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O modelo capitalista de desenvolvimento

5.1 - O Modelo Capitalista de Desenvolvimento

Embora mesmo entre aqueles que pertenciam às comunidades tradicionais, muitos fossem seduzidos pela ideia de que o progresso e o desenvolvimento iriam beneficiar a todos, indistintamente, um dos obstáculos à implantação do modelo de desenvolvimento proposto e em implantação em Mato Grosso seria exatamente a resistência de parte das comunidades que o modelo teoricamente pretendia “desenvolver”.

Portanto, o sentido deste padrão de desenvolvimento é bem melhor compreendido quando observado na perspectiva dos que a ele se opunham. Para cada um dos povos e comunidades citados no item anterior a implantação do modelo de desenvolvimento do capitalismo agrícola implicou em transformações que impactaram fortemente seus modos de vida e sistemas de produção. Não seria possível analisar cada um desses casos nos limites desta tese. Dessa maneira, serão apresentadas algumas conclusões retiradas de uma investigação realizada por Iselda Correa Ribeiro (1998) junto às comunidades rurais de Morro Grande e Barreirinho, ambas localizadas no município de Santo Antônio do Leverger, distantes cerca de 20 km de Cuiabá. A comunidade de Morro Grande é composta por 68 famílias das quais 54 são descendentes de 45 famílias que em 1892 obtiveram o titulo definitivo de propriedade sobre uma área de pouco mais de 1.000 hectares.

Conforme explica Ribeiro (1998), por toda extensão da Baixada Cuiabana existem essas comunidades autodenominadas “sesmeiros”, que tem origem nas antigas colônias e aldeamentos organizados no século XVIII pela coroa portuguesa e Igreja Católica:

Estas colônias foram resultado da política da Coroa Portuguesa que, a fim de acabar com as guerras indígenas, decidiu transformar os índios em trabalhadores produtivos, integrando-se à sociedade envolvente. Esta decisão política da Coroa Portuguesa objetivava unir os índios aos portugueses através do casamento institucional, como forma de garantir a paz na região de Cuiabá, palco de frequentes conflitos. (RIBEIRO, 1998, p. 48-49)

Como resultados dessa política institucional surgiram na região de Cuiabá diversos engenhos de rapadura e fábricas de farinha de mandioca cuja produção abastecia os engenhos de álcool e os escravos e trabalhadores livres das minas, uma

produção voltada exclusivamente para o consumo interno. Após a extinção do sistema de sesmarias e o advento da Lei de Terras de 1850, o governo de Mato Grosso realizou a regularização fundiária e neste processo foi criada a Gleba Bom Jesus, de propriedade da Igreja Católica. (RIBEIRO, 1998, p. 49-50)

Posteriormente, a Igreja doou estas terras para “José de Abreu e outros”, incluindo as 45 famílias das quais se originou a comunidade de Morro Grande. Dessa forma configurou-se aquela situação citada por Little (2002) sobre as comunidades indígenas e tradicionais onde imperam formas coletivas de apropriação dos recursos naturais, pois a terra e os recursos naturais pertencem à comunidade. (LITTLE, 2002, p. 8-9)

Em Morro Grande a propriedade da terra foi “juridicamente privatizada ao mesmo tempo em que continuou, para os sesmeiros, terra comum do grupo de lavradores e produtores que nela viviam, permitindo a continuidade das condições de organização social”. Até a época da pesquisa realizada por ele, os habitantes de Morro Grande tinham como tradição nunca dividirem a terra entre si e nem buscarem seus direitos institucionais de herança. (RIBEIRO, 1998, p. 51)

O costume determinava que aquela família que abandonasse definitivamente a comunidade perdia seus direitos sobre a terra, as roças e a casa. Embora a terra fosse comum, o trabalho era individual e familiar. A economia familiar estava centrada basicamente na produção de farinha de mandioca, criação de gado, pesca e plantio de outros produtos, como frutas e verduras. A técnica de produção era ainda aquela originada das práticas agrícolas dos Bororo, população original da área. “No começo aqui se criava gado. Meu pai criava gado. Nós colhia quatrocentos bezerros por ano. Nós pegava para tirar leite, fazer queijo, comia, dava... Naquele tempo ninguém se importava. O boi não valia nada.” (Sr. Pedro, 85 anos, Comunidade do Barreirinho. Apud. RIBEIRO, 1998, p. 55)

Como se observa, o sistema produtivo e o modo de vida da comunidade não tinham como fundamento nem a propriedade privada do principal meio de produção – a terra – nem o estabelecimento dos conceitos de desenvolvimento dai decorrentes. Conforme afirma Ribeiro, as relações ambientais e sociais do grupo estavam ligadas às expressões religiosas antigas, herdadas dos antepassados indígenas e negros,

Que trouxeram consigo a prática da orientação da lua no plantio, a medicina pelas plantas, o culto aos santos, as festas religiosas que

duravam uma semana, as crenças no sobrenatural, as ligações com os “seres do outro mundo”, através do candomblé, religiosidade herdada dos negros escravos, da pajelança, religiosidade herdada dos indígenas, formando assim um sincretismo religioso e uma visão de mundo que dão sentido à vida sesmeira. (RIBEIRO, 1998, p. 61)

