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Capítulo III – Perspectivas metodológicas: estar, olhar e ouvir

3.3 Fazendo etnografia

Realizar uma pesquisa etnográfica exige que o pesquisador se aproxime profundamente da realidade pesquisada a fim de depreender os significados que as pessoas dão às suas práticas. Somente através de um processo significativo de imersão é possível trazer as vozes dessas pessoas para o texto etnográfico e relatar os significados a partir de suas óticas (ERICKSON, 2001; ROCWELL, 2011).

Dessa maneira, para realizar esta pesquisa, em que o trabalho de campo foi a parte central, fiz o possível para que minha presença na escola fosse percebida de maneira cuidadosa, desenvolvendo uma boa relação com os participantes da pesquisa e com os demais alunos, professores e funcionários.

Vendo os alunos e a professora como atores sócio-culturais que chegam à escola com uma bagagem de múltiplas vivências, procurei participar de momentos dentro e fora de sala que me oportunizassem conhecê-los melhor. Dessa forma, participei de festas na escola, de reuniões feitas pelos alunos fora do contexto escolar, de reuniões de planejamento dos professores, da reunião com o coordenador geral da EJA e com a diretora da escola para pleitear que os alunos da EJA pudessem frequentar a sala informatizada e a biblioteca. Também fiz o trajeto de volta da escola para casa com vários alunos e alguns professores, visitei a casa de alguns alunos participantes da pesquisa e da professora de Espanhol, participei de lanches com os alunos e algumas vezes com os professores. Uma das vivências mais gratificantes foi ter a oportunidade de viajar com a professora de Espanhol para o Rio de Janeiro, em julho de 2011, onde participamos do XIV Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol.

A abertura e o acolhimento que me foram dados para o desenvolvimento da pesquisa, foram aumentando de forma progressiva e significaram muito, evidentemente, para o bom rendimento deste estudo. Aos poucos fui percebendo que minha presença, como pesquisadora, foi sendo naturalizada. Tanto os professores quanto os alunos com os quais eu não atuava diretamente como professora passaram a me considerar integrante de suas salas de aulas e de suas vidas. Os professores registravam minha presença juntamente com a deles no diário da turma e a minha presença, durante as reuniões de planejamento, parecia não alterar a interação entre eles. Os alunos, aos poucos, deixaram de ser curiosos e desconfiados em relação à minha presença e passaram a falar comigo com mais liberdade, sobre assuntos e opiniões diversos. Todas as contribuições dadas nesses momentos foram importantes no sentido de observar como alunos e professores avaliam e lidam com as práticas pedagógicas desenvolvidas por eles na EJA.

Além de o pesquisador estar em campo com os participantes, observar e ouvir atenciosa e dedicadamente o que acontece durante a interação entre eles, o trabalho de perspectiva etnográfica exige que o registro seja feito respeitando-se questões éticas. Exige a descrição disciplinada e cuidadosa da escrita dos acontecimentos e das interpretações dadas a eles pelos atores sociais daquele campo específico (ROCWELL, 2011).

Sendo assim, os registros a serem analisados no próximo capítulo foram gerados em sete meses de trabalho de campo (em média duas vezes por semana, de fevereiro a agosto de 2011), através das observações e participação dos momentos de interação entre os quatro

alunos e a professora de Espanhol, das conversas com eles dentro e fora da escola. Os registros destas observações e conversas foram feitos ao longo desses sete meses em forma de anotações e em sua maioria através da gravação em vídeo ou áudio, sendo que, posteriormente foram organizados em diários de campo31. Esses diários consistem em registros interpretativos das observações e de interpretações realizadas em campo. O exercício de escrita, leitura e releitura dos diários foi de fundamental importância para o processo de construção da descrição do contexto, para um conhecimento mais profundo dos participantes e para a construção da análise.

Outros instrumentos importantes de geração de dados foram os questionários, as entrevistas semiestruturadas e a análise documental. Segundo Hammersley e Atkinson (1994), o uso que a etnografia faz de múltiplas fontes de informação é uma grande vantagem, pois evita o risco de que as conclusões do trabalho sejam dependentes de um único método.

