• Nenhum resultado encontrado

Alencar e a literatura nacional – como e porque o romance.

2.4 Alencar e a literatura nacional – a eleição do romance.

2.4.2 Alencar e a literatura nacional – como e porque o romance.

Além de político, advogado, panfletário e jornalista, Alencar mostrou-se multifacetado também na atuação como escritor: produziu artigos de crítica literária, atuou como folhetinista, escreveu peças teatrais e poemas. Apesar do sucesso dos folhetins semanais intitulados Ao

Correr da Pena243 e de algumas de suas peças, o autor dedicou-se com mais afinco à produção

romanesca, a qual o consagrou como escritor. Seus textos críticos, em geral, apontam para o romance como gênero em que ele pretendia consolidar seu projeto literário.

Recuperar a noção de romance que fundamentava suas produções permite perceber o modo como ele acreditava que os elementos que compunham a “cor local” brasileira deveriam ser incluídos nos textos que se pretendessem genuinamente nacionais.

Muitas dessas considerações estão presentes na autobiografia literária Como e Porque Sou

Romancista (1873), a qual é definida por ele como “rascunho de um capítulo” em que pretende

referir “as circunstâncias a que atribu[i] a predileção de [seu] espírito pela forma literária do romance”244. De fato, o texto faz justiça ao título e constitui um relato em que aborda o

contato com o romance ao longo de praticamente toda sua vida, trazendo pistas valiosas a respeito da noção de romance que fundamentava sua produção em prosa.

Segundo Alencar, o contato com o gênero romanesco iniciou-se logo na infância, quando em sua casa ganhou o posto de “ledor”. A leitura reiterada das obras do pequeno “repertório romântico” da biblioteca familiar é apontada por ele como possível influência:

Esta mesma escassez, e a necessidade de reler uma e muitas vezes o mesmo romance, quiçá contribuiu para mais gravar em meu espírito os moldes dessa estrutura literária, que mais tarde deviam servir aos informes esboços do novel escritor.

243 Sobre esses folhetins, conferir: SOUZA, Silvia Cristina Maria de. “Ao Correr da Pena: uma leitura dos folhetins de José de Alencar.” In: CHALHOUB e PEREIRA (orgs.). A História Contada. Op. Cit., pp. 123-143. Eduardo Vieira MARTINS também aborda esses textos: A Fonte Subterrânea. Tese de Doutorado. Campinas: UNICAMP/IEL, 2003. Capítulo II.

Mas não tivesse eu herdado de minha santa mãe a imaginação de que o mundo apenas vê as flores, desbotadas embora, e de que eu somente sinto a chama incessante, e essa leitura de novelas mal teria feito de mim um mecânico literário, desses que escrevem presepes em vez de romances.245

Atrelada à interiorização da estrutura romanesca está a imaginação, apontada pelo autor como requisito importante para a escrita de romances. A mudança para São Paulo possibilitou- lhe o contato com obras de escritores como Balzac, Alexandre Dumas, Alfredo de Vigny, Chateaubriand e Victor Hugo, leituras que se somaram às primeiras impressões acerca do gênero, que se elevou a seus olhos:

A escola francesa, que eu então estudava nesses mestres da moderna literatura, achava-me preparado para ela. O molde do romance, qual mo havia revelado por mera casualidade aquele arrojo de criança a tecer uma novela com os fios de uma ventura real, fui encontrá-lo fundido com a elegância e beleza que jamais lhe poderia dar. [...]

O romance, como eu agora o admirava, poema da vida real, me aparecia na altura dessas criações sublimes que a Providência só concede aos semideuses do pensamento, e que os simples mortais não podem ousar, pois arriscam-se a derreter-lhes o sol, como a Ícaro, as penas de cisne grudadas com cera.246

A noção de que o romance deveria ser “tecido” com os “fios de uma ventura real” fica fortalecida com a leitura dos “mestres da moderna literatura” e o gênero passa a ser definido por ele como “poema da vida real”. Essa noção parece cara a Alencar, que em vários momentos aborda a relação entre literatura e realidade.

Um dos textos em que essa relação fica explícita data de 1859, quando da primeira edição de As Asas de Um Anjo. Ao texto ficcional, o autor somou uma “Advertência” e um texto publicado por ele no ano anterior no Diário do Rio de Janeiro, quando a mencionada peça não pôde mais ser encenada por intervenção da polícia247. Apesar de abordarem mais

detidamente questões relativas ao gênero dramático, em muitos momentos esses textos mencionam o romance e discutem questões amplas de literatura, a qual é definida como representação da realidade:

A realidade, ou melhor, a naturalidade, a reprodução da natureza e da vida social no romance e na comédia, não a considero uma escola ou um sistema; mas o único elemento da literatura: a sua alma. O servilismo do espírito eivado pela imitação clássica ou estrangeira, e os delírios da imaginação tomada do louco desejo de inovar, são aberrações passageiras; desvairada um

