tradicional, “mas não há garantia de sustentabilidade ao longo do tempo. Em áreas com alta densidade demográfica e grande fluxo migratório, pode ocorrer o inverso”. (HOMMA, 1993, p. 177-178)

Ele vê a economia extrativista como “dependente do processo de desenvolvimento e cujo fim inexorável será o seu gradativo desaparecimento. A economia extrativista carrega em seu próprio bojo a semente de sua autodestruição”. (HOMMA, 1993, p. xi).

No entanto, outros dados apresentados por Homma, que indicam a importância relativa da atividade extrativa vegetal em todo o Brasil.14 Segundo ele, os produtos de

origem extrativa ainda possuem uma presença forte nas exportações brasileiras. A Hévea coagulada e a Hévea látex, por exemplo, constam da pauta de exportações das regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-oeste, o mesmo ocorrendo com a Ipecacuanha, que não está na pauta apenas das regiões Sul e Nordeste. (HOMMA, 1993, p. 2-3)

Todas as regiões, no entanto, contribuem com uma série de produtos vegetais e animais que são coletados diretamente na natureza por meio do extrativismo. Dessa maneira, configura-se uma situação na qual o extrativismo é tido como uma forma arcaica de produção, sem sustentabilidade econômica ao longo do tempo, mas que continua sendo praticado por uma grande quantidade de pessoas, em todas as regiões do país.15

O governo brasileiro conceitua o extrativismo como: “toda atividade de coleta de produtos naturais de origem mineral” (petróleo, ouro, prata, bauxita), animal (pesca, agricultura, carne, pele) ou vegetal (madeira, folhas e frutos) “que tenham sido espontaneamente gerados pela natureza”. 16

13 Deduz-se que o conceito de desenvolvimento adotado por este autor recebe a conotação de progresso

material e tecnológico.

14 Estes dados são referentes ao período em que Homma realizou sua pesquisa e, por isso, os números se

referem ao início da década de 1980.

15 Com base nos dados do Censo Demográfico de 1980, Homma afirma que o setor extrativista vegetal na

região Norte envolveria mais de 100 mil pessoas, representando 13,8% da população economicamente ativa.

16 Ministério do Meio Ambiente, Ministério das Minas e Energia, Embrapa e IBAMA. Disponível em:

Em suma, o conceito institucional de extrativismo está relacionado com a simples coleta de produtos encontrados na natureza, não pressupondo, portanto senão relações superficiais e limitadas com o ambiente natural, relações estas que são apoiadas por um baixo nível tecnológico e executadas com um mínimo de especialização na divisão social do trabalho.

Segundo este mesmo conceito governamental, o “extrativismo também pode ser entendido como o uso sustentável e racional da coleta de recursos renováveis destinados ao mercado, à venda, ou para a indústria”. Esta afirmação, no entanto, é questionável e não encontra respaldo na discussão teórica sobre o conceito a não ser quando aparece como uma premissa que não se confirma quando testada como hipótese, conforme afirma Drummond (2002, p. 2).

Este autor parte de um conceito de extrativismo semelhante ao usado pelas instituições governamentais brasileiras, pois para ele o extrativismo se refere à atividade de retirar recursos naturais dos seus locais de ocorrência, a partir dos seus estoques naturais, isto tudo sem que haja manipulações reprodutivas ou processamento industrial. Para Drummond, as atividades ou regiões extrativistas são intensivas de recursos naturais e estão subordinadas a outras atividades e regiões que por sua vez são intensivas de capital e tecnologias. (DRUMMOND, 2002, p. 2-3)

Então, o ponto central que distingue o extrativismo de outros modos de produção, subordinando àquele a estes outros é o fato do extrativismo não comportar o uso intensivo de tecnologias e de capitais e se caracterizar por atividades de coleta de produtos naturais, sem que nesta atividade de coleta incida uma quantidade considerável de tecnologias ou de capitais.

