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3 FUGAS E COTIDIANO DA RESISTÊNCIA

3.1 Sobre as fugas na historiografia

Segundo os autores Reis e Gomes (1996, p. 9), em coletânea de artigos sobre quilombos no Brasil, as fugas escravas são apontadas como o “tipo de resistência [...] mais típico da escravidão”, tendo ocorrido em toda a América portuguesa. Há uma concordância geral entre os estudiosos de que a fuga foi um aspecto típico no escravismo e que significava a maneira mais direta de afrontar o poder senhorial, sendo assim, uma das formas mais comuns da resistência.

Apesar de ser uma forma típica de resistência escrava, a historiografia da escravidão no Brasil pouco tinha dado atenção a esta temática. Quando apareciam trabalhos sobre esse assunto, as fugas eram apresentadas, segundo Gomes (2001, p. 3), como “atos repetitivos – quase banalizados – da resistência escrava e, portanto, sem sentido político”. Nessa historiografia os fugitivos eram vistos como sujeitos “inadaptados” ao cativeiro, ou seja, ao regime da escravidão, que sobrecarregados pelo excesso de trabalho, má alimentação e com péssimas condições de vida; procuravam se evadir do controle senhorial, causando assim abalos na renda dos seus proprietários.

Alguns estudos mais contemporâneos destacaram principalmente aspectos ligados ao viés econômico nos processos de fuga, a exemplo do autor Goulart (1972), em obra intitulada “Da fuga ao suicídio: aspectos da rebeldia dos escravos no Brasil”. Goulart (1972, p. 25) argumenta que os “maus tratos e excessivos trabalhos foram, com efeito, as principais causas e razões mais comuns para as fugas de escravos”. Apoiado em relatórios de presidente de província, relatos de viajantes e documentação policial afirmava que a fuga além de causar prejuízo econômico aos proprietários, necessitava ser combatida, uma vez que causava maus exemplos aos escravos não fugitivos. Por sua vez, a repressão às fugas causavam a delinquência e a marginalidade, forçando o foragido a recorrer ao roubo e à vida “fora da lei”. (GOULART, 1972, p. 25).

É fato que vários escravos fugiram após rigorosos castigos, ou mesmo para evita- los, após o cometimento de alguma prática considerada criminosa ou alguma desobediência. Concordamos também que tal prática causou severos prejuízos econômicos ao poder senhorial. Além de perder a mão de obra, os proprietários ainda teriam que despender recursos com anúncios de jornais e recompensas, que eram algumas das medidas utilizadas para quem sabe um dia conseguir êxito e capturar os fugitivos. De modo que, aqueles

escravos que recorreram à fuga “impuseram grandes prejuízos a seus senhores e afrontaram um sistema poderoso, includente, total”. (REIS; SILVA, 1989, p. 62).

Não podemos negar que as fugas tiveram uma dimensão significativa no sentido de minar o poder senhorial e o sistema escravista, causando prejuízos não só econômicos, mas também na lógica das relações escravocratas. Porém, ressaltamos que não podemos generalizar e nem simplificar a respeito das questões que motivaram as escolhas dos fugitivos. Pesquisas historiográficas mais recentes têm trazido novos indícios de como os cativos optaram pela fuga, por exemplo, para reorganizarem suas famílias, restabelecer laços afetivos e de solidariedades, que muitas vezes foram deixados para trás por imposição do cativeiro25.

As fugas não podem ser rotuladas como repetitivas ou cristalizadas como atos de heroísmo de resistência escrava. Aqueles sujeitos que procuravam a fuga, muitas vezes, não escapavam apenas para fugir dos possíveis castigos físicos ou para causar prejuízos financeiros aos seus senhores, a dimensão lógica do cotidiano dos escravos nos aponta que:

Havia muito de política nas decisões de escapar e como se manter protegido, principalmente nas cidades. Fugitivos menos “inadaptados” ao regime escravista, com extenuante carga de trabalho e péssimas condições de vida, redefiniam significados do cativeiro e da liberdade. (GOMES et al., 2006, p. 25).

As fugas significaram muito mais do que prejuízos aos recursos senhoriais. As estratégias adotadas pelos cativos foram variadas e complexas, estavam carregadas de subjetividades, de vontades e desejos. Não era um mero ato de rebeldia, era um campo de possibilidades, existindo, assim, variadas motivações e significações aos escravos, para se lutar pela “ampliação do fragmento de ‘liberdade’” (CARVALHO, 1998, p. 217).

Para alguns observadores e viajantes que passaram pelo Brasil no século XIX, a fuga foi compreendida como a forma mais direta utilizada pelos escravos para responderem à violência do cativeiro e o meio mais viável de buscarem liberdade. Debret (1989, p. 110) acreditava que a “ânsia de fugir é imperiosa entre os negros”. Rugendas (1972, p. 159) defendia que os escravos recorriam à fuga, pois “o amor à liberdade é muito forte no negro”. Ambos os autores “vindos de uma Europa em franco desenvolvimento das relações capitalistas de produção, associavam a liberdade ao trabalho livre, isto é ao assalariamento” (COSTA, 2013, p. 14). Assim, a concepção de fuga difundida por viajantes e observadores que passaram pelo Brasil no período da escravidão estava relacionada a um ideário de

25 O trabalho Reis (1999) destaca a fuga das famílias escravas n a Bahia, observando como esses escravos

liberdade que, em larga medida, não condizia com as mesmas perspectivas de liberdade almejada pelos escravos.

