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Algumas considerações sobre o desporto e o homem

No documento A Educação (Fisica) Vale? (páginas 111-116)

3. PRAXIOLOGIA AXIOLÓGICA: A EDUCAÇÃO, A EDUCAÇÃO FÍSICA E O

3.3. A Educação Física

3.3.2. Algumas considerações sobre o desporto e o homem

polissêmica discussão sobre desporto na escola e desporto da escola32 (Tani, 2007). Nem nos enredamos pelos detalhes históricos e ideológicos que influenciaram as distintas concepções de educação, como analisou Bracht (1999). Nem quisemos aprofundar no que seria o “manual” da EF de que falaram Tani e Manoel (2004). Além de não serem poucos os que se dedicam a estes debates, recorrer aos mesmos nos afastariam demasiado de nossos intentos. Nosso propósito ao refletir nesta temática não ousa ultrapassar dois modestos objetivos: primeiro, demonstrar que a EF ainda não possui uma clara identidade; e segundo, salientar que este problema é essencialmente axiológico.

Graça (2004, p. 100) afirma que qualquer disciplina curricular legitima-se na escola a partir de seu efetivo valor educativo, na esperança do seu potencial para a melhoria da vida pessoal e social. O problema da EF, semelhantemente ao que ocorre com a educação, é um problema axiológico. Os embates se colocam fundamentalmente no campo dos valores. Em suma – lembrando ser imprescindível levar em consideração suas potencialidades e limitações – trata- se da dificuldade em discernir o mais valioso do menos valioso na e através da EF. Por trás dos distintos enfoques e perspectivas que lhe pretendem dar estatuto, há uma hierarquia axiológica, uma noção valorativa, que fundamenta estas mesmas concepções. Saúde, conhecimento cultural, treino do corpo, pedagogia crítica, socialização, não só indicam distintas visões de enfoque da EF, mas também refletem o que é tido como fundamental para o desenvolvimento do indivíduo, o que acredita-se ser mais importante, ou seja, mais valioso.

3.3.2. Algumas considerações sobre o desporto e o homem

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Refere-se aqui a algumas divergências de pensamentos. Simplificada e resumidamente, o primeiro defende a presença do desporto, com suas devidas normas e regulamentos, no contexto escolar, adequando-o às finalidades, propósitos e pressupostos pedagógicos da Escola. Já o segundo, advoga a presença única de um desporto distinto e específico para a Escola, ou seja, uma prática reformulada em nível de regras, regulamentos e objetivos que não se assemelhe àquela praticada no desporto de alto rendimento. Pode-se também compreender desporto da escola como aquele conceituado para o contexto da EF escolar, sem abdicar da sua “essência” como desporto, enquanto que o desporto na escola como a prática desportiva disponibilizada por esta, fora dos horários letivos, tanto à alunos como à comunidade. Para mais detalhes, em particular deste último entendimento, ver Tani (2007)

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Após desenvolvermos alguns pontos sobre a EF, e antes de nos debruçarmos numa análise sobre o professor, toma espaço nas próximas linhas um olhar voltado para o que os precede, no sentido restrito e pontual do termo. Este tópico aparece entre as duas temáticas no intuito de firmar-se como nuclear ou referencial no discurso em relação a estes periféricos. Pois o desporto era antes da disciplina escolar. E, paralelamente, antes de abraçar qualquer profissão o indivíduo precisa assumir-se em sua condição humana. As relações e impressões a respeito de desporto e do homem, contextualizadamente, terão implicações diretas na maneira como professores e alunos experienciarão os valores através das aulas de EF. Sem mais demora, vamos a eles.

Embora não possua um conceito teórico muito bem delimitado (Matos, 2002), muitos se arriscam na tarefa de definir e caracterizar o Desporto. Para Bento (2007), o desporto é pedagógico e plural, possuindo carácter competitivo e de rendimento em todos os seus sentidos. Queirós et al. (2008) em paralelo a Gaya e Torres (2004) reafirmam a presença essencial do rendimento e da competição para haver desporto. E estes autores, juntamente com Monteiro e Garcia (2009a), Tani (1996) e Tani e Manoel (2004), ressaltam o carácter polimórfico e polissêmico do desporto, permeado pelos distintos propósitos, formas e manifestações a ele atribuídos e experienciados. Portanto, diz Bento (2002), o desporto só existe por ser idealista, justificado no contexto ético e cultural.