Os questionários foram aplicados já no início do trabalho de campo. Preocupei-me com o formato do questionário para que ele fosse sucinto, claro e para que cumprisse o objetivo de traçar um perfil inicial dos participantes, reunindo informações relevantes para o desenvolvimento da pesquisa sobre dados biográficos e dados relacionados à escolaridade e exercício profissional dos participantes. O questionário destinado à professora foi entregue para que ela preenchesse no tempo que lhe conviesse. Já os destinados aos alunos foram respondidos em sala, durante uma oficina de Espanhol, após o primeiro mês de observação em campo.

As entrevistas, alinhando-me a Guber (2001), são entendidas aqui como uma estratégia para que as pessoas falem sobre o que sabem, pensam e sobre o que acreditam. São situações em que o entrevistador obtém do entrevistado informações sobre sua biografia, os significados que dá aos acontecimentos, aos sentimentos, sobre suas opiniões, emoções, sobre as normas de ação e valores de comportamentos ideais.

Ao iniciar minha pesquisa, tinha algumas perguntas que provinham de meus interesses mais gerais, contudo, elas foram sendo abandonadas ou reformuladas durante o desenvolvimento do trabalho de campo. Como destaca Guber (2001) a entrevista etnográfica, requer um alto grau de flexibilidade para a construção das perguntas. Elas devem

31 As gravações foram autorizadas por todos os participantes da pesquisa através das

assinaturas dos termos de consentimento livre e esclarecido, conforme exigência do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) da UFSC.

ser desenvolvidas ao longo da investigação com a preocupação de descobrir e incorporar temáticas do universo do informante ao universo do investigador e com a preocupação de que as respostas sejam relevantes para a compreensão dos sentidos dados às práticas que acontecem em determinados contextos. Neste tipo de entrevista, o pesquisador formula perguntas cujas respostas se convertem em novas perguntas, introduzindo-se temas e conceitos a partir da perspectiva do participante, mais que da do pesquisador. Ou seja, as verbalizações mais prolongadas são do entrevistado. O entrevistador interfere minimamente, mas com o cuidado de reconhecer em que partes do discurso do informante deve intervir para construir sua lógica (GUBER, 2001).

Assim sendo, nesta pesquisa foram desenvolvidas entrevistas individuais e semiestruturadas, ou seja, “entrevistas compostas por comentários, exemplos ou questões, que podem levar o entrevistado a completar e detalhar respostas. Existe certo controle no sentido de guiar o entrevistado, mas se permite liberdade para as respostas” (WALLACE, 1998 apud LUCENA, 2006, p.81).

Assim, as entrevistas foram realizadas ao final das observações em campo quando já estava bem delimitado sobre o que perguntar e sobre quais eram as perguntas que poderiam ser significativas segundo o universo dos participantes. O objetivo com as entrevistas era que a professora de Espanhol e os alunos explicitassem as práticas pedagógicas desenvolvidas nos momentos nos quais interagiam uns com os outros, que detalhassem alguns aspectos relacionados à proposta de educação bilíngue observados em sala e que explicassem como avaliavam e lidavam com essas práticas. Dessa forma, tive a oportunidade de verificar se os participantes confirmavam (ou não) as interpretações por mim feitas a partir da realidade observada.

A análise de documentos foi outro instrumento gerador de dados. Ao longo dos sete meses de trabalho de campo, analisei, com a permissão dos participantes, fontes escritas produzidas por eles. Entre esses documentos estão seus cadernos individuais, seus diários, a pasta e o caderno de pesquisa do grupo, as produções de HPEs, os portfólios, bilhetes, rascunhos, trabalhos escritos, etc.

A análise deste material foi fundamental para a visualização de como a língua adicional se configura nas produções escritas dos participantes e para esclarecer aspectos das relações construídas entre eles. Foi principalmente nos diários dos alunos que encontrei dados a respeito de como os participantes significavam e valorizavam o ensino/aprendizagem de Espanhol, e a respeito das representações que

tinham uns sobre os outros e sobre si mesmos. Nos diários, encontrei registros nos quais os alunos e a professora descreviam a si mesmos e aos outros, discutiam as suas práticas e as dos outros, além de encontrar muitas demonstrações de incentivo, apoio entre eles, o que evidenciava que as relações construídas ao longo do processo de educação, naquele cenário, tornavam-se cada vez mais afetuosas e significativas para eles.

Após descrever, nesta subseção, a rotina etnográfica e os instrumentos de geração de dados, passo, a seguir, a apresentar o campo social em que esta pesquisa foi realizada, descrevendo, de modo individualizado, os seus participantes.