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Dentre tantos temas que imbricam num contínuo os saberes médicos e as humanidades, um dos mais complexos é o consumo de substâncias psicoativas (SPA), chamadas comumente de “drogas”. Desde a pré-história até os dias de hoje, pessoas de diferentes culturas têm aprendido a usar plantas, substratos vegetais e substâncias de origem animal para produzir estados alterados de consciência com os mais diferentes e variados propósitos (MACRAE, 2001). Pode-se dizer que ao longo da história as drogas tiveram três principais propósitos de uso: religioso, recreativo e médico. Dentre eles, destacaremos o uso médico que, por sua vez, remonta aos tempos mais antigos. Um tratado médico chinês escrito no século I, cujas informações remontam 3.000 anos, afirma que “o cânhamo tomado em excesso faz ver monstros, mas se utilizado por um longo tempo permite a comunicação com os espíritos e o alívio do corpo” (ESCOHOTADO, 1994, p. 6). No século XI, eclesiásticos que retornaram das cruzadas na Terra Santa mostram-se positivamente surpresos com a eficácia dos médicos árabes, apontando-os como generosos dispensadores de drogas psicoativas. No século XIV o uso de ópio como um anestésico já estava bastante difundido entre os médicos hipocráticos e seguia se difundindo por toda Europa como a panaceia terapêutica do Ocidente. Entretanto, o período de caça às bruxas tornou o uso de SPA inseguro e ainda havia perigos que cercavam o uso destas substâncias, pois qualquer indivíduo que não tivesse o devido respaldo para usá-las poderia ser processado, torturado ou mesmo queimado vivo. Assim, tornava-se necessário estabelecer uma demarcação entre farmacologia e magia que permitisse criar um tipo de comércio, distinto do popular, a nível universitário, que fosse capaz de suportar as ameaças do inquisidor, o que, por sua vez, colaborou para a normalização da formação médica e, por conseguinte, na sua conformação como um saber científico (ESCOHATADO, 1994).

Na renascença Copérnico, Galileu, Bacon e Descartes foram alguns dos grandes filósofos que contribuíram para uma grande revolução científica e cosmológica que, em linhas gerais, trazia uma compreensão do mundo em termos lógicos, racionais, o mundo passa a ser visto como um grande mecanismo. Essa nova forma de enxergar o mundo se estende a medicina, nessa época a anatomia-fisiológica começa a se tornar base do saber biomédico. Vesalius é o primeiro a dissecar corpos humanos em público, até então os corpos

humanos eram sagrados e invioláveis. Esta mudança torna-se possível por conta de uma profunda transformação nas concepções e práticas europeias a respeito do que são o “corpo humano” e a “pessoa humana”. “Pois foi necessário “fechar” simbolicamente o corpo em plano que não o da “pessoa” para que ele pudesse ser “aberto” de modo a expor suas entranhas” (VARGAS, 2008, p. 57). A dissecação de corpos possibilitou a análise dos tecidos e superação da concepção das doenças e tratamentos em termos “mágicos”, ou seja, como resultantes de causas naturais (VARGAS, 2008).

Este novo ambiente possibilitou o uso de diferentes substâncias no processo de tratamento que ganha nova e especial importância provocando outra mudança decisiva para as teorias médicas e práticas terapêuticas, a introdução da alquimia, isto é, da química, na medicina. Os europeus foram em busca das práticas alquímicas no Oriente, mais precisamente com os árabes. Sem dúvidas, Paracelso é quem produz o matrimonio entre terapêutica e química tornando-se o grande expoente destas práticas na Europa (ESCOHOTADO, 1994; e VARGAS, 2008).

