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O século XIX brasileiro foi marcado por inúmeras mudanças nos planos intelectual e artístico, as quais estiveram bastante ligadas às alterações políticas e sociais. Logo no primeiro decênio, com a transferência da corte de D. João VI para a colônia em 1808, a atividade intelectual ganhou um impulso significativo graças ao deslocamento da máquina administrativa da metrópole para a colônia. Isso porque, juntamente com a implantação de aparatos administrativos e de uma agenda de festas, também vieram a imprensa, a instalação de bibliotecas, academias literárias e científicas, teatros e facilitou-se a circulação de livros.121

Alguns anos mais tarde, outro acontecimento político daria impulso à atividade intelectual brasileira: a independência, em 1822. No que se refere à literatura, em particular, podemos considerar a avaliação de uma voz da época para imaginar o impacto desse acontecimento:

121 “A vinda da família real deslocou definitivamente o eixo da vida administrativa da Colônia para o Rio de Janeiro, mudando também a fisionomia da cidade. Entre outros aspectos, esboçou-se aí uma vida cultural. O acesso aos livros e a uma relativa circulação de idéias foram marcas distintivas do período. Em setembro de 1808, veio a público o primeiro jornal editado na Colônia; abriram-se também teatros, bibliotecas, academias literárias e científicas, para atender aos requisitos da corte e de uma população urbana em rápida expansão.” (FAUSTO, Boris. História do Brasil. Editora da Universidade de São Paulo; Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1995, pp. 125/126)

Mas, lá surgem no horizonte os primeiros albores da aurora da liberdade, e com ela entoam-se os cânticos da independência. O mote estava dado: Independência ou morte; era natural que a glosassem em preciosas rimas as imaginações dos poetas e os corações patrióticos.122

A independência política possibilitou que aflorasse o sentimento patriótico e nacionalista dos brasileiros, sentimento este que se manifestou nos âmbitos político, social e, também, cultural. O intuito de contribuir para a efetiva configuração de uma nação independente e de fazê-la caminhar para o progresso como as demais nações povoou o pensamento dos brasileiros em geral, principalmente dos intelectuais da época. Nesse contexto, a literatura ganhou a conotação de elemento que poderia colaborar para o progresso da nação e, também, para a consolidação da independência ideológica e a divulgação de uma imagem civilizada e progressista do Brasil nos âmbitos nacional e internacional. Exemplo disso pode ser tomado no discurso de Álvares de Azevedo, pronunciado em 1849, na comemoração do aniversário da criação dos cursos jurídicos no Brasil:

Perdoai-me, Senhores, se calei-vos as emoções que me desperta o dia das grandes reminiscências, a verdadeira era na nossa Nacionalidade. Perdoai se achei mais digno de vós recordar-vos o brilhantismo do passado e as esperanças do porvir, lembrar-vos a grandeza de vossa missão civilizadora.

[...]

A regeneração literária de nossa terra deve sair do meio de nós. Falange do progresso, não há ficarmos imóveis. Como ao Ahasvero da tradição, uma voz nos brada sempre: - Caminha!123

Como acadêmico, Álvares de Azevedo atribuiu a si e aos demais estudantes de Direito uma “missão civilizadora”, a qual se concretizaria através da dedicação à literatura, mais especificamente à tarefa de efetuar-se a “regeneração literária” do país. A literatura foi, assim, explicitamente considerada um elemento a serviço do progresso da nação ou, em outros termos:

122 FIGUEIRA, Luís Ramos. “Parecer Lido na Sessão do Ensaio Filosófico Paulistano em 10 de junho de 1863 sobre a questão: É justo o título de chefe da literatura brasileira dado ao Sr. Domingos José Gonçalves de Magalhães?.” Revista Mensal do Ensaio Filosófico Paulistano. 14ª série, nº1, maio de 1864. APUD: CASTELLO, José Aderaldo. Textos que Interessam à História do Romantismo. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1963. Vol. II, p. 173.

123 AZEVEDO, Manuel Antônio Álvares de. “Discurso Recitado na Sessão Acadêmica Comemoradora do Aniversário da Criação dos Cursos Jurídicos no Brasil – 14 de agôsto de 1849.” Apud: CASTELLO, José Aderaldo. Textos que Interessam à História do Romantismo. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1959. Vol. I, pp. 104/105.

