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1. DE OBJETO A SUJEITO DE DIREITO

1.6. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTE CAPÍTULO

Nesta seção, fazemos o exercício de mostrar algumas das implicações dos enquadres, que, a nosso ver, organizam a forma como se constituiu a subjetividade dos brasileiros. Uma vez construída a ideologia do branqueamento, cabia então fazê-la materializar-se no cotidiano das relações raciais. Conforme mencionamos anteriormente, inicialmente coube à eugenia o papel de legitimar este ideário nas instituições brasileiras e na intelectualidade da época. Ainda faz parte desse processo, o pacto do silêncio sobre a branquitude, ou seja, não se fala sobre isso, o foco das relações raciais recai sobre o negro, dificultando a sua problematização. O problema racial torna-se uma questão do negro.

A falta de reflexão sobre os estereótipos pode transformar os indivíduos negros e não negros, em objetos e instrumentos de reprodução de ideias racialistas. Por outro lado, as experiências de racismo, se desveladas, a partir do esclarecimento sobre a ideologia operante branquitude, ainda que causem sofrimento e angústia aos sujeitos envolvidos, pode contribuir para a subversão da lógica entre dominante e dominado.

As experiências de socialização são fundamentais para o esclarecimento e enfrentamento do preconceito, já que podemos entendê-lo como uma disposição psicológica, um fenômeno complexo e dinâmico constituído na relação entre indivíduo e sociedade (CROCHÍK, 2006). Para compreender o fenômeno do preconceito é fundamental entender o papel da cultura na sua constituição, uma vez que:

(...) na transmissão da cultura para as gerações mais jovens, já são transmitidos preconceitos: ideias que devem ser assumidas como próprias sem que se possam pensar na sua racionalidade e na consequente adesão ou não a elas (CROCHÍK, 2006, p. 19).

Os discursos racialistas moldaram a cultura brasileira, estabelecendo um lugar para o indivíduo negro, reproduzindo uma estrutura excludente, baseada na ideia de hierarquia racial. Logo, o desenvolvimento da subjetividade do afro-brasileiro, muitas vezes, se faz pela

negação de sua ancestralidade africana, na ratificação do histórico de escravização e pelo estigma de ter sido animalizado, em detrimento do processo de humanização associado aos brancos. A estrutura da desigualdade racial então se mantém. Se, no sistema escravagista, o negro era identificado por morar em senzalas, hoje, com a crescente urbanização, são identificados por morarem em favelas e bairros periféricos. Se, no sistema escravagista, os negros não eram considerados humanos, ainda hoje são identificados por piadas que os associam a animais e coisas (macaco, gambá; carvão, bombril etc.), demarcandoos sinais da antiga animalização e coisificação. A formação da subjetividade da pessoa negra é,muitas vezes, marcada pela violência, pois:

A violência parece-nos a pedra de toque, o núcleo central do problema abordado. Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais do Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro. (COSTA, J. C., 1983, p.2).

Os indivíduos negros, geralmente, sentem-se a ponto de serem vítimas da discriminação racial30, pois a sua cor de pele já os coloca em estado de permanente atenção. Possivelmente, suas memórias de infância trazem muitos exemplos de experiências dolorosas e de humilhação social, como indica a pesquisa de Calado (2007). Sobre a humilhação social, Gonçalves Filho (2002, p. 25) esclarece:

A humilhação marca a personalidade por imagens e palavras ligadas a mensagens de rebaixamento. São mensagens arremessadas em cena pública: a escola, a cidade, o trabalho. São gestos ou frases dos outros que penetram e não abandonam o corpo e a alma do rebaixado: o adulto e o idoso, já antes o jovem ou a criança, vão como que diminuir, vão guardar a estranha e perturbadora lembrança de quem a eles se dirigiu como quem se tenha dirigido ao inferior.

Os discursos veiculados nas mensagens de humilhação deixam o individuo perplexo, envolto em lembranças inquietantes, carregadas de sentimentos de angústia31, que agem no sujeito com a força de um golpe externo, mais que os alcança na subjetividade, cujos efeitos segue agindo. Assim, além da herança intergeracional, a hierarquia é reforçada no espaço

30

A discriminação racial pode ser entendida como o “ato de discriminar uma pessoa tendo como base sua raça/cor de pele, com a intenção de preteri-la, ofendê-la excluí-la ou inferioriza-la”. (SANTOS, G., 2009, p. 56)

31A angústia em psicanálise é definida como “o nome para afetos inomináveis é sempre a angústia, moeda dos

afetos traumáticos. O mais abstrato, e o mais humanos dos afetos, a angústia representa a ressonância em nós de um enigma intersubjetivo, um enigma que veio dos outros e no meio dos outros. Veio um inexplicável olhar ou

público, tornando-se, dessa forma, uma manifestação política da ideologia racista, complementado-a.

