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Capítulo II – Fundamentação teórica

2.3 Algumas considerações sobre bilinguismo

Segundo Maher (2007), a definição do conceito de bilinguismo é algo que aflige pesquisadores há tempos. Talvez por isso, muitas investigações sobre o tema têm sido registradas. Em García (2009), é possível encontrar uma revisão densa do conceito através da discussão dos trabalhos de vários teóricos que exploraram temas relacionados ao conceito de bilinguismo, bem como ao de educação bilíngue nas últimas décadas.

A exemplo de Maher, trago primeiramente duas “definições paradigmáticas de um tipo de olhar para o fenômeno” bilinguismo (p. 72). A autora cita duas definições clássicas encontradas em Hamers e Blanc (1989, apud MAHER, 2007) que, segundo ela, coincidem com as geralmente ditadas pelo senso comum. Quais sejam, 1) a definição de Bloomfield que enfatiza a proficiência nas duas línguas tendo como padrão o falante nativo:

Bilinguismo é o controle de duas ou mais línguas equivalente ao controle do falante nativo destas línguas (HAMERS e BLANC 1989, p.6, apud MAHER, 2007).

E 2) a definição de Halliday que se refere a delimitação entre as duas línguas:

O sujeito bilíngue é aquele que funciona em duas línguas em todos os domínios, sem apresentar interferência de uma na outra. (HALLIDAY et alli apud HAMERS e BLANC 1989, p.7).

De acordo com a primeira definição, para ser considerada bilíngue, a pessoa teria que ter controle da(s) língua(s) adicional(s) tal

qual o tem um falante nativo. Contudo, a noção de falante nativo é considerada problemática por muitos pesquisadores (ver, por exemplo, discussão em CANAGARAJAH, 2007; CLEMENTE e HIGGINS,

2005; MOITA LOPES, 2008; PENNYCOOK, 2001, 2010;

RAJAGOPALAN, 2005). Segundo Maher (2007, p. 72) não resta nenhuma alternativa a não ser considerar “falante nativo” como uma abstração, uma abstração idealizada, pois há uma variedade imensa de comportamentos linguísticos dentro de um conjunto de falantes monolíngues de uma dada língua.

Já a segunda definição revela uma concepção de língua como algo pronto, bem definido e delimitado, de maneira que seria possível, para o bilíngue, justapor duas línguas, acoplá-las como se fossem dois blocos totalmente encerrados em si, cujos conteúdos não pudessem se misturar de forma nenhuma. A pessoa bilíngue, por sua vez, deveria ser capaz de alternar entre elas de forma que não houvesse “contaminação” e que as duas línguas continuassem “puras”. Essa concepção tem a ver com a existência de um monolíngue perfeito, sendo a pessoa bilíngue “a somatória „perfeita‟ de dois monolíngues igualmente „perfeitos‟ – o que quer que isso signifique” (Maher, 2007, p.72). Ou seja, o bilíngue se comportaria como se houvesse duas pessoas em seu interior, cada uma fluente em uma das duas línguas (García, 2009). Ao alternar entre uma língua e a outra, esse bilíngue faria algo como trocar de identidade, “encarnando” tudo aquilo que implica ser um falante monolíngue ora de uma língua, ora de outra.

Na crítica que faz a essa noção de “bilinguismo equilibrado”, García (2009, p. 44) concorda que esse retrato em que crianças e adultos bilíngues são aqueles vistos como igualmente competentes nas duas línguas, em todos os contextos e com todos os interlocutores ainda é uma ideia amplamente aceita. Contudo, afirma que estudos atuais vêm reconhecendo que este tipo de bilinguismo não existe. Maher (2007) cita Grosjean (1982) e MacSwan (2000) como alguns dos investigadores que vem denunciando o caráter fictício dessa noção de “bilinguismo equilibrado”. Para Maher,

a depender do tópico, da modalidade, do gênero discursivo em questão, a depender das necessidades impostas por sua história pessoal e pelas exigências de sua comunidade de fala, ele [a pessoa bilíngue] é capaz de se desempenhar melhor em uma língua do que na outra – e até

mesmo de se desempenhar em apenas uma delas em certas práticas comunicativas (2007, p. 73). Para ilustrar suas afirmações, Maher, em seguida, descreve alguns de seus próprios comportamentos linguísticos. Diz que como sujeito bilíngue português-inglês, algumas de suas competências são equivalentes nas duas línguas como, ler textos acadêmicos, por exemplo, outras são bem maiores em uma língua que na outra, como debater oralmente sobre política linguística (faria melhor em português), e algumas ainda não conseguiria fazer com proficiência em nenhuma das línguas, como discutir a situação de um time de futebol no campeonato regional (MAHER, 2007, p. 73).

