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Considerações sobre as fontes utilizadas

Capítulo 3 – Caminhos para a liberdade: experiências de trabalho e o controle sobre

3.1 Considerações sobre as fontes utilizadas

No que diz respeito aos testamentos e inventários, salvaguardados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), eles correspondem ao período de janeiro de 1884 a dezembro de 1888 da Comarca de Porto Alegre.255 As características desses documentos (o modo como foram produzidos, as informações privilegiadas e as omitidas etc.), bem como a seleção que empreendemos para definir a nossa amostra, nos fizeram optar por uma abordagem mormente qualitativa dos mesmos. Junto a documentação da Secretaria de Polícia da Província, em posse do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), essas fontes nos permitiram observar alguns aspectos dessas experiências de modo que, ainda que ao final não tenhamos apontado para um resultado definitivo acerca das relações de trabalho estabelecidas (como padrões ou tendências, por

255 Foram utilizados os inventários post-mortem e testamentos da Comarca de Porto Alegre que serão

referidos da seguinte forma daqui em diante: “APERS – Inventário [ou Testamento], 2ª Vara da Família e Sucessão, Porto Alegre, maço 17, nº524, 1887”.

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exemplo), foi possível delinear algumas possibilidades a que os libertandos estavam sujeitos. Por fim, de modo um pouco mais secundário (já que a documentação em si poderia render uma outra pesquisa), com o intuito de aproximarmo-nos das libertandas mulheres, utilizamos os Autos de Tutela da 1ª Vara da Família e Sucessão da capital, localizadas também no APERS.

A partir de inventários e testamentos, de um modo bastante geral, pudemos observar aqueles indivíduos que, após a alforria condicional, permaneceram vivendo junto a seus ex-senhores ou, ao menos, seguiram trabalhando (ou cumprindo seus contratos, em outras palavras). Nos inventários, particularmente, pudemos verificar aonde os ex-senhores tinham propriedades – se na área central da cidade, em seus arraiais, subúrbios e freguesias, ou até mesmo em outras localidades do Rio Grande do Sul. O modo como os serviços daqueles homens e mulheres apareciam avaliados no rol de bens, ora sendo designados como escravos, ora como libertos, ou simplesmente o preto fulano ou a parda beltrana, contraditoriamente, reforça a noção de propriedade que os senhores seguiram mantendo em relação ao liberto (se não mais sobre o seu corpo, agora sobre seu trabalho), ao mesmo tempo em que reafirma a ideia de que um contrato fora estabelecido na alforria e era preciso, então, garantir o seu cumprimento. Do mesmo modo como foi possível verificar nas cartas de alforria uma série de arranjos estabelecidos tanto para a compra da liberdade quanto para a compensação do tempo de serviço estipulado, a avaliação dos serviços dos libertandos, bem como a sua partilha entre os herdeiros e formas de compensação previstas, demonstraram uma série de maneiras definidas para o cumprimento do contrato.

Através dos testamentos soubemos que alguns dos então libertandos conviveram com a promessa da liberdade até a época da campanha abolicionista na capital, pois a mesma estava condicionada à morte de seus senhores nos ditos documentos. Ao voltarmos para os registros notariais, vimos, então, que alguns destes mesmos senhores, mudaram de ideia e registraram a alforria condicionando seus ex-escravos à prestação de serviços, agora com o tempo definido. Casos como estes demonstram o peso da campanha abolicionista sobre a política de alforria naquele período e, por certo, sugerem o medo de que condições com prazos tão indefinidos não fossem cumpridas pelos escravos.

Foi também desses documentos que pudemos depreender o modo como alguns ex-proprietários dependiam de seus escravos (e como seguiram dependendo deles na condição de libertos) para a sua própria sobrevivência. Por seu turno, vimos libertos que seguiram vivendo com ex-senhores que previam (ou talvez trabalhassem com a promessa

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de), para o final de suas vidas, uma retribuição àquelas pessoas que continuaram a servir- lhes, mesmo após a conquista da liberdade. Como era comum na escravidão urbana, indivíduos de condição socioeconômica pouco privilegiada muitas vezes tinham um ou até alguns escravos para garantir o mínimo de seu sustento, de modo que a concessão de uma alforria fosse pra esses senhores talvez mais penosa do que para aqueles mais abastados.

Em relação aos inventários, partimos de uma lista de 421 documentos constando o nome do inventariado e do inventariante, a qual comparamos com as duas relações de proprietários de escravos que possuímos, a proveniente das alforrias registradas em cartório, e a proveniente da Ata do Centro Abolicionista. Chegamos, assim, ao total de 208 documentos256, de cuja leitura foram selecionados os 24 inventários em que constam arrolados os serviços de libertandos contratados (ou os serviços dos escravos, dos ex- escravos, do preto fulano, da parda cicrana etc. como eram denominados). A amostra selecionada nos permitiu conhecer, em alguns casos, as atividades exercidas pelos libertandos, os locais em que possivelmente viviam ou seguiram trabalhando, o preço pelo qual eram avaliados os seus serviços, a distribuição desses serviços entre herdeiros e até mesmo o modo como, após a morte do senhor, saldaram a dívida com os herdeiros. Cabe ressaltar que, nessa amostra, os contratados apareceram apenas tendo seus serviços arrolados como bens, e não como herdeiros.