Essa subordinação do extrativismo aos outros modos de produção é também atestada por Homma (1993, p. 8), pois ele assinala que esta atividade ocorre sempre dependente do setor agrícola, de onde obtém seus alimentos e através do qual estabelece o intercâmbio com os setores comercial e “industrial, que se apropria do excedente de ambos”.

Drummond exclui do conceito de extrativismo todas as formas de agricultura e de pecuária, uma vez que estas alteram os ciclos naturais e ao mesmo tempo exigem a transferência de recursos tecnológicos e de capitais de um lugar para outro, “em outras palavras, agricultura e pecuária, mesmo diretamente dependentes de recursos naturais, incorporam capital, tecnologia e trabalho em proporção maior do que as atividades extrativistas”. (DRUMMOND, 2002, p. 3)

As atividades industriais e de serviços são conceituadas como antípodas do extrativismo, exatamente por exigirem uma quantidade grande de capitais e de tecnologias, assim como especialização e divisão social do trabalho. Assim, enquanto que o extrativismo está posto em um extremo, a indústria e os serviços estão em outro e a relação entre eles é de subordinação, já que a base material e cultural do desenvolvimento contemporâneo são os investimentos intensivos de capitais e tecnologias. (DRUMMOND, 2002, p. 3)

A postulação de Bunker17de que o extrativismo deve ser visto como “um modo

de produção subordinado” explica o seu lugar nas relações da economia mundo. Bunker, segundo Drummond, define o “extrativismo como a coleta de recursos naturais brutos na sua região de ocorrência natural”, e ao mesmo tempo acrescenta que “qualquer grau de manipulação tecnológica dos recursos naturais brutos já implica em transitar do extrativismo para atividades que ele chama de produtivas transformadoras, ou industriais”. (DRUMMOND, 2002, p. 8)

Além disso, países ou regiões podem, evidentemente, “combinar extração, agricultura e transformação”, o que implica em reconhecer que os diversos sistemas agroecológicos combinam-se de diferentes maneiras de acordo com a época e o lugar na formação da economia e da sociedade mundial moderna. (DRUMMOND, 2002, p. 8)

Este fato já foi observado por Immanuel Wallerstein (1974). Nesta obra, em linhas gerais, ele afirma que o nascimento de uma economia-mundo na Europa ocidental foi possível devido a três fatores básicos: a expansão geográfica, o desenvolvimento de métodos de controle do trabalho diferenciados para diferentes produtos e regiões da economia-mundo e a criação de aparelhos de estado nos estados centrais da economia-mundo europeia.

A diversificação na esfera da produção, combinando extrativismo, agropecuária e transformação industrial caracterizariam as regiões ou países mais bem localizados na hierarquia da economia mundo e a predominância de atividades extrativistas indicaria a subordinação regional e política a outros locais industrializados ou onde o extrativismo é combinado outros sistemas agroecológicos:

17 De acordo com Drummond, Stephen Bunker, é um sociólogo americano que estuda o extrativismo no

mundo contemporâneo, especialmente nos países subdesenvolvidos (BUNKER, 1986, 1984, 1989, 1992; BARHAM et alli, 1994).

Os produtos extrativistas apresentam uma proporção muito baixa de capital, tecnologia e trabalho. Por isso, afirma ele, a maior parte do valor desses bens é atribuível às suas características naturais, e não ao capital, à tecnologia, ou ao trabalho neles embutidos. Ele destaca ainda que a agregação de valores do capital e do trabalho aos recursos naturais brutos, ou seja, a sua transformação em produtos acabados ou intermediários - tipicamente se dá em regiões industriais que não coincidem com as áreas extrativistas. (...) Isso para ele gera um fluxo líquido de matéria e energia para as áreas centrais industrializadas do planeta, ou, o que dá no mesmo, uma perda de valor na região de origem e um acréscimo de valor da região de consumo ou transformação. As regiões extrativistas sofrem ainda perdas sérias em termos de degradação ambiental alterações físicas e biológicas nos seus estoques de recursos naturais, os quais são reduzidos (os não renováveis) ou se tornam mais difíceis de obter (os renováveis). (DRUMMOND, 2002, p. 8-9)

Esta descrição corresponde a um sistema de trocas desiguais que abarca diversas dimensões, desde a dimensão ambiental em que determinados territórios são configurados como áreas de extração de matérias primas e outros como produtores de tecnologias e exportadores de capitais, até a dimensão financeira onde os fluxos dos valores que representam e possibilitam todas as trocas seguem a mesma lógica.