[...] a literatura foi considerada parcela dum esforço construtivo mais amplo, denotando o intuito de contribuir para a grandeza da nação. Manteve-se durante todo o Romantismo este senso de dever patriótico, que levava os escritores não apenas a cantar a sua terra, mas a considerar as suas obras como contribuição ao progresso. Construir uma “literatura nacional” é afã, quase divisa, proclamada nos documentos do tempo até se tornar enfadonha. [...] tratava-se de construir uma vida intelectual na sua totalidade, para progresso das Luzes e conseqüente grandeza da pátria.124

Podemos dizer que, nesse momento, instaurou-se o desejo de, à semelhança do que representou a independência para o aspecto político do país, chegar-se à autonomia também intelectual através da construção de uma literatura nacional. Essa mudança no modo de os brasileiros conceberem o fazer literário recebeu também influência do ideário romântico. Isso porque muitos dos elementos dessa tendência artística importada da Europa vieram ao encontro das aspirações dos escritores, como a valorização do nacional, o modo de conceber e tematizar a natureza e a possibilidade de afirmar-se a identidade brasileira em relação à antiga metrópole.125

Assim, utilizando-nos da formulação de Candido, podemos assinalar a “felicidade com que as sugestões externas se prestaram à estilização das tendências locais.”126 Aos sentimentos

despertados pela independência política somaram-se os ideais românticos vindos da Europa, ambos configurando-se como os fatores principais que propiciaram uma renovação artística no Brasil do século XIX. Candido acredita que a independência política contribuiu decisivamente para o desenvolvimento da idéia romântica no país.127

Um exemplo significativo da estreita ligação entre a intelectualidade e o programa político de civilizar a nação e encaminhá-la para o progresso pode ser visto na criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, e no vínculo entre ele e o Estado. A

124 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. Vol. II, p. 12.

125 “O romantismo aparecia como o caminho favorável à expressão própria da nação recém-fundada, pois fornecia concepções que permitiam afirmar a universalidade mas também o particularismo, e portanto a identidade, em contraste com a metrópole, mais associada nesse contexto à tradição clássica. O gênero vinha ao encontro, dessa maneira, do desejo de manifestar na literatura uma especificidade do jovem país, em oposição aos cânones legados pela mãe-pátria, sem deixar de lado a feição oficial e palaciana do movimento.” (SCHWARCZ, Lília Moritz. As Barbas do Imperador. Op. Cit., p. 128.)

126 CANDIDO, Antonio. Formação... Op. Cit., p. 15.

127 “A Independência importa de maneira decisiva no desenvolvimento da idéia romântica, para a qual contribuiu pelo menos com três elementos que se podem considerar como redefinição de posições análogas do Arcadismo: (a) desejo de exprimir uma nova ordem de sentimentos, agora reputados de primeiro plano, como o orgulho patriótico, extensão do antigo nativismo; (b) desejo de criar uma literatura independente, diversa, não apenas uma

literatura, de vez que, aparecendo o Classicismo como manifestação do passado colonial, o nacionalismo literário e

a busca de modelos novos, nem clássicos nem portugueses, davam um sentimento de libertação relativamente à mãe-pátria; finalmente, (c) a noção já referida de atividade intelectual não mais apenas como prova de valor do brasileiro e esclarecimento mental do país, mas tarefa patriótica na construção nacional.” (CANDIDO, Antonio.

partir da década de 1840, as relações entre essa instituição e o governo tornaram-se mais estreitas, já que o imperador D. Pedro II tornou-se freqüentador assíduo e incentivador da mesma. Assim, o IHGB, configurando-se como um importante “centro de estudos”, passou a funcionar como “elo” entre os meios oficiais e a vida intelectual, que foi estimulada por essa instituição, a qual abriu espaço para a pesquisa literária.128

O IHGB pretendia fundar a história do país, tomando por base a trajetória de personagens que pudessem ser exaltados como heróis nacionais129. Nesse sentido, a escrita da

história desempenhava um papel específico para a discussão da questão nacional no país: É, portanto, à tarefa de pensar o Brasil segundo os postulados próprios de uma história comprometida com o desvendamento do processo de gênese da Nação que se entregam os letrados reunidos em torno do IHGB. A fisionomia esboçada para a Nação brasileira e que a historiografia do IHGB cuidará de reforçar visa a produzir uma homogeneização da visão de Brasil no interior das elites brasileiras.130

Desvendar a gênese da nação equivalia a, de certa forma, fundá-la levando em conta elementos que viessem ao encontro dos interesses e das aspirações nacionais daquele momento. Assim, a história foi concebida como “meio indispensável para forjar a nacionalidade”.131

Aliada à história, e seguindo os mesmos princípios orientadores da elaboração desta, estava a literatura. Significativo exemplo desse laço foi a atuação de escritores como Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo Porto-Alegre, Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo no IHGB. Ademais, a entrada do imperador no Instituto e o mecenato promovido por ele contribuíram para que o projeto nacionalista romântico ganhasse teor oficial132. O apoio de D.