Para Paracelso, as doenças não resultam do desequilíbrio dos humores ou fluidos corporais, não devendo, portanto, ser tratadas mediante dieta, sangrias e purgas; segundo ele, as doenças constituíam “entidades” (ens) que deviam ser tratadas mediante o emprego de substâncias químicas. Ele postulava ainda que todas as substâncias da natureza podiam exercer influências positivas (e constituir-se, nesse caso, como essentia) ou negativas (e tornar-se, nesse caso, venena), sendo a diferença entre essentia e venena, basicamente, uma questão de dose, já dosis sola facit venenum. (VARGAS, 2008, p. 45).

No curso do desenvolvimento da medicina ocidental e do aperfeiçoamento das práticas terapêuticas não foi a elaboração de melhores teorias médicas que se constituiu como ponto decisivo na arte de curar, mas dois fenômenos foram determinantes para tal, o que Foucault (1980) chamou de “nascimento da clínica”, gestado na conexão entre anatomia patológica e a já antiga experiência clínica, resultando em uma nova estrutura de entendimento dos fenômenos de adoecimento; e a introdução nas práticas médicas de substâncias “puras” produzidas pela química de síntese. “Até o século XIX, a produção de substâncias de uso terapêutico envolvia o emprego quer de plantas inteiras, frescas ou secas, quer de produtos caracterizados pela mistura de uma impressionante variedade de

substâncias, como tinturas e as ancestrais triagas.” (VARGAS, 2008, p. 49). O século XIX marca uma nova era na arte de curar através do isolamento do princípio ativo de diversas substâncias – a morfina (1806), a codeína (1832), a atropina (1833), a cafeína (1841), a cocaína (1860), a heroína (1883), a mescalina (1896), e os barbitúricos (1903). Os novos fármacos produzidos a partir deste processo eram mais puros e de manejo mais fácil que as plantas das quais eram extraídos, já que suas dosagens podiam ser calculadas com maior exatidão. Isso provoca uma drástica mudança na capacidade de intervenção terapêutica da medicina. Contudo, as últimas décadas deste século também são marcadas por uma feroz batalha de médicos e farmacêuticos contra curandeiros e herboristas, cujo o principal objetivo era consolidar um monopólio dos primeiros sobre as drogas (ESCOHOTADO 1994). O que estava em disputa era a legitimação dos poderes de quem poderia fabricar e vender e de quem poderia prescrever e aplicar as drogas.

Apesar da introdução de novas drogas nas práticas terapêuticas, uma questão permanecia em aberto, quais seriam mesmo seus mecanismos de ação e de eficácia? Mais uma vez os aportes consignados a químicas foram fundamentais, os estudos conduzidos por Louis Pasteur e Robert Koch possibilitaram a descoberta das “causas primárias” das doenças contagiosas, que são as propriedades toxicogênicas dos micróbios. Outro salto foi dado por Paul Ehrlich que por meio da química procurou “substâncias que tivessem afinidades específicas com determinado parasita e suas toxinas” (CANGUILHEM apud VARGAS, 2008, p. 50). Ehrlich nomeou esses compostos químicos de “balas mágicas” lançando as bases para a quimioterapia. Contudo, mesmo com os resultados práticos relativamente imediatos da seroterapia, anti-sepsia, quimioterapia, “(...) a inovação mais importante foi, certamente, a elaboração de antibióticos a partir das décadas de 1930, quando se iniciou a produção laboratorial de sulfanilamidas, e de 1940, quando se iniciou a produção industrial de penicilinas” (VARGAS, 2008, p. 51).

Durante todo século XX, a produção de drogas medicamentosas aumentou de modo quase que ininterrupto. A proliferação de fármacos e sua introdução na terapêutica foi premente no desenvolvimento da biotecnologia e da medicina experimental, esta última não se separa do desenvolvimento das sociedades científicas e industriais. Tais acontecimentos são parte de um processo mais amplo e contemporâneo ao desenvolvimento do capitalismo em fins do século XVIII e início do século XIX, a medicalização dos corpos e da vida. O