245 ALENCAR, Como e Porque... Op. Cit., pp. 31/32. 246 ALENCAR, Como e Porque... Op. Cit., pp. 43/44.

247 A peça havia tido licença do Conservatório Dramático e da Polícia para ser encenada. Depois de haver sido apresentada algumas vezes, foi interditada pela polícia.

momento, a literatura volta, trazida por força irresistível, ao belo, que é a verdade. Se disseram que alguma vez copiam-se da natureza e da vida cenas repulsivas, que a decência, o gosto e a delicadeza não toleram, concordo. Mas aí o defeito não está na literatura, e sim no literato; não é a arte que renega do belo; é o artista, que não soube dar ao quadro esses toques divinos que doiram as trevas mais espessas da corrupção e da miséria.248

O autor explicita a concepção de que reproduzir a natureza e a vida social constitui a alma da literatura nas formas romanesca e dramática. As produções baseadas na imitação dos clássicos seriam um momento de desvario da literatura que irresistivelmente voltava a tematizar o belo, que seria a verdade, ou seja, o real. Assim, a literatura colonial fora uma “aberração passageira” e a busca dos seus contemporâneos por tematizar a realidade nacional equivalia à busca do verdadeiro conceito de belo. Esta noção é reiterada em “Benção Paterna”, prefácio da obra Sonhos D’Ouro (1872), em que estabelece a sinonimia entre escrever romances e “tirar fotografias da sociedade”.249

Apesar de reiterar em seus textos a noção de literatura como representação da realidade, Alencar procura esclarecer que essa representação não tirava do escritor a possibilidade de elaboração artística de acordo com sua imaginação e com as necessidades expressivas da arte. Note-se que, no fragmento anteriormente citado, ele considera que a inclusão de cenas repulsivas nos textos não revelava um defeito do gênero, mas do literato, que não soubera usar os dons artísticos e torná-las aceitáveis. Assim, ele postula que reproduzir a realidade nos textos ficcionais não equivalia a copiá-la fielmente, mas a tomá-la como base e dar-lhe “toques divinos”, resguardando, assim, o espaço de atuação/criação do escritor.

A liberdade de criação no modo de lidar com a realidade também é assegurada por ele quando aborda a maneira pela qual os fatos históricos deveriam ser trabalhados no texto. Nas “Cartas Sobre A Confederação dos Tamoios” essa noção é insinuada, pois uma das censuras de Alencar a Gonçalves de Magalhães refere-se à “nudez cronística” com que apresentou a vida dos indígenas250. Essas considerações aparecem mais nítidas em “O Teatro Brasileiro” (1875),

texto escrito a propósito de O Jesuíta:

Para mim essa escola que falseia a história, que adultera a verdade dos fatos, e faz dos homens do passado manequins de fantasia, deve ser banida.

248 ALENCAR, José de. “Advertência” a As Asas de um Anjo. In: COUTINHO, Afrânio. Caminhos do Pensamento

Crítico. Rio de Janeiro: Pallas; Brasília: INL, 1980, p. 105.

249 ALENCAR, José de. “Benção Paterna” – Prefácio a Sonhos D’Ouro. Obra Completa, Vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1958, p. 699.

250 ALENCAR, José de. “Cartas Sobre A Confederação dos Tamoios”. Obra Completa, Vol. IV. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1960, p. 893.

O domínio da arte na história é a penumbra em que esta deixou os acontecimentos, e da qual a imaginação esurge por uma admirável intuição, por uma como exumação do pretérito, a imagem da sociedade extinta. Só aí é que a arte pode criar; e que o poeta tem direito de inventar; mas o fato autêntico, não se altera sem mentir à história.251

O escritor deveria tomar como base a história e ser totalmente fiel a ela, incluindo nas obras o “fato autêntico”. Entretanto, o preenchimento das lacunas deixadas pela história a respeito das personagens e dos acontecimentos era “domínio da arte”, cabendo ao autor utilizar sua imaginação para compor uma “imagem da sociedade extinta”. Essa liberdade artística, porém, deveria ser utilizada seguindo um propósito específico: exaltar o passado nacional. Para ele, era impróprio “arrancar do pó [os] bustos nacionais para amesquinhá-los e fazê-los descer do pedestal em que a nossa história os colocou.”252

A concepção de que o artista deveria trabalhar a realidade ao transpô-la para seus textos aparece também quando ele tenta defender a verossimilhança e o caráter nacional de algumas de suas obras. Em “Os Sonhos D’Ouro”, texto em que defende os protagonistas do romance de mesmo nome da acusação de “estrangeiros”, ele aponta a existência de vários habitantes da corte com as características das personagens Guida e Ricardo. Essa defesa está atrelada à sua noção de romance de costumes:

No romance de costumes, e não sei se os Sonhos D’Ouro podem levar tão alto suas pretensões, nem tôdas as personagens são tipos, nem tôdas figuram na “comédia social”, de que o autor aproveita um ato ou um trecho.