Para a autora, “o funcionamento discursivo do sujeito bilíngue prevê a utilização da mudança de código (code-switiching) e empréstimos linguísticos (borrowings) em sua gramática” (MAHER, 2007, p. 74). Ela diz que a pessoa bilíngue muda de um código para o outro nas diversas situações discursivas justamente porque pode fazê-lo, porque tem competência para fazê-lo.

A visão de que o bilíngue se comunica de maneiras diferentes e têm experiências diversificadas em cada uma das duas línguas, segundo García (2009, p. 44), é uma visão mais realista. Isso porque “as línguas de um indivíduo raramente são socialmente iguais, elas têm diferente poder e prestígio, e são usadas para propósitos distintos, em diversos contextos, com interlocutores diferentes18.

Desse modo, entendo que a mudança de código (code-switiching) durante uma interação é um comportamento normal de um bilíngue, e que longe de significar incompetência linguística, esse procedimento é

um recurso discursivo poderoso utilizado com frequência

exclusivamente por bilíngues para atribuir múltiplos sentidos aos seus enunciados como: expressar afetividade, relação de poder, mudança de tópico, identidade social/étnica. “O code-switiching seria um aspecto do desempenho do sujeito bilíngue que, dizem os dados empíricos, é constitutivo do seu discurso, é uma de suas riquezas e especificidades e, sendo assim, não há porque problematizá-lo” (Maher, 2009, p.75).

Para complementar e ampliar a concepção de code-switiching, García (2009) traz em seu trabalho o conceito de translanguaging (p, 45), utilizado originalmente para nomear práticas pedagógicas realizadas

18 Minha versão do trecho: “The languages of an individual are rarely socially equal, having

different power and prestige, and they are used for different purposes, in different contexts, with different interlocutors” (GARCIA, 2009, p. 25).

em aulas bilíngues nas quais se alterna o tipo de linguagem utilizado. Um exemplo disso é uma situação em que se lê em uma língua e se escreve em outra.

Para García, translanguaging vai além do que pesquisadores vêm chamando de code-switching, ainda que inclua essas mudanças de língua, bem como mudança de tipo de linguagem e os demais usos e contatos bilíngues19. Importa enfatizar aqui que o conceito de translanguaging não está centrado nas línguas, na descrição do uso bilíngue da linguagem, mas nas práticas observáveis de pessoas bilíngues. A autora descreve translanguagings como as múltiplas práticas discursivas nas quais os bilíngues se engajam para dar sentido aos seus mundos bilíngues20 e afirma que translanguaging é a única prática discursiva que pode incluir a todos – aqueles que têm diferentes níveis de habilidades e inclusive os monolíngues.

Para ilustrar melhor essa discussão, Maher cita, dentre outros exemplos, o contexto em que uma família bilíngue se reúne para fazer uma refeição. Segundo ela, uma família bilíngue pode ser constituída por membros que possuam diferentes níveis de habilidade e inclusive por membros monolíngues, sendo translanguaging a única prática discursiva que pode incluir toda a família.

Uma interpretação possível para este exemplo, com base em García 2009, seria pensar em uma família de imigrantes mexicanos vivendo nos Estados Unidos. Nas refeições que fizessem em casa, talvez os membros mais velhos se comunicassem mais em espanhol, sua língua materna, utilizando poucas ou nenhuma palavra em inglês, já as crianças, nascidas nos EUA, poderiam falar umas com as outras em inglês sobre um assunto da escola, mas quando se referissem aos adultos, poderiam alternar entre as duas línguas, com construções híbridas. Em sinal de respeito, se direcionariam aos mais velhos apenas em espanhol, e poderiam inclusive atuar como tradutoras para incluir os monolíngues na prática discursiva.

Dessa forma, entendo que translanguaging inclui múltiplas práticas discursivas bilíngues dentro de um mesmo domínio. É como os bilíngues incluem e facilitam a comunicação com os outros. É como combinam conhecimento cultural para justificar as diversas práticas

19 A este respeito, ler García (2009, p. 47-51).

20 Minha versão do trecho: “…translanguaging are multiple discursive practices in which

discursivas. Segundo García, o conceito de translanguaging, visto dessa forma, deixa claro que não existe uma fronteira definida entre as línguas de uma pessoa bilíngue. O que existe é uma linguagem contínua, constantemente acessada, que pode se constituir de elementos das duas ou mais línguas com fins específicos de uma efetiva comunicação.

É possível associar à noção de translanguaging o conceito “hibridação”, cunhado por Canclini (2011, p. XIX). Segundo o antropólogo, hibridação seriam os “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. O autor cita como exemplo de hibridação o spanglish, nascido nas comunidades latinas dos Estados Unidos e propagado pela internet a todo o mundo.

Com base nas discussões feitas por Canclini (2011) e García (2009), considero as construções discursivas híbridas como espaços legítimos de interação de pessoas bilíngues, sendo que o nível de hibridação dessas construções irá depender de alguns fatores característicos das situações bilíngues, como: quem é interlocutor, grau de competência bilíngue, contexto de interação, entre outros.

