• Nenhum resultado encontrado

À luz dos textos estudados 2 Coríntios 12,1-10 é compreendido como um texto apocalíptico de ascensão ao céu. Embora não exiba muitas características de um modelo clássico de narrativa apocalíptica devido ao seu contexto diferenciado que impele Paulo a ocultar informações específicas de sua viagem ao céu, a passagem se sobressai como uma pérola dentro de um estranho invólucro. Por ser uma obra não pseudepigráfica, um relato de primeira mão, sua importância se destaca como evidência da prática de ascensão ao céu no judaísmo do primeiro século.

Trata-se de uma experiência pessoal de “um homem em Cristo”, Paulo mesmo, que foi tomado ao Terceiro Céu/Paraíso. Outros textos do gênero apocalíptico compartilham a cosmologia de três céus tais como o Testamento de Levi comprovando, assim, que Paulo estava familiarizado com a cosmologia da época. É possível que Paulo conhecesse a cosmologia de sete céus também utilizada em narrativas apocalípticas do período, entretanto, escolheu relatar sua experiência no mais alto dos três céus como uma variante do Paraíso. O uso do verbo grego arpa,jw (arrebatar) é de forte significado, e sublinha a iniciativa divina da experiência. Sua referência ao status da ascensão, se “no corpo, ou fora do corpo” encontra precedentes em outros relatos de ascensão como 2 Enoque (ascensão no corpo) 1 Enoque,

Testamento de Levi e 3 Baruc (ascensão fora do corpo).

Como todo herói apocalíptico, no auge de sua ascensão Paulo teve uma revelação divina a;rrhta r`h,mata (palavras inefáveis) que, diferente de outros apocalipses, não poderia ser relatada. Outras revelações celestiais são referidas em suas cartas nas quais Paulo se refere a mistérios revelados, o evangelho de Cristo. É provável que pelo teor místico da experiência Paulo quis guardar para si mesmo o segredo, ou quem sabe, pela inabilidade de comunicar em língua humana tal conteúdo, Paulo foi impedido de fazê-lo. A fim de que o apóstolo não se “gloriasse” pela sublimidade das revelações lhe foi infligido um espinho na carne, um anjo de satanás, para esbofeteá-lo afim de que ele não se exaltasse, procedimento comum nos relatos do misticismo apocalíptico judaico, tema abordado no próximo capítulo.

Outra marca do gênero apocalíptico revelada no texto de 2 Cor 12,1-10 é a convenção pergunta/resposta presentes neste tipo de relato. Paulo pede três vezes ao Senhor para que seja removido o “espinho da carne”. A pergunta é respondida embora não satisfazendo o desejo de Paulo, mas suprindo-lhe de recursos infinitos de sua graça. A linguagem e as convenções apocalípticas usadas pelo autor em 2 Cor 12,1-10 comprovam seu débito às tradições judaicas de ascensão ao céu e revelam a necessidade de colocá-las como um parâmetro importante de avaliação nas exegeses do texto.

À luz das observações mencionadas, a ascensão do apóstolo Paulo registrada em 2 Coríntios 12 tem muito em comum com as reivindicações dos que tiveram experiências similares em seu tempo. Embora as similaridades aos textos estudados pareçam superficiais, devido ao contexto da narrativa, isto não significa que Paulo não teve o tipo de experiência daqueles visionários apocalípticos, mas reproduzindo as palavras de Lincoln198, “uma ausência de referências freqüentes não necessariamente significa uma ausência de experiências freqüentes”.

198 LINCOLN, Andrew T. Paradise Now and Not Yet. Sudies in the Role of the Heavenly Dimension in Paul’s

Thought with Special Reference to His Eschatology. Cambridge; London; New York: Cambridge University

III – 2 CORÍNTIOS 12,1-10 E O MISTICISMO JUDAICO-CRISTÃO

The most beautiful emotion we can experience is the mystical. It is the power of all true art and science. He to whom this emotion is a stranger, who can no longer wonder and stand rapt in awe, is as good as dead.

(Albert Einstein)199

As últimas cinco décadas têm testemunhado um notável ressurgimento do interesse no estudo e prática da espiritualidade. Apesar de a religião ter sido marginalizada pelo secularismo no mundo moderno, um significativo corpo literário tem sido devotado ao estudo do misticismo desde o século passado. Não, porém, no que concerne ao aspecto teológico e que pouco é apresentado sobre o tema e muitas dessas apresentações são limitadas e insatisfatórias. Será que a resistência à imagem do apóstolo como um extático possa ser uma razão para essa aversão, ou até mesmo vieses culturais contra experiência religiosa extática que se expressa através do rótulo “misticismo”?

A palavra “misticismo” tem uma terminologia infeliz. Sua história deturpada sugere algo nebuloso, confuso, vago, sentimental, misterioso e até irracional. Quando associada à religião, dá acesso a julgamentos preconceituosos por parte de muitos filósofos. Empregada desta forma não é de se admirar o pequeno valor da palavra. Ainda quando retém uma conotação positiva, isso descreve um artefato textual primário e uma tradição de interpretação200. De forma geral, a religião focada na espiritualidade tem sobrevivido à modernização, embora, inevitavelmente, tenha se tornada alienada da ciência materialista. Para Beauregard e O’Leary, uma importante razão para esta sobrevivência é a difusão da experiência mística/religiosa201.

Ao declarar Paulo desprovido de influência mística, a academia esforça-se para isolar a teologia paulina da experiência e pensamento do apóstolo, fazendo disto algo mais confiável. Para Stace, expressões como “arrebatado ao terceiro céu” e “ouviu palavras inefáveis”

199

A mais bela emoção que podemos experimentar é a mística. É o poder de toda verdadeira arte e ciência. Aquele a quem essa emoção é uma estranha, que não pode admirar e ficar fascinado em respeitosa reverência, está morto. (Tradução Livre). In: BEAUREGARD, Mario; O’LEARY, Denyse. The Spiritual Brain. A Neuroscientist’s Case for the Existence of the Soul. New York: HarperCollins Publishers, 2008. p. 289.

200 SHANTZ, Colleen. Paul in Escstasy: The Neurobiology of the Apostle’s Life and Thought. New York: Cambridge University Press, 2009. p. 19.

201 BEAUREGARD, Mario; O’LEARY, Denyse. The Spiritual Brain. A Neuroscientist’s Case for the Existence of the Soul. New York: HarperCollins Publishers, 2008. p. 188.

relatadas por Paulo em 2 Coríntios 12, têm algo do verdadeiro círculo místico202. Paulo usa esse vocabulário padrão que toma a forma de um “estado extático” para descrever sua experiência. Esse “ouvir” a que o apóstolo se refere, pode ser interpretado como parte desse estado, e não do simples ouvir físico203. Há uma necessidade de reinstalar o conceito de experiência religiosa na análise de Paulo. O objetivo deste capítulo é que o exame da experiência paulina existente à parte das palavras possa lançar luzes nas decisões que frequentemente afetam, não apenas a interpretação da passagem, mas também sua tradução.