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3 REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA ESCRITA NA ESCOLA BRASILEIRA

3.3 A LÍNGUA E A ESCRITA NA PERSPECTIVA DA ESCOLA DE GENEBRA

3.3.1 Agrupamentos e progressão dos gêneros

Para dar conta da proposta da didatização dos gêneros do discurso (Bakhtin) e ressignificar a metáfora do instrumento psicológicos (Vygotsky), melhor dizendo, para tornar o objeto acessível e adaptado ao sistema, por parte das pesquisas genebrinas, foi preciso: estancar o inestancável, esquecendo-se da estabilidade relativa dos gêneros; a interrelação genérica, com as atividades sociais; a correlação entre os gêneros primários e secundários como um procedimento processual e não ontológico. Isto significa deslocar os gêneros, do discurso- do uso dos sujeitos na esfera da comunicação verbal, para situá-los como ‘megainstrumentos’ agrupados como ‘entes’- artefatos predefinidos para o ensino de língua materna na escola (GERALDI, 2010).

Geraldi (Op. cit.) comenta que ao realizar este deslocamento conceitual, o sistema educacional tem um objeto e uma proposta de ensino que se retomam a tranquilidade necessária para a manutenção da soberania e da ideologia governamental, no sentido que se têm objetos definidos previamente (mesmo que este não seja escolhido pelo professor!), com os quais os alunos podem se exercitar; adaptáveis a diversas modalidades de seriação e exigíveis em avaliações nacionais; ademais, vão mais além do sistema linguístico, inserindo

as enunciações nas fórmulas da composição, predefinidos, os temas e os estilos (…) Nada poderia ser menos bakhtiniano do que esta redução do conceito de gênero sem gênesis, já que as esferas de atividades ‘didaticamente transpostas’ passam a ser apenas ‘práticas de referências’, já que nelas não estão incluídos os alunos a não ser como sujeitos ficcionais de uma sequência didática! (Op. cit, p. 80, grifos do autor).

Ainda que o grupo genebrino reconheça esse desvio dos preceitos bakhtinianos que sustenta em parte suas bases teóricas, Schneuwly ([1996] 2004) diz que é preciso utilizar os gêneros como instrumento para construção das capacidades da linguagem (orais e escritas) no

âmbito escolar. Contudo, para tornar isto possível, foi preciso agrupá-los - tamanha era a sua diversidade, seu número infinito. Tornava-se impossível sua sistematização, converter o gênero como unidade de base, sem pensar sua “progressão didática” (p. 57).

Neste intuito, Schneuwly e Dolz (2004, p. 57-61) propõem realizar um agrupamento de gêneros em função de um certo número de regularidades linguísticas presentes na sua composição (aspectos lexicais, sintático, tempos verbais, relações lógicas), constituem-se como sequências tipológicas82(DOLZ; SCHNEUWLY, [1996] 2004; MARCUSCHI, 2002). Ao contrário dos gêneros que possuem um número ilimitado de categorias, as sequências tipológicas abrangem uma variedade limitada. Bonini (2005) comenta que a diferença elementar entre as sequências e os gêneros se estabelece neste preceito de menor variabilidade. Os gêneros estão essencialmente presentes nas práticas sociais específicas que, por sua natureza, são heterogêneas. No entanto, as sequências “como componentes que atravessam os gêneros, são relativamente mais estáveis, logo mais facilmente delimitáveis em um pequeno conjunto de tipos” (p. 218).

Os pesquisadores Dolz e Schneuwly ([1996] 2004, p. 60-61) valem-se da ideia de estabilidade tipológica bakhtiniana e propõem uma categorização provisória de agrupamento de gêneros, realizada para favorecer o ensino, têm-se as ordens tipológicas do: narrar, expor, argumentar, descrever ações e relatar83

. Entretanto, Schneuwly (2015) amplia as tipologias, os agrupamentos, tamanha é a plasticidade do objeto, e mostra-nos: narrar, relatar, expor, argumentar, descrever, instruir e textos poéticos. É relevante destacar que a penúltima tipologia, não estava em seu agrupamento (no artigo de 1996), mas em outros teóricos; e a última estava em uma nota de rodapé, já publicada: “Ignoramos propositadamente a poesia,