Uma das consequências dessas relações assimétricas seria a consolidação de regiões, como, por exemplo, a Amazônia, em fornecedora de recursos naturais coma apresentação de baixos índices de desenvolvimento econômico, social e humano:

Bunker afirma que o extrativismo gera produtos nos quais o trabalho humano não é o determinante principal do valor. O valor fundamental da madeira, dos minerais, petróleo, peixes e assim por diante fazem parte dos próprios bens, e não residem no trabalho humano neles incorporado. Valor adicional pode ser criado quando esses materiais são transformados pelo trabalho humano. O ponto importante, entretanto, é que esse valor adicional é geralmente realizado no centro industrial, e não na periferia. (...). Este princípio converge com o de Wallerstein, que diz que o sistema mundial remunera magramente o trabalho de baixa qualificação e os recursos naturais brutos, premiando o trabalho qualificado e os bens naturais processados. (DRUMMOND, 2002, p. 10)

Talvez por ter permanecido por largos períodos se ligando aos mercados nacionais e internacionais através das atividades extrativistas que não possuíam a mesma relevância que o ouro e o diamante, é recorrente no discurso historiográfico a ideia de que com o fim da mineração Mato Grosso tenha entrado em um longo processo de isolamento só rompido com as novas correntes migratórias a partir da década de

1970. De acordo com Sebastião Aroldo Kastrup (1974),18 “esgotadas as minas, fechou sobre si mesma a sociedade do oeste brasileiro e, por mais de um século, permaneceu quase isolada geográfica e culturalmente do resto do mundo”. (KASTRUP, 1974, p. 20) Este longo período de suposto isolamento teria sido rompido somente por volta da segunda metade dos anos 1950 e com mais ênfase a partir dos anos 1970. No entanto, ao se vislumbrar este processo histórico pela ótica da sucessão dos períodos de predomínio econômico, fica claro que o aparente isolamento corresponde ao período em que os laços entre a região e a economia mundial são afrouxados, porque os itens extraídos da natureza não eram tão valorizados quanto o ouro e o diamante. (KASTRUP, 1974, p. 20)

De fato, com a decadência da mineração aurífera, o Cerrado mato-grossense continuou ligado aos mercados nacionais e internacionais pela exploração da erva-mate, da borracha natural, do quebracho e da poaia, além de inúmeros produtos de origem animal. Entretanto, de acordo com Fábio Carlos da Silva e Ivana Aparecida Ferrer da Silva, o equivoco historiográfico consiste no fato de que a maioria das interpretações da história econômica mato-grossense privilegiar os fatores externos (a ligação com os mercados exteriores) e não a diversidade da economia estadual. (SILVA; SILVA, 2011, p. 4)

Assim, tanto o discurso do vazio demográfico quanto o discurso do isolamento expressariam, antes de tudo, uma desconsideração para com a população autóctone de povos indígenas e comunidades tradicionais, ao mesmo tempo em que serviria a um “ideal aristocrático localista, no intuito de dispensar as pesquisas e a reflexão crítica”, como também de realçar o papel das elites dominantes no processo de modernização posterior, já que este setor teria sido responsável pela manutenção da civilização loca até que se iniciasse o novo processo colonizador dos anos 1970. (SILVA; SILVA, 2011, p. 4)

Contra esses discursos ideológicos, outros trabalhos de pesquisa19 têm mostrado que a diversidade econômica mato-grossense desde a época colonial e por todo um

18 Conferência pronunciada pelo secretário de planejamento e coordenação geral da SEPLAN, Sebastião

Aroldo Kastrup, perante a comissão especial de desenvolvimento do Centro-Oeste da Câmara Federal dos Deputados, em 06/06/1974.