referido processo contribuiu para garantir uma maior expectativa de vida de milhões de pessoas, mas também teve seus efeitos iatrogênicos, a exemplo do uso desenfreado de fármacos que tem efeitos colaterais deletérios. O aumento do grau de pureza dos medicamentos e a intensificação de seu uso potencializaram seus efeitos secundários não desejados. A preocupação com a segurança dos medicamentos é recente embora efeitos inesperados ou danosos de remédios quimicamente produzidos tenham sido observados desde sua introdução no início do século XIX. Como exemplo disso, Eduardo Vargas (2008) chama atenção para um caso especial, a talidomida, cujos efeitos nocivos de seu consumo, quando percebidos, foram fundamentais para a consolidação da preocupação pública com o problema da segurança dos fármacos (VARGAS, 2008).

É na passagem para a sociedade urbano-industrial que surge no Ocidente o proibicionismo como “uma prática moral e política que defende que o Estado deve, por meio de leis próprias, proibir determinadas substâncias e reprimir seu consumo e comercialização” (RODRIGUES, 2008, p. 91), em pouco tempo o proibicionismo tomou forma de uma doutrina legal para tratar a questão das “drogas” difundindo-se a nível mundial. O processo de constituição do proibicionismo contou com a crescente influência da medicina científica, que se atribuiu o direito de definir os usos legítimos e ilegítimos de drogas a partir de conceitos baseados principalmente na natureza farmacológica destas substâncias, respaldando, assim, leis e políticas públicas adotadas pelos estados sobre o assunto. Foram nominalmente os saberes médico-farmacológicos os mais acionados para dar chancela e respaldo científico a leis e políticas de repressão em diversos países (ESCOHOTADO, 1994; RODRIGUES, 2008; VARGAS, 2008; e MARTINS & MACRAE, 2010).

A tônica destas políticas é marcada pela distinção entre drogas e fármacos e pela repressão a todas as formas de uso não médico de praticamente todas as drogas rotuladas como psicoativas, com as notórias, apesar de controversas, exceções do álcool etílico e do tabaco” (...). Não é à toa que a criminalização de certo conjunto (de usos) de substâncias se deu em conjunção com a invasão farmacêutica e com o crescimento da importância social das atividades biomédicas. Também não é à toa que a restrição do sentido do vocábulo drogas tenha sido contemporânea desses processos (VARGAS, 2008, p. 54).

Vargas (2008) aponta para algo que nos parece relevante, um duplo fundamento (médico e jurídico) das políticas de repressão em torno das drogas ilícitas que por um lado endurece as medidas de repressão em torno da produção e do tráfico de drogas e, por outro, oferece como alternativa para tratar do problema medidas de saúde pública, “cadeia para produtores e traficantes, clínicas de tratamento para usuários” (p. 55). A Convenção Única de Nova Iorque, em 1961, é um bom exemplo de explicitação deste duplo fundamento, pois entre as medidas propostas estão a classificação de drogas psicoativas segundo suas propriedades farmacológicas, medidas de controle, fiscalização e repressão contra o tráfico, bem como medidas de tratamento. Não por acaso ao assistirmos atualmente o crescente questionamento quanto a ineficácia das medidas de repressão em reduzir o tráfico de drogas, as medidas oficiais tendem a não tratar a questão como sendo tanto e apenas da alçada jurídica, mas, também da alçada da saúde pública.

O controle e regulamentação do uso de drogas foi parte fundamental da consolidação da autoridade médica no século XIX e princípio do XX, período em que se cristaliza no Ocidente quais são os usos legítimos (pois baseados na ciência médica ocidental) e quais são ilegítimos (práticas tradicionais ou que escapassem, de algum modo, aos cânones médicos). Quando o Estado entra nesse debate, a fixação de leis define o ‘cientificamente legítimo’ como legal e o ‘cientificamente ilegítimo’ como ilegal. Num momento subsequente, a regulamentação sobre o uso de drogas complementa esse percurso ao estabelecer regras para produção, rotulagem e elaboração de listas de drogas que poderiam ser receitadas pela medicina chancelada pelo Estado (RODRIGUES, 2008, p. 97).