As principais na grande parte dos casos são atôres no drama, que forma o esqueleto do livro, e lhe tecem o enrêdo, fibra vital dessa espécie de obra cujo fim é antes de tudo o conto, a fábula, que prende o espírito e o deleita.253

Para ele, o romance de costumes tem como espinha dorsal o enredo, que deve ser uma fabulação com objetivo maior de deleitar o leitor; por isso, pode incluir personagens que não encontrem uma correspondência imediata com o real e não sejam “tipos”:

A diferença entre um tipo de um caráter não careço de a determinar, pois não a ignora o ilustrado crítico. O tipo é moral; o caráter é psicológico. Êste só contraste basta: dá-nos ela

251 ALENCAR, José de. “O Teatro Brasileiro – A Propósito de O Jesuíta”. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A

Polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. 2.ª Edição, pp. 28/29. Esse texto também pode

ser encontrado no Volume IV da Obra Completa.

252 ALENCAR, “Cartas Sobre A Confederação dos Tamoios”. Op. Cit., p. 893.

253 ALENCAR, José de. “Os Sonhos D’Ouro”. Obra Completa, Vol. IV, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1960, p. 938.

outra importante aferição. O tipo forma-se exteriormente pelo molde social; e o caráter é uma criação espontânea, que se produz internamente pelas modalidades da consciência.254

Nesse sentido, Guida e Ricardo seriam “caracteres” e não “tipos” propriamente: têm características baseadas na realidade social carioca em que se passa o enredo, como a vida que levam, a classe social a que pertencem, mas a personalidade delas, seu aspecto moral, o modo como olham para si e para a realidade à sua volta, são parte do “caráter”, o qual é criado pelo escritor. Nesse sentido, Alencar prevê também um espaço para a criação artística, defendendo a liberdade de o romancista, com base na realidade, criar personagens com personalidades próprias.

A forma de criar as personagens e moldá-las com base na realidade mas também utilizando-se da liberdade de criação é retomada na “Carta a D. Paula de Almeida”, texto em que Alencar, utilizando o pseudônimo de “Elisa do Vale”, responde às considerações relativas ao romance Senhora (1875), veiculadas no Jornal do Commércio na forma de “duas espirituosas cartas assinadas com o nome feminino de Paula”. Além de defender a construção das personagens apontando sua correspondência com a realidade255, o texto veicula a noção de

“romance fisiológico”, que teria o atributo de “penetrar no coração de seus personagens”, algo que poderia ser feito de duas formas:

Há duas maneiras de estudar a alma; uma dramática, à semelhança de Shakespeare; outra fisiológica, usada por Balzac. O romancista dispõe de ambas; mas deve, sempre que possa, dar preferência à primeira, e fazer que seus personagens se desenhem a si mesmos no correr da ação.256

Segundo o autor, as personalidades de Aurélia e de Seixas haviam sido desenhadas segundo a forma “dramática”, algo que eximia o narrador de explicitar suas características, que deviam ser percebidas pelo leitor ao longo da leitura. Insinua, então, que a suposta Paula de Almeida não havia percebido alguns atributos dessas personagens e, por isso, equivocou-se quando as considerou inverossímeis.

Podemos dizer, com base nessas considerações, que Alencar defendia a liberdade do escritor na criação de suas personagens, as quais seriam tecidas com base na realidade, mas

254 ALENCAR, José de. “Os Sonhos D’Ouro”. Op. Cit., p. 938.

255 “Seixas é uma fotografia; eu conheço vinte originais dessa cópia. A sociedade atual gera aos pares dêsses homens

de cera, elegantes, simpáticos e banais, que se moldam a tôdas as situações da vida artificial dos salões.”

(ALENCAR, José de. “Carta a D. Paula de Almeida” – Nota ao romance Senhora. Obra Completa, Vol. I. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958, p. 1211.)

teriam seu caráter desenhado pelo romance. Nesse sentido, a verossimilhança das personagens seria assegurada não só pela possibilidade de elas se assemelharem a pessoas reais, mas também pelas circunstâncias de sua vida e pelos traços de sua personalidade, os quais são criação do escritor.

Assim podemos dizer que a noção de literatura como representação da realidade veiculada pelo autor ao longo dos seus textos não implica a exclusão da liberdade do escritor ao trabalhar essa realidade em seus textos. A eleição do romance como gênero em que realizaria seu projeto literário pode ser justificada pelo fato de que possui peculiaridades que asseguram com plenitude o exercício da liberdade artística:

A grande superioridade dessa forma literária penso eu que provém de sua natureza complexa; ela abrange em si o drama, a narrativa e a descrição. Da combinação dos três elementos nasce o romance.257

Concentrando em si as possibilidades criativas do drama, da narrativa e da descrição, o romance concedia múltiplas opções ao escritor, ampliando sua possibilidade de utilizar a imaginação. Por ser um gênero multifacetado, ele era o mais adequado para incluir a “cor local” brasileira, visto que as obras nacionais, a seu ver, deveriam deixar transparecer todas as facetas da realidade nacional. Tratando-se de uma personalidade como José de Alencar, que atuou como político, jornalista e advogado, podemos pensar que essa natureza complexa do romance possibilitava também a inclusão de convicções pessoais na representação da realidade que veicularia em suas obras.