• Nenhum resultado encontrado

3.1 O MISTICISMO

3.1.1 Experiência Mística

3.1.1.1 Experiências místicas e os estados alterados de consciência

A obra da antropóloga Erika Bourguignon e de seus colegas tem confirmado através de sua pesquisa que 90% das 488 sociedades estudadas fazem uso de um ou mais institucionalizados estados alterados de consciência. Para a autora, isto sugere que se está lidando com um assunto de maior importância, e não meramente um esoterismo antropológico235. Na definição da autora, estados alterados de consciência são condições nas quais sensações, percepções, cognições e emoções são alteradas. Eles são caracterizados não só por mudanças nas sensações, percepções, pensamentos e sentimentos, mas por modificações na relação do indivíduo com o self, corpo, sentido de identidade, e com o mundo do tempo, do espaço e o das outras pessoas236.

Quanto à natureza desses estados alterados de consciência, transe ou dissociação como também são conhecidos, Felicitas Goodman afirma que os mesmos causam um número de mudanças no corpo de quem os experimenta, algumas das quais podem ser prontamente observadas. Entre essas mudanças estão uma respiração mais profunda, enrubescimento da face, tremor ou torção, balanceamento da cabeça, pulos. Ocasionalmente os músculos ficam tensionados especialmente ao redor do pescoço237. Embora haja uma conexão de êxtase com alegria e deleite, o que se observa é que nem todos os estados extáticos se constituem de experiências positivas. Eles podem vir acompanhados de terror, medo, enjoos, dores nos braços e pernas, uma sensação neural desconfortável, formigamento.

Como foi abordado no início deste capítulo, os estados alterados de consciência que geram as experiências místicas pertencem a duas linhas importantes do desenvolvimento dessas experiências, a apofática e a catafática. Para Beauregard e O’Leary, o método mais comum de alcançar tais experiências é a depressão e a falta de esperança.238 Shantz afirma que experiências recontadas por Paulo em suas cartas dizem respeito ao seu sofrimento físico. Ele compartilha surras e apedrejamento, naufrágio e privações que constituem parte da sua

235 BOURGUIGNON, Erika. Introduction: A Framework for the Comparative Study of Altered State of Consciousness. In: BOURGUIGNON, Erika (Edt). Religion, Altered States of Consciousness and SociaChange. Columbus: Ohio State University Press, 1973. p.11.

236 BOURGUIGNON apud TINNIN, Louis. In: Dissociation v. 111, n. 3, 1990. p. 155.

237 GOODMAN, Felicitas D. Ecstasy, Ritual, and Alternate Reality. Religion in a Pluralistic World. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1988. p. 37 e GOODMAN, Felicitas D. Speaking in

Tongues. A Cross-Cultural Study of Glossolalia. Chicago: The University of Chicago Press, 1974. p. 127.

238 BEAUREGARD, Mario; O’LEARY, Denyse. The Spiritual Brain. A Neuroscientist’s Case for the Existence of the Soul. New York: HarperCollins Publishers, 2008. p. 199.

particularidade contextual. Para a autora, é intrigante a frequência com que ele compara suas reflexões de êxtase religioso com declarações sobre sofrimento e dor. No relato de sua viagem celestial em 2 Coríntios 12,1-10, ele se reporta a um evento extático que é categorizado por reflexões de sofrimento239. Trauma e transcendência também têm sido combinados nas descrições xamânicas, conforme análise apresentada no próximo subtítulo.

Oração e meditação também se constituem métodos importantes para alcançar o êxtase religioso. A meditação é uma abordagem individualista do misticismo, ainda que possa ser praticada em grupo. É uma das mais importantes áreas de pesquisa que está sendo discutida pela ciência desde a década passada, no propósito de melhor elucidar o intrincado mecanismo que constitui a base das práticas meditativas.240 A meditação pode produzir muitos benefícios inclusive um profundo estado de relaxamento. Rituais podem ser realizados por grupos de pessoas através de cantos, orações, danças ou o relato de histórias. O ritual também pode ser desempenhado por um indivíduo através de contemplação, meditação ou oração241.

Uma área de experimentos controversos é o estudo dos enteógenos (Deus gerado dentro), terminologia usada para descrever certas plantas e químicos usados com propósitos espirituais, para facilitar ou induzir estados místicos. Hood242 afirma a existência de uma imensa literatura sobre a psicologia dos enteógenos, mas, curiosamente, muito pouco desses estudos foram conduzidos às varáveis religiosas, nem houve uma preocupação com a importância religiosa desses elementos. Por razões psicológicas bem estabelecidas presume- se que os enteógenos produzem alterações confiáveis nos fenômenos visual e imaginário. Em um ambiente religioso apropriado, drogas psicodélicas243 podem facilitar experiências religiosas na medida em que alguém, sob a influência das mesmas, pode ver o mundo em termos próprios de um particular sistema de significados.

239 SHANTZ, Colleen. The Confluence of Trauma and Transcendence in the Pauline Corpus. In: FLANNERY, Frances; SHANTZ, Colleen; WERLINE, Rodney A. Experientia, v. 1. Inquiry into Religious Experience in Early Judaism and Christianity. 2008. p.197.

240 NEWBERG, A. B.; IVERSEN, J. The neural basis of the complex mental task of meditation: neurotransmitter and neurochemical considerations. Medical Hypotheses (2003) 61 (2), 282-291. p. 288.

241 D’AQUILI, Eugene G.; NEWBERG, Andrew B. The Mystical Mind. Probing the Biology of Religious Experience. Minneapoli: Fortress Press, 1999. p. 5.

242 HOOD JR., Ralph W. Mystical, Spiritual, and Religious Experiences. In: PALOUTZIAN, Raymond F.; PARK, Crystal. L. (Eds.). Handbook of the psychology of religion and spirituality. p. 348-364. New York: The Guilford Press, 2005. p. 353-354.

Existem outras experiências místicas que são frequentemente espontâneas e que causam bastante interesse nos estudos da religião e teologia. Neste modelo podem ser citados como exemplos ascensões do antigo mundo mediterrâneo, conhecidas como arrebatamento, em que o místico é tomado aos céus por iniciativa divina. Entre essas experiências espontâneas encontram-se a ascensão do apóstolo Paulo recontada em 2 Coríntios 12,2-4, 1 Enoque 39,3, e a Ascensão de Isaías. Himmelfarb244 destaca neste modelo Manichean teacher Baraies, cujas palavras estão preservadas no Cologne Mani Codex. Duas passagens de Baraies citam o verbo arrebatar, da mesma forma que usado por Paulo em 2 Cor.12,1-4. Esses textos não fazem alusão a qualquer forma de preparação para a ascensão, nem mesmo a informação do contexto em que a experiência ocorreu.