O historiador Carvalho (1998, p. 213), em trabalho que abordou a escravidão no Recife, na primeira metade do século XIX, fez uma importante discussão sobre a compreensão de “liberdade” na perspectiva dos escravizados,

No dia a dia, é comum empregar-se a palavra “liberdade” como se fosse um termo auto-evidente, desligado da experiência histórica das pessoas. Por vezes, esta abordagem resvala para as ciências sociais de tal forma que, quando um estudioso se depara com o caso de algum escravo que fugiu para o mato, é comum considerar que houve então uma fuga para a “liberdade”, como se o fugitivo pudesse se tornar um ser humano “livre”, a partir do momento em que largasse os laços de coerção direta e dependência pessoal com o senhor. É como se a liberdade fosse um dado absoluto, que existe ou não, de forma claramente delimitada. Todavia, basta uma observação mais cautelosa para verificarmos, que isso não é exato.

Para muitos observadores contemporâneos da escravidão, a fuga estava envolvida por um ideário de liberdade que, muitas vezes, não era exatamente aquele que os escravos poderiam ter. Tal compreensão retirava destes sujeitos uma série de outras perspectivas que eram vislumbradas quando se evadiam.

Variadas e complexas foram as motivações dos cativos para optarem pela fuga. Sabemos hoje que muitos fugitivos recorriam as chamadas escapadelas, ou seja, fugas rápidas, que algumas vezes eram oriundas da extrapolação de folgas concedidas pelos senhores. Genovese (1988), ao trabalhar com a escravidão no sul dos Estados Unidos, notou a presença de escapadas eventuais, as quais denominou de petit marronage.

Florentino (2003, p. 109) indicou que muitas fugas eram realizadas por africanos recém-desembarcados no Rio de Janeiro, motivadas menos pela situação de cativo e mais pela sensação de desorientação, causada pelo “impacto inicial do desarraigo, da solidão e subtração da linguagem que na África servia à estruturação do mundo”.

Os autores Reis e Silva (1989, p. 63) partiram do pressuposto de que houve distintos tipos de fugas para, assim, elaborarem uma tipologia, considerando-as, de modo geral, apenas como parte do “complexo negociação/resistência”.

Segundos os autores, existiram as fugas-reivindicatórias, que eram aquelas que não pretendiam um rompimento radical com o sistema, motivadas por desejos de melhores condições de trabalho e vida, forçando os senhores a realizarem concessões; e as fugas- rompimento, que eram caracterizadas pela quebra total da relação senhor-escravo, motivadas principalmente pela quebra de compromissos e acordos anteriormente acertados. Vale

ressaltar que o rompimento na relação senhor- escravo não significava que o fugitivo deixasse de aceitar a escravidão como instituição normal, tendo em vista que vários libertos tornavam- se proprietários de escravos. (REIS; SILVA, 1989).

A compreensão de que vários motivos poderiam levar os escravos a fugirem contribuiu para a reflexão sobre os sentidos múltiplos da resistência escrava, assim, não mais envolvida com o ideário da liberdade como o sentido único da fuga e como fim da escravidão. A historiografia mais recente defende que as fugas escravas poderiam ser originadas por variados fatores, como por exemplo, o descumprimento de acordos por parte dos proprietários. Como nos ilustra os autores da obra “Negociação e Conflito”,

Existem em cada escravo ideias claras, baseadas nos costumes e em conquistas individuais, do que seria, digamos, uma dominação aceitável. As medidas, é claro, baseados nos costumes e em conquistas individuais, do que seria, digamos, uma dominação aceitável. As medidas, é claro, sofrerão variáveis sensíveis, conforme passemos de um africano recém-chegado a um crioulo ou mulato acostumado ao clima da terra. De qualquer maneira, a quebra desse padrão, desse modus vivendi, joga, frequentemente, grandes grupos à decisão de revolta. (REIS; SILVA, 1989, p. 67).

Nessa perspectiva, concordamos com Florentino e Amantino (2012, p. 241) que, apoiados em trabalhos historiográficos hodiernos, defendem que a resistência escrava estava associada à noção de liberdade que não necessariamente rompiam com a legitimidade do regime escravista; “aspirava-se a ser livre por certo, mas o conteúdo dessa liberdade remetia para o ideal de reprodução [...] de trabalhadores que pudessem controlar seu tempo e suas atividades”. Deste modo, as formas de resistirem ao sistema escravista convergiam para ganhos pessoais, ou para familiares, privilégios no trabalho, folgas, o que significava a ampliação do espaço de autonomia dos escravos.

A partir da percepção dos autores Florentino e Amantino (2012, p. 237), para quem a fuga escrava é um “ato extremo no campo da política, cuja simples possibilidade apontava para os limites do domínio privado do senhor e garantia ao escravo algum espaço para a negociação de demandas”, subsidiamos nosso entendimento de que a fuga, independente de sua modalidade ou de sua motivação, causou sérios danos aos proprietários de escravos, levando assim à publicação de anúncios de jornais, ações policiais e processos judiciais, causando sérias preocupações na classe senhorial, porque, justamente, colocava em xeque um dos pilares do escravismo: a dominação pessoal exercida pelo senhor sobre o escravo.