No olhar de Garcia (2002), desporto e axiologia estão lado a lado. A prática das atividades físicas33 é reconhecida por Brás (2005) como “práxis axiológica” (idem, p. 57), o que faz entender sua dimensão humana e ética, até mesmo uma “filosofia prática” (idem, p. 58). Ou seja, o desporto tido como “cânone de valores” (Bento, 2004, p. 32), “campo da educação” (Queirós et al., 2008, p. 417). É pela abordagem ética que compreendemos o desporto em sua plenitude (Matos, 2006). E, sendo que a ética passa pela reflexão dos valores,

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Conceber equidade entre os termos “atividade física” e “desporto” revela-se num intento problemático. Bento (2007) tece severas críticas à forma como o termo atividade física vem sendo utilizada, o qual considera ser vago e inapropriado. Paralelamente, como já salientado, Tani (2007) concorda com esta visão ressaltando os resultados negativos desta terminologia para a determinação de uma identidade coesa da EF.

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mas toma forma e sentido no quotidiano (Caetano e Silva, 2009), as experiências no desporto configuram-se hoje num misto entre seus ideais e alguns outros – por vezes estranhos – oriundos de quem do desporto se apropria.

Já o homem, praticante ou não deste desporto, é enxergado por Matos (2002, p. 237) globalmente, como uma “unidade totalizante”, indivisível em corpo e espírito, vivo em sua dimensão intelectual, emocional, física e espiritual. Segundo Garcia (2002, p. 220), homem se é por estar situado no tempo e no espaço, possuindo marcas provenientes dos mesmos. Atribui-se a ele diversos significados como Homo Ludens, Homo Humanus, Homo Aesteticus, Homo Aeticus; do que vive o desporto os Homo Sportivus e Homo Olimpicus, conforme evoca Bento (2004). Contudo, parece o Homo Light ser aquele visto mais frequentemente nos dias de hoje, e não se sabe se os outros foram dar uma volta rápida ou se a viagem de regresso será longa.

Necessitamos, como homens, compreender o mundo onde vivemos (Garcia, 2002). E há-de conhecer-se a si próprio. Saber se vive ou se apenas sobrevive; pedindo licença para utilizar-me do neologismo: “subvive”. Pois, nas palavras de Brás (2005, p. 57) “é-se pessoa no mundo das qualidades. Não é o tudo vale. Perante as diferentes possibilidades, o homem não fica indiferente, neutro. É afetado pelo valor do que vale aquilo que conduz cada um dos caminhos que pode tomar”. Já dizia a sabedoria popular ao ensinar “que somos aquilo que comemos”, seja com a boca, com os olhos, os ouvidos e/ou qualquer outra fonte de captação humana. O destino é nossa mente e nosso coração, que regurgitarão a qualquer momento – a todo momento – expondo o ingerido e contaminando os outros que se alimentarão de nossa influência, seja ela benéfica ou maléfica. Como vê-se, inevitavelmente nos confrontaremos com os valores e tomaremos decisões para esquerda ou para direita, para frente ou para trás, para baixo ou para o alto. Embora acredite-se ser o homem dotado de liberdade para agir e decidir, para educar e ser educado, num projeto estruturado pelo que ainda não é, lamentavelmente, o Homem tornou-se o “pior estorvo para o seu destino” (Matos, 2002, p. 241). E o desporto sofreu por ser outro palco para estas mazelas. Nas palavras de Lacerda (2002, p. 18) “as

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condutas morais não estão, claramente, na ordem do dia. Em qualquer domínio da vida humana e, por isso, também no Desporto”.

A história do Desporto constitui-se impregnada pelo contexto axiológico. O homem contribuiu para manchar e exaltar a ética e a moral, enunciados nos grandes e pequenos momentos desportivos; contemplados desde a areté e a paidéia da Grécia Antiga ao grotesco e sanguinário passatempo dos romanos nas arenas de gladiadores. Contemporaneamente, a parceria inevitável e essencial entre o homem e o desporto provoca fantásticos feitos e emocionantes experiências, mas em contrapartida provoca-nos também algum espanto (Bento, 2004).