19 Entre as pesquisas nessa direção, podem ser citados: ARRUDA, Hélio Palma de. A racionalização da exploração dos seringais em Mato Grosso. In: MINISTÉRIO DA AGRICULTURA: o problema da

borracha brasileira – estudos e relatórios apresentados à reunião de estudos da borracha para aumento da produção (REBAP). Brasília, 1960; AZEVEDO, Aroldo de. Cuiabá: Estudo de Geografia Urbana. Separata dos Anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros, Volume VII, Tomo II, São Paulo, 1953; BARROZO, João Carlos. Em busca da pedra que brilha como estrela: garimpos e garimpeiros do Alto

longo período, até os anos 1970 ia muito além da extração do ouro e do diamante, além da criação de gado para exportação. Paralelamente à economia aurífera se constituiu uma economia mercantil de drogas do sertão, produtos derivados da caça e da pesca, além do artesanato indígena entre outros produtos exportados.

Depois disso, quando na segunda metade do século XVIII sobreveio o declínio da mineração e boa parte da população migrou para outros locais, as comunidades remanescentes reordenaram o conjunto das forças produtivas garantindo o abastecimento com produtos locais através de fazendas, onde a pecuária se mesclava com os engenhos de açúcar e uma produção bastante diversificada de itens como feijão, mandioca, milho, cana-de-açúcar, algodão, abóbora e outros.

Há indícios de propriedades mistas, onde a complementariedade de funções era comum, como exemplo, a fazenda Jacobina com 200 escravos e igual número de gente forra, agregados, crioulos, mulatos e índios (escravos, agregados e assalariados). O caráter mercantil da atividade agroexportadora permanecerá nas exportações de açúcar, drogas do sertão, e outros gêneros, dando suporte ao precário poder de intercambio comercial. (SILVA; SILVA, 2011, p. 7)

3.2 - O “Ciclo do Açúcar” em Mato Grosso

Essas indicações são corroboradas por Lenine Campos Póvoas (1983) segundo quem por volta de 1750 se calculava a existência na região de Cuiabá de pelo menos 16 “engenhocas” que fabricavam aguardente e açúcar e nos quais trabalhavam aproximadamente “3.000 negros de Guiné”.

Quando sobreveio a decadência dos distritos auríferos, pela exaustão das catas, onde o ouro era quase todo aluvional, novas atividades econômicas começaram a surgir e contribuíram, de modo decisivo, para fixação do homem à terra. Foram elas as culturas temporárias – arroz, feijão, milho, e, especialmente, a cana-de-açúcar -, e, Paraguai Diamantino. Cuiabá: Calini & Caniato; EdUFMT, 2007.; BAXTER. Michael. Garimpeiros de

Poxoréo: mineradores de pequena escala de diamantes e seu meio ambiente no Brasil. Trad. Rocha,

Benedito César Ribeiro Nunes. Brasília: Senado Federal, 1988; BORGES, Fernando Tadeu de Miranda.

Do extrativismo à pecuária: algumas observações sobre a história econômica de Mato Grosso (1870-

1930). Cuiabá: Edição do Autor, 1991; CAMPOS FILHO, Luiz Vicente. Populações tradicionais. In: MACHADO, Maria de Fátima Roberto. (Org.). Diversidade sociocultural em Mato Grosso. Cuiabá: Entrelinhas, 2008; CASTRO, Sueli Pereira et. al. A colonização oficial em Mato Grosso: a nata e a borra da sociedade. Cuiabá: EdUFMT, 2002.

contemporaneamente, o início da criação de gado. (PÓVOAS, 1983, p. 16)