É este mundo sesmeiro, ribeirinho, sertanejo, pescador, extrativista, quilombola, indígena e tradicional que vai ser paulatinamente conquistado pela modernização capitalista agrícola a partir dos anos 1970. No caso da comunidade de Morro Grande, além dos conflitos com grileiros e novos ocupantes a partir desta década, enfrentaram também os “especialistas” na implantação do novo modelo. Segundo relata Ribeiro, em 1980, uma equipe formada por técnicos do Centro de Apoio e Gerenciamento à Micro e Pequena Empresa do Estado de Mato Grosso (CEAG) e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), elaboraram um programa de modernização tecnológica para os produtores de farinha de mandioca da comunidade de Morro Grande.

A proposta inicial foi implantar uma técnica mais avançada, que eliminasse as partes do processo de produção consideradas ‘atrasadas’ como o método utilizado para torrar a farinha e ralar e presar a mandioca. A fim de aumentar a quantidade de farinha a ser produzida, fazia-se necessário ainda modificar as técnicas de plantio com o uso de agrotóxicos e adubos. A modernização, nesse sentido, era compreendida como modificação da cultura material do grupo de produtores sesmeiros, pelo abandono das práticas rotineiras e de instrumentos considerados arcaicos e pela adoção de práticas mais modernas, ainda que artesanais, que possibilitassem o aumento da produtividade do trabalho. (RIBEIRO, 1998, p. 64)

É possível traçar uma analogia entre esta tentativa de modernização capitalista desta comunidade tradicional com aqueles projetos de modernização que foram empreendidos pela Funai nas comunidades indígenas do Cerrado durante os anos 1970 e 1980. Tal como naqueles projetos fracassados, tentava-se aqui aumentar a produtividade do trabalho através da introdução de ferramentas e técnicas consideradas mais modernas, bem como de criar as condições para que a comunidade incorporasse uma série de valores culturais e econômicos de cunho capitalista. (PINTO et alli, li, 2002, p. 56-57; SERPA, 1998, p. 02; MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 93)

Conforme descreve Ribeiro, os agentes da modernização pretendiam que o grupo de produtores sesmeiros fossem “ensinados” a administrar “racionalmente” a sua produção em bases empresariais. Paralelamente a resistência oferecida pelos sesmeiros, o projeto do CEAG principiou em fracassar devido a mudanças institucionais ocorridas

com parceiros do projeto. Uma dessas mudanças foi a transformação do Centro Brasileiro de Apoio a Micro e Pequena Empresa (CEBRAE), cujos técnicos ajudaram na elaboração e implantação do projeto, em Serviço de Apoio e Gerenciamento à Micro e Pequena Empresa (SEBRAE), que passou a operar com nítida feição capitalista. (RIBEIRO, 1998, p. 62)

Outro ponto de discórdia era com relação à atuação do INCRA. Conforme foi citado anteriormente por Little (2002), este órgão passou a atuar de acordo com os conceitos de territorialidade do Governo Federal, que reconhecia apenas dois tipos de propriedade, a pública e a privada. (LITTLE, 2002, p. 6-7)

Nestes termos, sem reconhecer o sistema de propriedade coletiva na qual viviam os sesmeiros, o INCRA pretendia que a terra ocupada pela comunidade fosse dividida em partes iguais entre as famílias, como base para a realização de projetos de modernização apoiados pelo Governo. (RIBEIRO, 1998, p. 68)

No entanto, a grande resistência foi oferecida pelos próprios moradores da comunidade: “o grupo sesmeiro, em um primeiro momento, opôs serias resistências à entrada desta ‘gente estranha’ na área, negando-se, inclusive, a participar das reuniões organizadas pela empresa”:

Depois de seis meses de visitas diárias à comunidade, não conseguimos nada com os sesmeiros. A comunidade estava muito arredia a nós. Nosso erro foi acreditar que os homens detinham o poder de decisão. Na verdade era a cabeça das mulheres que tínhamos que fazer. Eram elas que produziam a farinha. Foi ai que conhecemos Dona Benjamina que, após uma longa entrevista conosco, apostou no trabalho da gente. (José Guilherme Ribeiro, diretor do CEAG. Apud. RIBEIRO, 1998, p. 69-70)

Depois desses seis meses de resistência é que os técnicos conseguiram convencer parte dos sesmeiros a conhecer outro projeto em implantação na localidade de Acorizal (também na Baixada Cuiabana). Mas a resistência continuou, pois o prosseguimento do projeto dependia de recursos que somente poderiam ser obtidos via financiamento.

Os sesmeiros, conforme constatou Ribeiro, “não acreditavam que empréstimos no banco pudessem dar certo”. Ao mesmo tempo, demonstraram que não estavam dispostos a abrir mão do controle total sobre a produção e as mudanças a serem implantadas implicariam que eles teriam que renunciar a esse controle. Este impasse somente foi rompido quando algumas famílias sesmeiras se organizaram e assumiram

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