Sendo assim, em consonância com García (2009) e Maher (2007), bilinguismo, neste trabalho, é entendido como um fenômeno multidimensional o qual permite a argumentação de que existem vários tipos de pessoas bilíngues no mundo. Chego, então, à conclusão de que apenas uma definição bastante ampla pode compreender a existência de todos os tipos de bilinguismo. Como Maher afirma, “o bilinguismo, uma condição humana muito comum, refere-se à capacidade de fazer uso de mais de uma língua” (2007, p. 79). Unindo elementos dos conceitos apresentados pelas duas autoras, entendo bilinguismo como uso de duas ou mais línguas de distintos modos – uma prática discursiva especialmente inclusiva que pode lançar mão de construções híbridas ou de construções formadas por alternância de código – dependendo de aspectos diversificados, tais como, o contexto de fala, assimetria de poder durante a prática social, grau de desempenho e de proficiências na língua adicional, etc., relacionados às características da interação social.

Tal definição permitirá, para fins deste trabalho, uma análise de como as pessoas que fazem uso de mais de uma língua no contexto da EJA Florianópolis se comportam em suas interações nas situações bilingues. Diferentemente do que geralmente se faz, a intenção deste estudo não é regular e/ou prescrever o comportamento de um bilíngue a fim de verificar e confirmar se as pessoas que fazem uso de duas línguas no contexto citado podem ser classificadas na categoria de bilíngue, mas entender esses usos, entender o universo discursivo próprio em que

essas pessoas operam, passam a operar ou podem passar a operar21. Que não é ou será o universo discursivo de um monolíngue em L1, nem o de um falante monolíngue em L2. Em consonância com Maher (2007, p.77), esse universo da pessoa bilíngue é considerado aqui como um terceiro lugar, de limites porosos, sempre temporários e em permanente construção. Tal postura, como nos lembra Grosjean (1982 apud MAHER, 2007, p.77) a autora, estaria embasada em uma visão holística de bilinguismo, uma visão mais sócio-funcional. Essa visão estaria embasada na crença de que esse tipo de liberdade do ambiente bilíngue deixaria o aluno mais à vontade para se relacionar alternando entre as duas línguas.

Impor critérios extremamente exigentes aos bilíngues pode levar, em algumas circunstâncias, à sua estigmatização como sendo, de alguma forma e de maneira negativa, deficientes com relação às suas capacidades linguísticas. Se em vez de visualizarmos como parâmetros as noções de língua e de falante nativo ideais, o portunhol, por exemplo, não pode ser classificado como uma língua impura, imperfeita, ou universo discursivo de gente acomodada e inerte, mas como moradias legítimas dos seus falantes. Em um ambiente em que as capacidades linguísticas não são cerceadas ou controladas e tampouco julgadas em relação a um padrão linguístico dito “ideal”, a ampla adaptação dessas pessoas às diversas situações discursivas seria considerada como uma qualidade bastante positiva e inclusive como campo de intervenção pedagógica.

Na educação bilíngue, então, deve-se considerar as práticas discursivas concretas dos diversos contextos interacionais em sala de aula e inclusive fora dela. Vejamos o seguinte modelo com exemplos de possíveis práticas proposto por Maher (2007, p. 78):

21

Digo que a análise realizada neste estudo pretende entender o universo discursivo próprio em que essas pessoas operam, passam a operar ou podem passar a operar porque se trata do estudo apenas da primeira fase de ensino/aprendizagem de Espanhol via pesquisa. Alunos e professora ainda terão pela frente outros ciclos de pesquisa distribuídos em outros três semestres.

Figura 2 – Práticas discursivas

Fonte: Maher (2007, p. 68)

Para a autora, intervenções pedagógicas que considerem o engajamento do bilíngue nas diversas situações discursivas permitem “avaliar não apenas a fluidez na distribuição funcional entre as línguas do repertório verbal do aluno bilíngue e dos diferentes graus de competência que exibe, mas também considerar os processos de mudança e reestruturação no interior desse repertório ao longo do tempo” (MAHER, 2007, p. 79). Observando, por exemplo, que o aluno escreve pouco ou nada em língua adicional sobre temas de uma determinada área, o professor pode oportunizar mais experiências de escrita naquela área e observar que o aluno, que antes escrevia apenas em língua materna, pode passar para estágios em que a produção escrita vá alternando entre língua materna e adicional. Isso sem pretender, contudo, que as competências linguísticas nas duas línguas se igualem, pois a busca por esse tipo de equivalência em determinada prática discursiva depende antes de questões relacionadas aos diversos interesses do aluno que à vontade do professor. Esse mesmo aluno pode desenvolver tal equivalência em compreensão escrita, mas em temas de outra área, com a qual por inúmeros motivos pode ter tido maiores oportunidades de exposição.