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Capítulo 2 – As alforrias e o perfil dos libertandos em Porto Alegre (1884 – 1888)

2.3 Condições para a liberdade: os libertandos e os termos de suas alforrias

2.3.1 Alforrias gratuitas

O principal motivo alegado para as cartas de alforrias ditas gratuitas é aquele em que o senhor afirma estar retribuindo os “bons serviços” prestados pelo escravo para que o mesmo goze de sua liberdade “como se de ventre livre nascesse”. O ato é descrito invariavelmente como doação ou concessão, sempre no sentido de enaltecer a supostamente despretensiosa generosidade do senhor. Em 15 de agosto de 1884, auge da campanha abolicionista, Luís José de Sampaio, “por sua livre e espontânea vontade”, libertava sua escrava Amália em retribuição aos bons serviços que ela havia lhe prestado, “para que gozasse imediatamente de sua liberdade como se de ventre livre fosse, sem que por razão alguma pudesse ser novamente chamada a escravidão”.184

Mesmo que a prática da alforria tenha se modificado bastante após 1871, o discurso dos senhores presentes nas cartas de liberdade sugere que os mesmos seguiam tentando utilizá-las como modo de produzir dependentes e, com isso, obter trabalho obediente e leal. Assim, mesmo que uma alforria fosse dita como gratuita, ela poderia ter sido resultado de anos de trabalho para consegui-la. À vezes, a alforria dita “sem ônus ou condição” era registrada (ou seja, oficializada) apenas após cumprimento de condição ou pagamento. Até mesmo quando era explicitado que houve (ou haveria) de fato indenização por parte do libertando, o texto da alforria dizia que a mesma era gratuita (“concedo gratuitamente liberdade a minha escrava Joana com a condição porém de...”).

Do ponto de vista do senhor, anunciar a gratuidade da liberdade parece estar relacionado a sua anuência em relação à liberdade, ao reconhecimento de que o escravo seria merecedor de uma iniciativa tomada voluntariamente por ele, proprietário. A imagem de generosidade – frequentemente reiterada através de anúncios na imprensa local daqueles que libertavam seus escravos, poderia ser vantajosa ao senhor, a quem interessava a gratidão e a continuidade do trabalho do liberto. Ao escravo, contudo, a

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gratuidade de uma alforria consistia na ausência de condições, conforme discutiu-se no capítulo anterior.

Não se pode, contudo, recusar a ideia de que alguns senhores de fato tivessem sincera preocupação com o destino de seus ex-escravos, de modo a prover-lhes alguns recursos ou garantias mínimas para a vida em liberdade. A africana Umbelina, já idosa, recebera a alforria sem ônus ou condição aos 60 anos. Certamente devido à idade avançada, seus senhores deixaram claro que era seu desejo que ela continuasse a morar em sua casa, não com o fim de utilizarem-se de seus serviços, diziam eles, mas de poderem prestar-lhe socorro no que a mesma precisasse, em virtude dos bons serviços por ela prestados.185 Já o testamenteiro da senhora Clara Maria de Oliveira Miranda deveria fazer valer a vontade da finada e entregar, junto à carta de liberdade da cabra Balduína, a quantia de 200$000, além de “meia dúzia de cadeiras das que se acham na sala de jantar, uma mesa pequena, uma marquesa, dois tachos de cobre e o trem de cozinha.” Aos filhos da escrava, Marcilio e Rosa, o testamenteiro deveria depositar em uma instituição de crédito de sua confiança a quantia de 50$000 para cada um. A irmã da falecida senhora resolvera ainda deixar a Balduína algumas roupas e louças de uso de sua senhora.186

É claro que a alforria gratuita era também carregada de expectativas de que, quando liberto, o ex-escravo se tornasse dependente de seu senhor e, se não continuasse a servi-lo, ao menos que lhe devesse respeito e deferência. Ao dar plena liberdade a Reginaldo, João Guilherme Ferreira concedia ao mesmo o direito de continuar a morar em sua chácara, à estrada do Mato Grosso, onde teria agasalho, comida e roupa enquanto existisse.187 Certamente era do interesse do senhor de Reginaldo que o mesmo continuasse a prestar os seus serviços.

A esse respeito, contudo, mesmo em se tratando de um período em que a estratégia de libertação de escravos na província fosse clara em relação à importância da manutenção da força do trabalho dos libertandos, materializada na maioria de alforrias sob prestação de serviços, cabe lembrar a conclusão a que chega Ligia Bellini ao estudar cartas de alforria na Bahia do século XVIII: para a autora, o que é feito por fé ou por amor, e o que é feito por dinheiro ou por interesse, não pode ser separado em polos antagônicos. Pelo contrário, são complementares.188 Se não entendermos como estes

185 APERS – Registro de alforria. 1ºT, L:27, 137f, 16/06/1884. 186 APERS – Registro de alforria. 1ºT, L:28, 34r, 22/01/1885. 187 APERS – Registro de alforria. 3ºT, L:06, 79v, 21/02/1884. 188 BELLINI, Por amor e interesse..., Op. cit. p.85

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aspectos estavam imbricados, então estaremos enxergando os senhores através de um olhar meramente maniqueísta e, certamente, anacrônico.