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Conforme já mencionamos acerca do caráter interdisciplinar da perspectiva genebrina, a ideia de agrupamentos de gêneros se elaborou com forte apego nos estudos de Jean- Michel Adam,que brevemente tratamos agora, em sua definição sobre as sequências textuais,cujos fundamentos igualmentesurgem a partir da noção bakhtiniana de gêneros do discurso, das classificações sob gêneros primários e secundários e da célebre hipótese sobre os ‘tipos relativamente estáveis de enunciados’- as regularidades composicionais estão na base, das regularidades das sequências. Na verdade, a tipificação mencionada por Bakhtin está disponível para uma infinidade de formas elementares (primárias) e, por sua vez, de combinações e de transformações dentro dos gêneros secundários. Nesta abordagem, os primários são concebidos como sequências textuais, ou melhor, como componentes do texto (compostos por proposições relativamente estáveis e maleáveis) que se integram aos gêneros secundários. As sequências se definem “como pontos centrais das categorizações dos textos e, portanto, como principais componentes para atividades com textos” (BONINI, 2005, p. 210). A noção de sequência foi erigida na década de 80 e aprofundada nos anos 90, com base em Bakhtin e em outros conceitos- chave: protótipo (Rosch), base e tipos de texto (Werlich) e superestrutura (Van Dijk) (ADAM, 2009). Assim, Adam (Op. cit.) postula cinco sequências textuais: narrativo, descritivo, argumentativo, expositivo e dialogal. Segundo o teórico, as classificações devem ser vistas de maneira flexível, devido ao carácter ainda inicial de sua formulação sobre as estruturas sequenciais (p. 125).

83 Outros pesquisadores entre eles, Rojo (2005) e Marcuschi (2002) acrescentam a esta categorização genebrina, a sequência tipológica injuntiva, fato que também foi reiterado em Schneuwly (2015).

que não pode absolutamente ser tratada como agrupamento de gêneros” (DOLZ; SCHNEUWLY, [1996] 2004, p. 59).

Vale considerar que o fato também foi reiterado por Adam (2009, p. 129, grifos do autor), “parece-me impossível considerar o tipo “poético” como um tipo de sequencialidade comparável às outras, na medida que não é propriamente regrado pela estrutura hierárquica que acabei de definir”. Não obstante, Schneuwly (2015) diz que principalmente por razões educacionais, decidiu tratar o tipo poético da mesma maneiraque as outras cinco categorias. Assim, na visão genebrina, parece-nos que todos os sacrifícios são válidos desde que os fins sejam a organização de objetos ensináveis para a estruturação do ensino.

A rigor, um gênero é tipologicamente heterogêneo- uma carta de solicitação, por exemplo, pode apresentar sequências tipológicas descritivas, argumentativas, expositivas, narrativas e injuntivas, seguindo a categorização de Marcuschi (2002). Neste sentido, o que caracteriza a tipologia de um gênero é o fato de que ela se define por seus traços tipológicos predominantes, amparando-se no tal aspecto, os mencionados genebrinos realizaram o agrupamento de gêneros, que vemos no quadro abaixo.

QUADRO 6: Agrupamentos de gêneros Esfera social da comunicação Aspecto tipológico Capacidades de linguagem dominante

Exemplos de gêneros orais ou escritos

Cultura literária ficcional

Narrar Mimeses da ação

através da criação da intriga no domínio do verossímil

Contos; fábulas; romance; narrativas de aventuras, de enigma; lendas, ... Documentação e memorização das ações humanas verídicas

Relatar Representação pelo

discurso de

experiências vividas, situadas no tempo

Relatos de experiência (vivida); reportagem; notícia; autobiografia; anedota; diário; testemunho; crônica; ...

Discussão de

problemas sociais controversos

Argumentar Sustentação, refutação e negociação de tomadas de decisão

Textos de opinião; carta ao leitor, de reclamação, de solicitação; debate; editorial; ensaio; requerimento; editorial; ...

Transmissão e elaboração de saberes

Expor Apresentação textual de diferentes formas de saberes

Conferência; relato de experiência (científicas) verbete; texto explicativo e expositivo; entrevista de especialista; resenha, relatório, ...

Instrução e prescrição Descrever ações

Regulação mútua de comportamentos

Receita; instruções de montagem e de uso; regras de jogo; textos prescritivos e normativos legais; regulamento; ...

Fonte: Elaborado pela autora, inspirado no texto de Dolz; Noverraz; Schneuwly ([2001] 2004). No geral, o agrupamento serve para auxiliar o planejamento curricular e estabelecer a sua progressão84, organizando a diversidade de gêneros em tipos de discurso (ou de texto)

(Narrar, relatar, argumentar, expor, descrever ações). Do ponto de vista didático, os agrupamentos subsidiam a progressão85

- considerando que desde o início da escolaridade, a leitura e a produção de textos devem ser ensinadas, tomando-se em questão as sequências tipológicas e as capacidades de linguagem dominantes (conforme visualizamos no quadro 6). Sendo assim, é possível definir os objetivos e complexidades variáveis que se deseja atingir, tendo como base o objeto de ensino em todos os anos do EF. Em verdade, o que deverá mudar em cada ano de ensino será o grau de aprofundamento acerca dos objetos (gêneros) - tendo como fundamento uma concepção de ensino-aprendizagem em espiral86.