Pedro II, além de auxiliar na concretização do projeto de renovação literária rumo à nacionalização e na aceitação dessas idéias, certamente contribuiu para que o fazer literário ganhasse a conotação de elemento-chave na construção da nação, de missão patriótica a ser desempenhada pelos escritores brasileiros.

128 SCHWARCZ, Lília Moritz. As Barbas do Imperador. Op. Cit., p. 126. 129 SCHWARCZ, Idem, p. 127.

130 GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional.” In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, Vol. I, 1988, p. 6.

131 GUIMARÃES, Idem, p. 14.

Para que essa tarefa patriótica fosse cumprida satisfatoriamente pelos escritores não

bastava a mera produção de textos literários: exigia-se a confecção de textos que se configurassem como uma literatura nacional. Entretanto, surgiram aí certas dificuldades...

Que se entendia por semelhante coisa? Para uns era a celebração da pátria, para outros o indianismo, para outros, enfim, algo indefinível, mas que nos exprimisse. Ninguém saberia dizer com absoluta precisão; mas todos tinham uma noção aproximada...133

Que elementos utilizar para compor textos que exprimissem a realidade nacional, suas peculiaridades e os sentimentos ligados a ela? Que temperos utilizar para dar às produções literárias um sabor brasileiro? Semelhantes questões povoaram a cabeça da maioria dos intelectuais brasileiros do século XIX. Muitos deles deixaram textos que documentam a recorrência dessas indagações e a busca por respostas satisfatórias. É essa “noção aproximada”, nos termos de Candido, do que seria literatura nacional e de quais seriam os elementos a utilizar para compô-la que tentamos reconstruir com base na leitura de textos críticos de periódicos e de paratextos ficcionais da época e nas considerações de alguns historiadores e teóricos atuais.

Para estabelecer os elementos que caracterizavam uma produção literária como brasileira, os escritores do período analisaram as obras dos autores nacionais precedentes e, de certa forma, historicizaram as produções coloniais na busca de textos que pudessem ser concebidos como nacionais. Nesse contexto, a busca do momento da origem da literatura nacional ganhou outro sentido para os primeiros românticos. Ao rastrearem as produções coloniais e não conseguirem encontrar o momento exato do surgimento do nacionalismo na literatura ou mesmo uma obra que correspondesse plenamente às suas expectativas de texto brasileiro, eles puderam eleger-se fundadores dessa literatura e apresentar suas produções como exemplo de obra nacional.134 Fruto dessa concepção é a imagem da literatura brasileira

133 CANDIDO, Antonio. Formação..., Op. Cit., p. 11.

134 “Em parte, no caso da busca do momento exato da origem de uma literatura com características peculiares no Brasil, não se trata apenas de um desejo de investigação crítica ou de reafirmação do nativismo, mas também de uma espécie de topos de que se servem escritores e historiadores para, diante da dificuldade de remontar com exatidão às tais possíveis raízes ou ao marco de ‘descoberta da realidade ou recuperação de uma posição idealmente pré-portuguesa’, sugerirem a si mesmos e à própria geração como agentes privilegiados dessa retomada ou de uma verdadeira fundação artística da nacionalidade e de uma história da literatura nacional. [...] A pesquisa da origem, no caso desses primeiros românticos brasileiros, significa, então, a busca de um referendum para o próprio ideário artístico. E a possibilidade, em meio a gêneses lineares – em que cor local e nacionalidade são as linhas mestras –, de erigir a própria produção em exemplo de realização, ponto de chegada neste traçado de progressivo abrasileiramento.” (SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é Longe Daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 16/17).

como criança balbuciante a dar os primeiros passos, a qual é bastante recorrente nos textos da época, os quais configuram a literatura nacional como uma jovem ou uma criança em plena infância, mas uma infância peculiar, desvinculada das tendências européias e em contato pleno com a natureza local. 135

Diante da tarefa de criar uma literatura genuinamente nacional, muitos escritores brasileiros do XIX olharam para as obras coloniais buscando indícios nacionalizantes a partir dos quais pudessem eleger os elementos que deveriam incluir em seus textos para dar-lhes um tom brasileiro. Além disso, na falta de textos programáticos nacionais, a maioria desses autores pautou-se nas sugestões de intelectuais estrangeiros que haviam abordado a literatura em língua portuguesa e comentado obras de autores nacionais ou mesmo dos poucos que haviam se pronunciado a respeito da literatura especificamente brasileira.