Dito de outro modo, a pessoa negra, para ser aceita por esse modelo de sociedade, é impelida a aproximar-se do ideal de branqueamento, sendo estimulada a identificar-se com o branco; processo esse inconsciente e, muitas vezes, estimulado pela falta de modelos identitários positivos, já que o negro é recorrentemente inferiorizado. O ideal de branqueamento permeia a constituição da subjetividade do afro-brasileiro e podemos observar as manifestações sintomáticas disto. Segundo Ferreira (1999), o referencial do negro sobre padrão de beleza é o da pessoa branca, uma complicada problemática para o afrodescendente, fazendo-o renegar as características ligadas à sua ancestralidade, ainda que inconscientemente. A identificação com os ideais e valores europeus tem como consequência a inferiorização da beleza negra, e também uma percepção desvalorizada acerca de si mesmo. As relações raciais são complexas e permeadas de preconceitos expressos nas atitudes de discriminação, quase sempre envolvendo operações psíquicas intrincadas. Nesse sentido, Horkheimer e Adorno (1973, p. 173-174) afirmam que:

As grandes leis do movimento social não regem por cima das cabeças dos indivíduos, realizando-se sempre por intermédio dos próprios indivíduos e de suas ações. A investigação sobre o preconceito tende a reconhecer a participação do momento psicológico nesse processo dinâmico em que operam a sociedade e o indivíduo.

Os estudos sobre a personalidade autoritária de Horkheimer e Adorno (1950) nos ajudam a melhor entender a dinâmica do preconceito, no qual as ideologias sociais, políticas, religiosas são transformadas em justificativas para disfarçar nos outros  alvos do preconceito, da discriminação  conteúdos reprimidos presente naquele que discrimina. O preconceito pode ser então entendido como fenômeno presente na cultura, no qual os diversos valores se transformam em juízos preconcebidos, mediante representações que o sujeito tem sobre a realidade. Essas representações são tomadas de forma rígida, “o indivíduo se apropria de estereótipos e os modifica de acordo com as suas necessidades; contudo, as ideias sobre o objeto do preconceito não surgem do nada, mas da própria cultura” (CROCHÍK, 2006, p. 14).

A desvalorização da cultura africana e afro-brasileira resultou na dificuldade de construção da subjetividade do afro-brasileiro, cujas contribuições à formação da identidade nacional foram silenciadas, numa tentativa de apagamento de sua história. Ora, se, por um lado, no imaginário social, foi-nos incutida a ideia de que vivemos sob a vigência da

democracia racial; por outro, a realidade contradiz o ideário. Nesse horizonte, os negros enfrentam barreiras fulcrais no processo identitário. Um processo que se realiza sob o olhar do outro que silencia  o branco hegemônico para o qual sua brancura já o coloca em uma posição de vantagem simbólica e material. Para o indivíduo negro é necessário um longo e doloroso caminho na desconstrução desta percepção depreciativa de si mesmo, imposta pelo ideal eurocêntrico  sob a cumplicidade do branco  e internalizada pelo indivíduo negro, por meio de suas experiências cotidianas.

À guisa de reflexão final sobre os conceitos e debates apresentados neste capítulo, consideramos que, não obstante pensarmos o período que se segue à Constituição Federal de 1988 como o de emergência de um novo enquadre, o caminho que assegurará a desconstrução da ideologia secular que legitima, em nosso país, as exclusões social e racial é ainda longo. E, aqui, ganha relevo o papel da educação escolar. Se a valorização da herança cultural dos povos que formaram nosso país constitui o passo inicial para reverter a negação que caracterizou a construção da subjetividade do afrodescendente no Brasil, caberá à escola, agência responsável pela transmissão da cultura erudita, desempenhar um papel fundamental no desmonte do construto ideológico da hierarquia racista. No próximo capítulo, apresentamos algumas das razões que nos fazem atribuir à escola papel de destaque no combate ao racismo.