Dolz, Noverraz e Schneuwly ([2001] 2004) salientam que os agrupamentos, não são ordenações definidas, estanques, uma com relação à outra, pois, é relativamente difícil classificar cada texto de maneira absoluta. Com efeito, seriam protótipos para cada agrupamento- pensados para um trabalho didático, trata-se de solucionar temporariamente problemas práticos. Bakhtin ([1952-1953] 1997), já na sua reflexão, falava sobre tentação em delimitar um ‘terreno tão fértil’ e instável:

A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa (…). Ficaríamos tentados a pensar que a diversidade dos gêneros do discurso é tamanha que não há e não poderia haver um

84 Vale reiterar que os gêneros inseridos no agrupamento genebrino incluem apenas alguns (e não todos) dos gêneros mais elaborados (formais) que circulam com frequência na sociedade, de modo que os gêneros presentes na comunicação cotidiana não são contemplados na classificação.

85 Para mais detalhes quanto a concretude do modelo de progressão pensado pelo GRAFE, é imprescindível ver um esboço de uma progressão para o agrupamento de gêneros do ‘argumentar’ (DOLZ; SCHNEUWLY, [1996] 2004, p. 65-66)

86Nesta visão de aprendizagem, pensa-se o ensino como um processo que vai do simples ao complexo, da palavra ao texto e vice-versa. Em oposição, por exemplo, à concepção tradicional de alfabetização em que para trabalhar com o texto era preciso o domínio do bê-á-bá- princípio aditivo. Na atual reflexão, “esses dois processos de aprendizagem podem e devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um conhecimento de natureza notacional: a escrita alfabética; o outro se refere à aprendizagem da linguagem que se usa para escrever (BRASIL, 1997, p. 27).

terreno comum para seu estudo (…) (BAKHTIN, [1952-1953]1997, p. 279- 280).

É interessante perceber o diálogo travado no texto do GRAFE, com o círculo russo87 e com seus interlocutores, estudiosos e professores, reconhecendo que ao fazerem uso das sequências tipológicas para a didatização dos gêneros, podem não trazer uma base amplificada dos textos, mas reduzi-los a classificações parciais, “tocando somente em aspectos do funcionamento da linguagem” (DOLZ; SCHNEUWLY, [1996] 2004, p. 58). Ao preferirem este caminho, a abordagem suíça escapa da visão bakhtiniana, social e perpetrada no uso, então isto é ensinar língua? Geraldi ([1991] 2003) argumenta que seria inocente pensar que a abordagem, por ele descrita, é apenas um ponto de partida para uma ação ideologizante:

Se a linguagem não é morta, não podemos escapar do fato que ela se refere ao mundo, que é por ela e nela que se pode deletar a construção histórica da cultura, dos sistemas de referências. Querer em nome de uma suposta neutralidade abandonar qualquer ação pedagógica que opere com estes sistemas de referências é querer, na verdade, artificializar o uso da linguagem para ater-se a aspectos que não envolvem a linguagem como um todo, mas apenas uma de suas partes (p. 178-179).

Mesmo prevendo as críticas ao modelo de ensino elaborado, conforme já refletimos anteriormente, Dolz e Schneuwly ([1996] 2004) preferem seguir por este ‘terreno arenoso’(BAKHTIN, [1952-1953]1997)e ‘formalmente inócuo’ (GERALDI, [1991] 2003), por não acreditar na perspectiva utilitarista - em que o aluno só deve aprender aquilo que for utilizar no futuro e, por pensar, que o ensino explícito, intencional dos gêneros na escrita88, é particularmente mais eficaz, para melhor compreender o funcionamento dos textos e, por conseguinte, desenvolver uma melhor capacidade na leitura e na análise de textos por parte dos aprendizes de qualquer .disciplina de língua materna.

Destarte, o modelo de ensino intenciona desenvolver a autonomia do aprendiz, para isso: pretende-se instrumentalizá-lo para que possa descobrir, com seus pares, nas interações efetivas entre eles e os objetos de ensino; propõe-se que o docente intervenha sistematicamente no processo de transposição didática. Tudo recai sobre a formação do

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Contudo, Bakhtin não se lançou a “fixar o que se move, a estancar o que flui, nem estabelecer limites claros para aquilo que é necessariamente impreciso, já que intrinsecamente vinculado à contingência da atividade humana”, os gêneros se hibridizam incessantemente (FARACO, 2013, p. 129). Talvez, é claro, porque sua proposta não tenha sido pensada para o ensino.

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Apesar da perspectiva genebrina centrar suas pesquisas, principalmente, no ensino da produção escrita, os demais eixos de ensino (oralidade, análise linguística, leitura) perpassam o trabalho com a escrita na modelização didática proposta- aspecto que damos evidência na subseção a seguir.

docente, que se ‘bem preparado’ e ‘estimulado’, pode adaptar as sequências didáticas às necessidades de seus alunos, auxiliando-os a avançar no domínio das capacidades de linguagem (oral e escrita) (DOLZ; SCHNEUWLY, [1996] 2004, p. 53) - questões que explicitamos na próxima subseção.