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Retornemos a França nas primeiras décadas do século XIX. Neste período os médicos passam a ter uma preocupação com o surgimento e manutenção do alcoolismo no território francês, apesar deste se manter numa curva estável sem apresentar qualquer crescimento significativo com relação aos cem anos do século anterior. A preocupação com este tipo de problema surge devido ao crescimento assombroso do consumo de bebidas alcoólicas nos países do norte da Europa, sobretudo por conta do clima frio e do menor preço de venda. Conquanto o problema pudesse ser caracterizado geográfica e socialmente, a preocupação médica era de ordem sócio-moral (BIRMAN, 1978). “O alcoolismo era encarado num contexto mais amplo, que englobava a vida de um indivíduo tanto naquilo que o precedia, quanto nas consequências sócio-morais que acarretava” (IDEM, p. 301).

Os médicos admitem que o alcoolismo em parte era fisiologicamente determinado, o que dificultava a possibilidade do indivíduo se autocorrigir, mesmo se tivesse vontade para tal. A determinação fisiológica estava relacionada as más condições de vida das camadas mais baixas da população e aos indigentes em particular, ambas mal alimentadas. A fome provocava um mal-estar corporal que era combatido e apagado com o uso de bebidas alcoólicas. Por conta deste mecanismo, o fenômeno do alcoolismo se concentrava nestas camadas da população, enquanto que nas camadas melhores alimentadas predominava a “sobriedade”. Se a gênese social era colocada no nível da caracterização fisiológica, as consequências desta gênese repercutiam no funcionamento das instituições. O alcoolismo se tornou um objeto de preocupação médica generalizada ao ser apontado pelos próprios médicos como o principal responsável pelos delitos e desordens a que os operários eram

sujeitos, bem como uma das causas mais relevantes de “depravação” entre os indigentes (BIRMAN, 1978).

Portanto, o distúrbio moral e a demanda de uma moralização sobre o alcoolismo, não se colocava para a Medicina do ponto de vista de uma doença ou de um conjunto de doenças que produzissem lesões ou desregulações funcionais. Eram fundamentalmente os aspectos morais que se colocavam, representando a doença um dos itens desta desordem moral e um indicador da mesma. A diminuição da saúde seria um dos elementos da “degradação” global da moralidade, e a análise dos componentes produtores desta “degradação” nos revela nitidamente. (BIRMAN, 1978, 303).

Encontramos entre os componentes de degradação da moralidade por conta do alcoolismo itens como a preguiça, a jogatina, a falta de compromisso e falta de atenção com a família, a dificuldade de poupar dinheiro, entre outros que acarretariam na corrupção dos costumes e “degradação” da sociedade impulsionando ao crime em amplo sentido. Desta forma, o alcoolismo representa uma ameaça para o sistema normativo e intervir sobre ele significava a prevenção moral para os indivíduos e para a sociedade. O enquadre moral da etiologia foi determinante para que variadas táticas voltadas para a normalização da moral em diferentes escalas do espaço social entrassem em curso. A família, a indústria, a escola e o estado foram instituições medicalizadas como forma de atuar na cadeia etiológica do alcoolismo e assim preveni-lo (BIRMAN, 1978). Entretanto, havia uma maior preocupação com as crianças e os jovens, “base das gerações futuras, que deveriam ser cuidadosamente formados do ponto de vista normativo, recaindo neles de modo direto ou indireto todo o projeto de prevenção moral” (IDEM, p. 309 e 310).

A psiquiatria ocupava um lugar estratégico neste amplo ato Médico de intervenção no espaço social para moralizar o alcoolismo. Ela oferecia sua linguagem e seu saber para a validação teórica desta moralização, assim como também intervia diretamente no lidar com os alcoolistas inveterados, ou seja, aqueles que estavam ligados ao “vício” por tempo prolongado em suas vidas, incorrendo num uso contumaz de bebida por não resistir a um impulso interior. A intervenção psiquiátrica junto a este grupo se dava através da determinação de limiares que precisavam ser alcançados por este impulso interior. O impulso era considerado patológico quando abalava o sistema normativo, isto é, o impulso era

considerado de um alcoolista alienado quando tinha como consequência o descumprimento de regras sociais (BIRMAN, 1978). “A intensidade de algo que se dava no espaço interno era estabelecida em função de seus efeitos no espaço externo” (IDEM, p. 310).

Examinando este campo dos impulsos considerados patológicos por suas consequências morais, Joel Birman (1978) destaca que os casos de alcoolismo que de algum modo atacavam o corpo familiar e o corpo social corresponderam a uma grande transgressão da moralidade tornando-se, por causa disso, uma problemática a ser encarada na perspectiva da alienação mental. “O conceito de alienação mental se mostra aqui transparente na ordem de sua construção, tendo as normas como eixo fundamental de elaboração dos seus tipos e de seus limites” (BIRMAN, 1978, p. 311). É por conta desta acentuada fundamentação moral que se havia alguma questão teórica entre médicos desta época que colocava em dúvida a patologização do alcoolismo. A resolução desta questão se dava no campo prático onde o impulso interior incontrolável para beber correspondia a comportamentos que transgrediam o sistema normativo. Esta moralidade também foi determinada pela possibilidade do alcoolista comportar-se agressivamente ou de forma violenta, tornando a ocorrência de violência em estado de bebedeira objeto de preocupação psiquiátrica porque ameaçava o corpo dos outros. “Esta violência caracterizada por seus efeitos no espaço externo, passava então a ser construída como objeto patológico” (IBIDEM, p. 312). Deste modo, tendo a prevenção de periculosidade como fio condutor, a medicina e a psiquiatria interviram em diversos níveis sociais, realizando operações de higiene moral através da instituição de normas para regulação e controle do alcoolismo.

1.5 Considerações sobre o alcoolismo e a constituição da psiquiatria no