• Nenhum resultado encontrado

4 ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE: escravizados na cidade de São Luís

4.2 Morando sobre si

Nas cidades imperiais, muitos escravos urbanos “moravam sobre si”, sendo responsáveis pela própria sobrevivência, desfrutando de relativa margem de liberdade. Geralmente, como contrapartida, encarregavam-se de pagar o equivalente ao chamado jornal ou semana ao seu senhor. Para estes últimos, permitir que seus cativos residissem fora do domicílio senhorial trazia vantagens, visto que não teriam despesas com o sustento do escravo. Já para os escravos a maior autonomia de movimento poderia “facilitar jornadas

extras de trabalho com o objetivo de amealhar dinheiro suficiente para comprar sua liberdade aos senhores”. (CHALHOUB, 1996, p. 27).

Em 1835, como já foi dito anteriormente, a Guarda Municipal Permanente foi responsável pelo levantamento das casas habitadas por escravos e libertos na capital da Província do Maranhão, como forma de mapear e identificar os locais que residiam essa população, com o objetivo de garantir segurança aos considerados “homens de bem” da cidade. Esta documentação nos permitiu realizar algumas inferências sobre tais habitações.

Os libertos, conforme já foi apontado neste trabalho, estavam sempre sob o regime de suspeição; assim como os escravos, eles (os libertos) faziam parte de uma “classe perigosa” (CHALHOUB, 1996, p. 20)33, de modo que a localização de suas moradias também precisava ser conhecida pelas autoridades. A sobredita documentação trouxe a seguinte informação sobre esses indivíduos,

Na classe dos forros observa-se o que desgraçadamente vai ter por todo o Império: indivíduos alucinados ou ruins, para chegarem a ser finos, fizeram acreditar a estes indivíduos, que o §§13 do artigo 179 da Constituição igualou a todos os membros da família brasileira, mas omitiram lhe que era perante a lei, por isso eles se suporem iguais aos Reis, e parece que essa classe forceja para sair da rua, em que para o bem da ordem social deve estar circunscrita34.

O excerto acima, faz referencia a Constituição de 1824, que revogou finalmente o dispositivo colonial da “mancha de sangue” contra os africanos e seus descendentes e reconheceu os direitos civis de todos os cidadãos brasileiros, considerando assim brasileiro todos os homens livres nascidos no Brasil. Considerou como brasileiro os portugueses que continuaram residindo no país após a Independência desde que tivessem aderido à “causa do país”, e os estrangeiros naturalizados; mas excluiu do direito de ser cidadão brasileiro escravos e os libertos35. Sobre as consequências da Constituição de 1824, a autora Mattos (2000, p. 21) explica,

A manutenção da escravidão e a restrição legal do gozo pleno dos direitos civis e políticos aos libertos tornavam o que hoje identificamos como “discriminação racial” uma questão crucial na vida de amplas camadas das populações urbanas e rurais do período. Apesar da igualdade de direitos civis entre cidadãos brasileiros

33Chalhoub (1996, p. 23) faz um apanhado histórico do termo “classes perigosas”, identificando o momento a partir do qual esse termo passa

a ser associado à população pobre. “Na verdade o contexto histórico em que se deu a adoção do conceito ‘classes perigosas’ no Brasil fez com que, desde o início, os negros se tornassem os suspeitos preferenciais”.

34 Constituição de 1824. Disponível em:

< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>.

35Na referida Constituição foi adotado o voto censitário em três diferentes níveis: “o cidadão passivo (sem renda suficiente para ter direito a

voto), o cidadão ativo votante (com renda suficiente para escolher, através do voto, o colégio de eleitores) e o cidadão ativo eleitor elegível”. Neste terceiro nível, havia uma distinção que não se relacionava com a questão censitária, pois “além das exigências de renda, impunha-se o eleitor, que tivesse nascido ‘ingênuo’, isto é, não tivesse nascido escravo”. (MATTOS, 2000, p. 21).

reconhecida pela Constituição, os brasileiros não-brancos continuavam a ter até mesmo o seu direito de ir e vir dramaticamente dependente do reconhecimento costumeiro de sua condição de liberdade. Se confundidos com cativos ou libertos, estariam automaticamente sob suspeita de serem escravos fugidos – sujeitos, então, a todo tipo de arbitrariedade, se não pudessem apresentar sua carta de alforria. Diante do exposto, os libertos sempre estiveram na mira das autoridades e da elite, já que carregavam consigo o estigma de terem sido escravos; além disso, muitos estabeleceram laços de solidariedade e afetividade com os cativos, por isso a vigilância e controle deveriam ser sempre estendidos a eles.