O certo é que a exploração da cana-de-açúcar veio a se tornar uma das culturas mais importante do estado até por volta dos anos 1940, quando as usinas entram em completa decadência, embora o plantio em pequena escala tenha permanecido. Aliás, embora comumente se dê atenção à importância dessa exploração mercantil – Póvoas fala em um “ciclo do açúcar” – as terras que margeiam o rio Cuiabá, anualmente adubadas pelas cheias, fez com que essa parte do território se tornasse o ponto ideal de concentração das usinas de açúcar, mas também propiciou o seu uso por uma quantidade não menos importante de pequenas comunidades de ribeirinhos que também tinham na cana-de-açúcar uma de suas principais culturas. (PÓVOAS, 1983, p. 19)

Póvoas assegura que essa fertilidade natural era um diferencial importante porque assegurava uma produtividade muito superior aos outros Estados, já que enquanto nestes a cana cultivada por processos rotineiros e sem adubagem produzia 40 toneladas por hectares, em Mato Grosso a média da produção era de 90 toneladas por hectare: “a renovação dos canaviais, após o corte, era cousa com que igualmente não se preocupava, muito os proprietários das usinas, porque elas voltavam a produzir, espontaneamente”. (PÓVOAS, 1983, p. 19)

A mais importante dessas usinas, a Conceição, estava localizada na margem direita do rio Cuiabá, próxima a Santo Antônio do Leverger e abrangia uma área de 14 mil hectares. Suas instalações tinham sido importadas da Inglaterra e por volta dos anos 1920 ela produzia anualmente 15 mil arrobas de açúcar e 140 mil litros de álcool e aguardente.

Nela trabalhavam cerca de 150 homens, durante a safra. Além da “Casa Grande”, reformada em 1930, ali existiam a casa da balança, a casa das máquinas, o depósito, o armazém, o açougue e o rancho. A usina dispunha de três quilômetros de trilhos e 40 vagonetas para o transporte da cana. A pecuária era desenvolvida no estabelecimento, que contava, já em 1913, com 1.500 reses mansas, 100 bois de serviço, 116 equinos e 100 suínos, além de gado leiteiro. Ao lado dos extensos canaviais praticava-se também uma agricultura de manutenção, colhendo-se, em cada ano, 50.000 litros de arroz, 50.000 litros de milho e 15.000 de feijão. (...) Quando a visitei em 1947, ainda a encontrei em plena atividade. (PÓVOAS, 1983, p. 22-23) (grifo nosso)

Esses estabelecimentos espalhados ao longo do rio Cuiabá eram quase completamente autossuficientes. Eram comunidades isoladas onde se produzia tudo o que se necessitava, como a carne, peixes, frutas, galinhas, leite, ovos, verduras, milho, açúcar, doces, arroz e feijão. Algumas chegaram a possuir moeda própria e nos armazéns, que também era de propriedade do usineiro, supriam-se os empregados com roupas, calçados, tecidos, fumo, fósforos, remédios e objetos de uso pessoal.

O poder do proprietário era absoluto e as relações de trabalho, em pleno século XX, lembravam as da escravidão. As usinas possuíam um tronco e quando este foi abolido, elas passaram a ter uma cadeia. Nessas condições, não se questionava o poder dos proprietários:

Dentro dos amplos limites de sua propriedade a sua palavra era a única lei. Ele enfeixava em suas mãos todos os poderes. Era o legislativo, o executivo e o judiciário. Ditava as normas. Traçava limites aos direitos dos que ali viviam. Julgava e punia os que transgrediam as normas de vem viver dentro daquele aglomerado social, ou que se rebelavam contra as regras estabelecidas. (PÓVOAS, 1983, p. 58)

Essas relações de dominação permaneceram até que as usinas entrassem em colapso. Póvoas conta que com a vitória da Revolução de 1930, o primeiro interventor nomeado por Vargas chegou a determinar que os trabalhadores fossem libertados, pois de fato eles viviam em situação análoga à escravidão:

Morando no bairro do Porto, com dez anos de idade, recordo-me de ter visto a chegada de embarcações trazendo esses ‘escravos alforriados’. A cidade ficou cheia deles. Mas em poucos dias, sem encontrar serviço, nem quem lhes desse sustento, retornaram espontaneamente às usinas de origem. Pouquíssimos ficaram pelos

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