Conforme vimos, as alforrias ditas gratuitas somam 17% do total de 1.088 libertandos, sendo que as mulheres tiveram uma pequena vantagem sobre os homens. Ao relacionar com a idade, tanto as mulheres quanto os homens mais velhos podem ter tido alguma vantagem ao obtê-las. As mulheres em idade produtiva (entre 11 e 49 anos) eram 92,9%, e é natural que qualquer um dos tipos de alforria se concentrassem nesse grupo (nesse caso, elas obtiveram 34 alforrias sem ônus, ou 87,2% das alforrias desse tipo entre as mulheres). No entanto, se fizermos outro recorte etário, é possível notar algumas diferenças.

De todas as alforriadas de que sabemos a idade, as de até 39 anos são em número de 258 (84,9%), enquanto as que tem 40 anos ou mais são 46 (15,1%). No entanto, das 39 alforrias gratuitas, 14 (35,9%) correspondem a este último grupo de mulheres de mais idade. Já os homens de até 39 anos são 167 (73,2%), e os que tem a partir de 40 anos são 61 (26,3%). Das 30 alforrias gratuitas recebidas por libertandos do sexo masculino, 16 (53,3%) correspondem a este último grupo. Estes números são sugestivo do privilégio que os escravos adultos mais velhos poderiam ter gozado, seja por terem adquiro a confiança de seus senhores ao longo do tempo, ou até por terem tido mais tempo de negociar e compensar o valor de sua alforria.

No caso das mulheres, talvez algumas fossem mães e, além do tempo de serviço, os filhos que pudessem ter gerado à seus senhores poderiam ser motivo de recompensa de uma alforria sem condições. Este pode ser o caso da parda Rita, de 42 anos. Embora não saibamos se ela era mãe e companheira dos outros escravos do Sr. Eugênio Pinto Cardoso Malheiros, ela foi a única alforriada gratuitamente, ao passo que o preto Manoel, 38 anos, o preto Francisco, 35 anos, o pardo Manoel, 15 anos e o preto João, 16 anos foram libertos aqueles dois com a condição de servir respectivamente por três e dois anos, e os dois mais novos, por quatro anos.189

Quanto aos filhos ingênuos das escravas, a dispensa de seus serviços pelos senhores foi integral quando aquelas receberam alforrias gratuitas. Os serviços do pequeno Olavo, de cinco a seis anos, e sua irmã, Maria, de quase um ano de idade, foram dispensados de servir até os 21 anos ao senhor de sua mãe, a parda Isabel, conforme ordenava a Lei de 1871. Isabel recebera a alforria sem ônus ou condição, para que gozasse

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como melhor lhe conviesse.190 Embora sejam poucos os casos de remissão de serviços de ingênuos que pudemos identificar, estes podiam ou não estar vinculados a alforria de sua mãe. Torquato, pardo, de 12 anos, fora alforriado em agosto de 1884. Porém, o fora com a condição de prestar seus serviços por quatro anos ao seu senhor José Corrêa Barbosa ou a seus herdeiros.191 Torquato nascera após a Lei do Ventre Livre; era, portanto, um ingênuo. Como mencionamos anteriormente, o que deveria ser desistência de serviços, foi, em vários casos, registrado como concessão de liberdade. Mesmo que, ao menos por direito, aquelas crianças já tivessem nascido livres.

Outro aspecto que chama a atenção, embora sejam poucos os casos, diz respeito aos africanos. Eles são apenas 23 (10,2%) entre os alforriados de que se conhece o local de procedência. No entanto, 10 (43,5%) deles receberam alforrias gratuitas, sendo 5 mulheres e 5 homens. O mesmo talvez possa ser explicado pela idade avançada dos mesmos: a africana mais jovem alforriada tinha 48 anos, enquanto dos homens nenhum tinha menos de 50 anos. Mais velhos e com menor vigor físico, a desvantagem de uma alforria gratuita talvez não fosse tão grande para o senhor. Ou ainda, como os alforriados mais velhos de um modo geral, tenham pesado os fatores que envolvessem a relação estabelecida entre senhor e escravo ao longo do tempo.

Por fim, parecem ser as alforrias sem ônus ou condição as que devem ser olhadas com mais desconfiança. Não foram poucas as que, em seu texto, traziam apenas tacitamente a afirmação de que o escravo fora libertado gratuitamente, sem maiores explicações. Como veremos adiante, ao menos no período estudado, poucas são as alforrias em que o liberto, se tivesse condições para tal, poderia gozar imediatamente a liberdade longe de seus senhores. As alforrias condicionais os prenderam por anos de serviços aos mesmos, alguns até a morte de seus senhores e senhoras. As alforrias pagas requeriam um longo percurso de trabalho para acúmulo de pecúlio, ou os mais diversos contratos e acordos envolvendo terceiros para que pudessem depositar seu valor ao senhor.

Muito embora não se possa recusar a ideia de que tais alforrias resultassem de um ato sincero e generoso do senhor fruto de laços de afetividade e afeição, parece-nos muito mais que a gratuidade proclamada fosse ela própria resultado de um percurso anterior de negociações de toda ordem, seja cotidiana, envolvendo bom comportamento, de bom trabalho, seja envolvendo dinheiro ou contratos. O vínculo e relacionamento cotidiano

190 APERS – Registro de alforria. 2ºT, L:22, 66v, 30/06/1884. 191 APERS – Registro de alforria. 3º T, L:07, 37r, 28/08/1884.

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entre senhores e escravos nas suas particularidades poderia influir, positiva ou negativamente, nessa trajetória.