Foram identificadas 56 casas alugadas para escravos que abrigavam 107 sujeitos entre homens e mulheres. As moradias referentes aos libertos contabilizavam 88, residindo 174 indivíduos. Todavia, esse número de moradias alugadas por escravos poderia ser muito maior, como fica sugere o registro: “Nesta relação talvez não se contemplem todas as casas habitadas por escravos, porque tendo se procedido às indagações de forma que tais indivíduos não pressentissem; e sendo [ilegível] extensa a cidade impossível era conseguir completa exatidão.” (GMP, Relação de casas habitadas por escravos e libertos de 1835).

Dos cativos que aparecem na documentação como moradores, contabilizamos 65 homens e 42 mulheres. Destes 28 residiam sozinhos (14 homens e 14 mulheres), enquanto 79 (51 homens e 28 mulheres) compartilhavam a moradia com outros escravos, que podia abrigar até seis escravos, como a “casa n° 18, localizada na Fonte das Pedras em que habitavam Úrsula, Delfina, Luís, Antonio Carapina, Antonio e Thereza”. (GMP, Relação de casas habitadas por escravos e libertos de 1835).

Nas casas habitadas por duas pessoas, em apenas 2 os moradores são de sexo diferente, o que segundo Siqueira (2005, p. 39) indica a “possibilidade de constituírem uma família no sentido tradicional dessa palavra”. São eles: “Francisco, escravo de Antonio Joze de Sousa e Leocardia, que moravam na Rua da Paz, defronte do muro do Carmo” e Bernardo, escravo de Manoel Henrique da Silva e Antonia, escrava de Lusia de tal, que residiam na rua do Açougue”. (GMP, Relação de casas habitadas por escravos e libertos de 1835).

É provável que o grande quantitativo de escravos identificados, residindo juntos na mesma habitação, encontrava justificativa na diminuição dos custos com o pagamento do aluguel. Assim, poderiam viver longe do olhar senhorial e dividir as despesas com outros companheiros, além de demonstrar a sociabilidade existente entre esses grupos que se uniam em busca de um local para residirem, consolidando laços de convivência e solidariedade.

As moradias escravas, como já citado no Capítulo 2, se localizavam nas áreas onde as atividades comerciais eram mais intensas. Os espaços das ruas, praças, becos e fontes

que abrigavam tais casas tornaram-se ponto de encontro de escravos e libertos que muitas vezes extrapolavam o espaço particular e tomavam o espaço público em seus batuques e festins. Além de servirem como morada, eram utilizadas também para lazer e divertimento, conforme já vimos anteriormente.

De acordo com Chalhoub (1996, p. 28), a proliferação das moradias escravas acabou se tornando, a longo prazo, “um importante elemento desagregador da instituição da escravidão na Corte”, isto porque,

Se o cativeiro se define como uma relação de sujeição e dependência pessoal, é razoável supor que uma pessoa que tenha autonomia de decisão quanto à moradia e aos seus meios de sustento não esteja sob domínio de nenhum senhor. Torna-se claro, então, que escravos vivendo “sobre si” contribuíssem para falência de significados sociais essenciais à continuidade da instituição da escravidão. Os negros pressionavam para conseguir o direito de morar fora das casas dos senhores, pois percebiam tal conquista como um passo, ao menos simbólico, no caminho a liberdade.

Não temos como saber se, ao longo do oitocentos, as casas alugadas por escravos na cidade de São Luís cresceram ou decresceram em termos numéricos (proposta que ultrapassa os limites deste trabalho). Porém, apesar de haver um considerável número de habitações resididas por escravos na década de 1830, isso não influenciou na “desagregação do sistema escravista”36(que ocorreu no final do século XIX); contudo, contribuiu para afrouxar os laços senhoriais existentes, atingindo diretamente um dos pilares básicos do regime escravista, que era a relação senhor-escravo.

Diante do que foi posto, compreendemos as moradias escravas como espaços constituídos por escravos a partir de laços de solidariedade, relações de afetividade, amorosas e familiares, que proporcionaram a resistência individual. O “viver sobre si” se insere no cotidiano da urbe ludovicense como prática que propiciou ganhos diários através da ampliação da sociabilidade, da maior autonomia, constituindo um território próprio para manifestação de sua identidade cultural.