Estes inventários dizem respeito a proprietários que vieram a falecer durante o período por nós estudado, não se tratando, portanto, da totalidade de ex-senhores que deixaram inventários, o que deveria incluir aqueles que faleceram após 1888. Caso tivéssemos expandido a análise de documentos para o pós-1888, poderíamos verificar se, mesmo após a abolição no império, os ex-escravos teriam permanecido não junto aos antigos senhores. Esta, porém, não foi uma questão para nossa pesquisa em seu atual estágio.

Sendo assim, a busca nominativa através da comparação entre as listas existentes se mostrou o melhor caminho para chegar diretamente aos ex-proprietários de escravos. De todo modo, fica em aberto a possibilidade de utilizá-los de modo mais extensivo e serial para um estudo tanto sobre os anos finais da escravidão quanto sobre o pós-abolição

256 Ao compararmos os nomes das listas de senhores com o dos inventários, optamos por considerar não só

o nome completo do inventariado, mas também selecionar indivíduos com o mesmo sobrenome. Desse modo, há inventariados entre os documentos selecionados que não constam nem no registro de alforrias, nem na Ata do Centro Abolicionista. O mesmo foi feito em relação aos testamentos.

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em Porto Alegre. Outro aspecto diz respeito ao caráter seletivo dos inventários, visto que esta fonte tende a sobrerepresentar a parcela da população de maior vulto econômico na sociedade, sendo poucos os inventários de pobreza ou de pessoas com bens de pouco valor.

Já quanto aos testamentos, partimos de uma lista de 129 documentos, a qual submetemos à mesma comparação com as listas de senhores, chegando a 76 de possíveis ex-proprietários. Estes testamentos dizem respeito apenas àqueles cujo senhor faleceu e que foi aberto durante o período por nós estudado. Sendo assim, em alguns casos, eles foram escritos pouco tempo antes do falecimento do testador, em seu leito de morte; em outros, no entanto, eles foram escritos muitos anos antes. Desse modo, tal qual os inventários, trata-se de uma amostra da documentação existente.

Quanto a suas características, os testamentos têm, por si só, um caráter mais pessoal do que os inventários, expressando as últimas vontades daqueles que, dentre outras coisas, deveriam decidir o destino de seus escravos e dependentes após seu falecimento. Em nossa amostra, encontramos poucas menções à libertos e contratados; em contrapartida, nos deparamos com uma série de indivíduos ditos pretos, pardos, crioulos ou como herdeiros, beneficiários de legados – frequentemente simbólicos, mas outras vezes bem significativos - fruto de sua fidelidade, bons serviços prestados, ou por ser filhos de ex-escravas. Desse modo, chegamos a 23 testamentos com um critério mais alargado que nos remetesse à indivíduos negros de um modo geral.

Se a partir dos inventários pudemos extrair alguns números que nos permitiram esboçar alguns aspectos referentes a ex-proprietários de escravos e seus bens, devido ao fato de termos a certeza de tratarem-se de ex-senhores e de libertandos contratados, o mesmo não ocorreu com os testamentos. Estes documentos permitiram uma abordagem exclusivamente qualitativa acompanhada de uma dose de imaginação e que se mostrou bastante rica, já que a maioria de indivíduos designados pela cor e os aspectos que, segundo nosso olhar, os remetiam à condição pregressa de cativeiro, nem sempre puderam ser comprovadas. Estes documentos tratam-se, nesse sentido, de um conjunto com critérios de seleção um tanto mais flexível, sem apresentar uma unidade explícita entre eles, de tal forma que não nos arriscamos a propor generalizações (e mesmo estas, quando feitas a partir dos inventários, o foram tomando todo o cuidado para delimitar o espaço temporal, geográfico e os indivíduos a que se referem, de maneira bem circunscrita).

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Tanto para os inventários post-mortem quanto para os testamentos, é preciso pontuar que, apesar de o recorte cronológico ser o mesmo para a seleção dos dois tipos de documentos, não há necessariamente sincronia em relação ao período em que eles foram produzidos. Isto porque aqueles foram feitos necessariamente após a morte do inventariado, enquanto estes poderiam ter sido escritos muitos anos antes, conforme explicamos, de modo que os dois tipos de documentos suscitaram questões distintas. A escolha de selecionar apenas alguns documentos, ao invés de trabalhar com a totalidade existente para o período de 1884 a 1888, deveu-se à restrição de tempo que tivemos para realizar a pesquisa, já que ambos os fundos documentais possuem um volume bastante grande.

