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4 ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE: escravizados na cidade de São Luís

4.1 Lazer e diversão

4.1.4 Ajuntamentos e batuques

Conforme o artigo n° 92 das Posturas Municipais de 1833, era proibido o agrupamento de escravos nas ruas e praças da cidade de São Luís. Este posicionamento não foi adotado apenas pelos governantes da capital da província maranhense. Abreu (1999, p. 201), em trabalho sobre a festa do Divino no Rio de Janeiro, aponta que, a partir dos anos de 1830, houve um endurecimento na repressão aos ajuntamentos e festas negras, principalmente após os levantes negros baianos de 1835.

Segundo Reis (2002, p. 115), a legislação adotada para controlar, disciplinar e reprimir a circulação de escravos no espaço público tinha objetivos mais práticos a ser atingidos, que se direcionavam a proteção dos interesses imediatos dos senhores. “Elas [as legislações] visavam impedir que os escravos abandonassem o trabalho pelo batuque, além de tolher distúrbios – que muitas vezes levavam a ferimentos, mortes, prejuízo senhorial”.

Porém, como observamos nos registros policiais, essa proibição era constantemente infringida. Várias são as ocorrências de dispersão de “ajuntamentos”, “adjuntos” e “vozerias”, como na passagem abaixo:

As 11 horas da noite a patrulha n° 1 veio ao quartel pedir socorro, para dispersar um adjunto de mais de sessenta indivíduos pela maior parte pretos e marinheiros, que no Trapixe de Joze dos Reis e Brito estavam em um batuque e que por efeito da embriaguez alguns deles estavam já em desordem; foram 14 Guardas Municipais com a patrulha, os quais sendo avistados de longe pelos sobreditos indivíduos se lançarão pelo [corroído], e embarcaram em umas canoas que estavam próximas, ficando apenas presos os pretos Polidoro, escravo do Chefe da Esquadra Felippe de Barros e Vasconcellos, Cosme e Joze, escravos de Joze dos Reis e Britto. (GMP, 1° Companhia, 03.11.1832, grifo nosso).

Nas cidades, apesar da constante vigilância das autoridades públicas e dos senhores, os escravos urbanos tinham um controle maior do seu tempo, quando comparados aos escravos das áreas rurais, de tal modo que conquistavam maior autonomia no desempenho de suas atividades laborais, podendo interrompê-las para participar de um batuque ou quem sabe encontrar seus companheiros em uma taverna. O exercício do poder na escravidão não estava limitado à questão do trabalho, conforme aponta Reis (2002, p. 113),

O controle sobre onde, quando e quanto trabalhar se complementava com a definição de onde, quando, como e quanto não trabalhar. Sendo a festa atividade constante durante o tempo livre do escravo, o esforço deste pela sua preservação e ampliação representou um componente importante da resistência escrava.

As festas e batuques poderiam acontecer nas ruas, tavernas, em casas e, ao mesmo tempo, em casas e na rua. Um dos recursos utilizados por escravos e forros era o aluguel de casas com a finalidade de exercerem atividades religiosas e lúdicas e vivenciarem, mesmo que de forma vigiada, uma relativa liberdade. O documento que registra as casas habitadas por libertos e escravos na São Luís oitocentista traz informações relevantes relacionadas às festas e batuques realizados por cativos e forros, que eram fiscalizados pelas autoridades públicas, por serem considerados perigosos à ordem pública esperada pelas elites:

Na rua das fontes das pedras e no quintal das casas n°18, há uma quantidade de quartos que se alugam a pretos e pretas, o que se reúnem em numero algum tanto crescido, para praticarem suas danças, com o que incomodam a seus vizinhos. No largo da Fonte das Pedras também nas tardes de alguns Domingos, e Dias Santos, há reuniões de negros que praticam o som de tambores danças e cantigas a seu uso, alguns deles se distinguem por penachos postos nas copas de seus chapéus, porem o n° não se é avultado, e algumas vezes tem sido dispersados pelas rondas municipais. (GMP, Relação de casas habitadas por escravos e libertos de 1835, grifo nosso).

O mapeamento nos locais habitados por escravos e forros era mais um dos meios encontrados pelo Estado para controlar-lhes a vida. Além disso, muitas vezes “parte da população da cidade não estava disposta a permitir que negros e mulatos, escravos ou libertos, perturbassem o sossego público” (SIQUEIRA, 2005, p. 43), como indica este registro policial: Nas circunvizinhanças da casa de correção, a muito tempo que nas vésperas dos Domingos, e Dias Santos, se juntam alguns pretos e pretas, para dançarem ao som de tambores conforme o uso de suas terras, com o que fazem matinada extraordinária, e isto sempre tem lugar em oras remotas: vedou a polícia esta reunião, porem os festeiros recorrerão ao Juiz de Paz do Distrito, e este lhe deu licença para continuarem, de maneira que já se não contentam com o dançarem no meio da rua: por consequência, o repouso dos vizinhos do lugar, o bom regime em que devem ser tidos os escravos, e a polícia da Cidade, imperiosamente exige o término de tal reunião: o chefe dela é um preto velho feitor de Manoel José de Medeiros. (CPM, 16.09.1838, grifo nosso).

Observamos, na passagem acima, a alusão aos “domingos e dias santos”. Frequentemente eram esses os dias que os escravos estavam dispensados de suas atividades laborais que “se configuravam enquanto espaços de tempo ora cedidos pelo senhor ora conquistados no cotidiano da escravidão, não se enquadrando no tempo do relógio”. (LAURINDO JUNIOR, 2012, p. 149-150). Era principalmente nesses dias que os escravos se

dedicavam às suas atividades lúdicas de forma mais intensa. Contudo, poderiam também utilizar esses dias para “trabalhar em serviços agenciados por conta própria” (MOREIRA, 2003, p. 284), para complementar sua renda ou quem sabe para objetivar planos de mais longo prazo.

Mesmo com tanta repressão e vigilância sobre os sujeitos escravizados, eles não deixaram de exercer e praticar suas manifestações lúdicas e religiosas, de se encontrarem com seus pares para festejar, dançar e cantar. Por isso, compreender o relacionamento desses sujeitos escravos pelo âmbito da passividade é tirar-lhes o poder de atuação na sociedade.

Compreendemos que, ao saírem pelas ruas da cidade para jogar, beber, dançar, cantar, tocar tambores ao som de sua terra, fossem nas vias públicas, nas quitandas ou tavernas, os escravos demarcavam territorialidades. A partir desta perspectiva, concebemos a ideia de “territorialização” a partir de Mattos (2008, p. 38), que a entende,

como processo relacional que define identidades, permite transcender os limites do dado físico apenas, passando a referenciar-se, sobretudo, nas formas como os grupos humanos específicos singularizam prática e simbolicamente, portanto culturalmente, a ocupação de um espaço físico, ao mesmo tempo que constroem o seu significado histórico social. Dessa forma, definir o valor interpretativo do termo “territórios negros”, implica considerar práticas e valores culturais que se tornaram próprios às populações negras, na medida das relações de proximidade e distância com práticas e valores que se lhes mostram contrários.

De modo que os espaços físicos e sociais conquistados pela população negra, a exemplo da apropriação das ruas e quitandas para suas reuniões e batuques, o morar fora da casa seu senhor etc., figuram não apenas como “vislumbres ou pequenas parcelas de uma liberdade possível nas fímbrias do sistema escravista, mas também como espaços territórios instituintes de um universo cultural próprio”, que resistiu “às adversidades de uma conjuntura social e racialmente desfavorável”. (MATTOS, 2008, p. 38).