Em relação aos documentos policiais, por sua vez – e dadas as questões por nós colocadas, operamos também uma seleção mais abrangente, que nos remetesse não apenas a escravizados e alforriados, mas à população negra como um todo. Os documentos analisados tratam-se dos códices da Secretaria de Polícia da Província do Rio Grande do Sul em que constam diversos assuntos referentes à estrutura, a burocracia e a atuação da polícia. Desses registros, selecionamos as participações diárias da Cadeia Civil de Porto Alegre, que se tornaram sistemáticas a partir de 1886, e todas ocorrências policiais que envolvessem pessoas negras. A documentação corresponde a 16 tomos de códices relativas a janeiro de 1884 até dezembro de 1888. Nesses registros encontram-se as informações prestadas pelos delegados de polícia locais ao chefe de polícia provincial e por este remetido à presidência da província. A seleção realizada retrata toda sorte de delitos miúdos do cotidiano, delitos estes que não chegaram às instâncias superiores dos tribunais, e na maioria das vezes sequer viram inquéritos policiais. Sendo assim, buscamos toda e qualquer menção à escravos, libertos, pretos, pardos, crioulos e africanos.

Ao utilizar a categoria negra para nos referirmos à população em questão, tomamos de empréstimo o modo como Regina Xavier referiu-se aos libertos cujas múltiplas experiências em relação tanto a conquista da liberdade, quanto a afirmação de sua condição e lutas por direitos, foram verificadas para Campinas. De acordo com a mesma,

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Ao compartilhar múltiplas experiências, estas pessoas negras não formavam uma categoria homogênea. Se enfatizo o fato de serem “negras”, é muitas vezes para indicar uma identidade que está se formando e que não se restringe naturalmente à cor da pele, mas procura dar conta de trajetórias similares em alguns aspectos, como a experiência da escravidão, por um lado, e/ou a origem africana, por outro”257

Ao mapear os sujeitos negros da cidade, pudemos observar, então, o cerceamento que sofriam na cidade por parte do Estado e das autoridades policiais. Esta população era composta também pelos recém egressos do cativeiro a que se refere nossa pesquisa. Foi possível acompanhar, desse modo, libertos contratados que deixavam de cumprir com os contratos estabelecidos em suas alforrias, sendo dados como fugidos ou apreendidos por “furtar-se a prestação de serviços a que estavam obrigados”.

Uma última fonte consultada foram os Autos de Tutela referentes à Comarca de Porto Alegre. Essa documentação não estava inicialmente prevista em nossa pesquisa. Entretanto, mostrou-se uma porta de entrada importante para a aproximação com as mulheres libertandas. Como vimos no capítulo anterior, entre os anos de 1884 a 1888 elas foram maioria entre os que tiveram suas alforrias registradas nos cartórios da capital. Somado a isso, acompanhou-nos sempre a preocupação de não diluir ou homogeneizar as experiências dessas mulheres e suas particularidades em relação ao mundo do trabalho com as dos libertos de um modo geral.

Nesses documentos figuram mulheres e seus filhos sendo deixados a tutoria de terceiros, frequentemente a senhores ou pessoas próximas a eles. Ao consultá-los, verificou-se que, com o aproximar-se do 13 de maio, ele aumentaram significativamente em quantidade, de modo que resolvemos incluí-los na pesquisa. Além das mulheres que estes processos envolviam, a situação das próprias crianças (filhas de escravas, libertas e contratadas), por sua condição e pelos laços que as ligavam aos senhores e ex-senhores de suas mães, diz muito sobre a condição daqueles que estavam sujeitos às marcas das ambuiguidades em suas vidas e sobre os lugares que ocupavam no mundo do trabalho.

Estes documentos encontram-se no APERS nos subfundos da 1ª, 2ª e 3ª Vara da Família e Sucessão da Comarca de Porto Alegre, que somam 208 ações tutelares para os anos de 1884 a 1888. Para fins de análise, optamos por trabalhar apenas com um desses fundos - o primeiro, que constitui-se de 72 documentos, dos quais 36 referem-se a escravas, libertas (e entre estas, as contratadas), pretas, pardas e crioulas. Em alguns casos há somente indicados que trata-se de processo envolvendo um ingênuo, sem referência a

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sua mãe. Apresentaremos, entretanto, alguns dados mais gerais, como a incidência de registros de tutela, levando em conta a documentação total dos três subfundos, tomando para tal a listagem dos mesmos fornecida pelo arquivo.

Nas páginas a seguir, apresentaremos os resultados obtidos a partir da análise dos documentos mencionados. Frequentemente apresentaremos as mesmas em diálogo com os dados obtidos através das alforrias e de outros documentos com os quais viemos trabalhando ao longo da pesquisa, como os da municipalidade e os da presidência da província. Fruto do cruzamento entre todos os tipos de fontes trabalhadas em nossa pesquisa, apresentaremos, em um primeiro momento, algumas características dos ex- proprietários de escravos, pois acreditamos que as mesmas possam informar um pouco e circunscrever as realidades a que estavam sujeitos os libertandos.