A atmosfera moral atual é, assinala Crespo (2005), dominada pelo consumo; indo contra os ideais do desporto e surtindo na ruptura do homem consigo mesmo. A noção de puro rendimento e lucro – contaminação da óptica mercadológica e capitalista – empobrece o desporto e o homem, e põe a indústria do desporto como provedora de uma “anestesia geral” (idem, p. 28), oferecendo uma vida ilusória e alienante para a construção do homem. Atletas tornam-se produtos perecíveis e se submetem a excessos contra o próprio corpo sem ponderar as consequências futuras. Paralelamente, Brás (2005), ao discursar sobre a Ética do prazer, referenciada linhas acima, amplia o debate acusando a máxima do “culto do espetáculo” (idem, p. 62), onde o limiar das exigências encontra-se na satisfação dos espectadores, sendo pouca ou nula a preocupação do que isto resultará para o atleta. Enxerga-se este como meio para atingir certos fins, sejam eles até mesmo destruidores de quem foi instrumento para os alcançar. Diz ainda que “corre-se o risco de transformar o atleta num gladiador de circo” (idem). Tal comparação nos remete a recordar, nas palavras de Bento (2004), a fase vergonhosa e repugnante do que se chamou desporto na era dos imperadores de Roma, onde o espetáculo consistia numa carnificina aplaudida por mãos covardes e inconsequentes, interessadas em um prazer no ápice do egoísmo e descaso pela vida humana. Receio estarmos caminhando em retorno a tão negro passado.

Crespo (2005) diz ser, no panorama vigente, ideia vulgarizada a relação de proximidade entre o desporto e a saúde, devido a falta de escrúpulos e

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limites na preparação de atletas e no ambiente desportivo de alto rendimento34. Salientamos também, a lembrança feita por Brás (2005, p. 66), revelando a presença do doping não somente nos terrenos da elite desportiva, mas sua afirmação crescente na população de massa, na “febre do body-building”, no culto ao corpo da moda, almejado e cultivado nas academias e ginásios de ginástica.

A vitória não é o objetivo final do desporto (Queirós et al., 2008); e Pierre de Coubertin, lembrado por Crespo (2005, p. 32), já nos primeiros anos do século XX, alertava que “a obsessão pela vitória reduziria os homens à expressão mais simples”. Tratar o desporto como mero produto de mercado, ou pior, tornar o próprio homem do desporto comercializável – seja um atleta a praticar no Estádio de Wembley ou uma criança num campo de várzea – é rebaixá-los por demais. “O desporto é uma atividade de excelência humana que goza da maior credibilidade e respeito universais” (Monteiro e Garcia, 2009a, p. 3), contudo, no presente, escreve Crespo (2005, p. 33), a “riqueza do desporto” torna-se completamente estranha ao modo vil como tem sido utilizada. De facto, parece que algo se perdeu; talvez, outros aspectos tenham “merecido” mais valor que os Valores.

Aparentemente, mas só aparentemente, em contradição com o que foi dito no início deste tópico, enfatizamos que a o desporto parece ter nascido por uma necessidade de completude na educação do homem. Independentemente de sua origem ser identificada na Grécia Antiga ou na Inglaterra do século XVIII, ambas apresentam razões e finalidades fundamentalmente pedagógicas (Moura, 2007). E, partindo deste referencial no tempo, esbarramos no referencial transmissor ou, pelo menos, aquele que se ocupa desta função. A educação não acontece espontaneamente, por acaso, “do nada”. Transmitir não significa necessariamente forçar, bloquear a autonomia ou exercer

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Sobre o assunto, ressaltamos o trecho onde o autor salienta: “Os referidos excessos no treino, as competições que se repetem, o alongamento e a acumulação de esforços nas fases de preparação dilatam a realidade da própria competição, o medo de não atingir os objectivos, de não se integrar no jogo, de perder e de se perder em círculos viciosos. Tudo é orientado, pois, para a fadiga generalizada, a fadiga crónica, a depressão e a melancolia, o desgosto e a monotonia dos factos repetidos sem sentido. […] enfim, o corpo paga o preço de uma corrida incessante em busca de vitórias efémeras, quando surge a reflexão, o silêncio, o esquecimento” (p. 31).

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autoritarismo. Simplesmente expressa que há uma liderança ativa, que pode perfeitamente ter um propósito de servir aquele que anseia por aprendizado, carece de conhecimento e é potencialmente apto para desenvolver-se. “Atitudes e valores podem ser aprendidos (ser melhorados, ser alterados, incorporar outros novos) e, portanto, devem ser ensinados” conclui Zabalza (2000, p. 94). A óbvia noção de que não nascemos prontos e de que alguma mudança significativa – partindo de um ponto pior e inferior para um melhor e superior – é demasiado custosa, morosa e árdua parece não ser mais tão evidente assim.

Será que ainda existem professores? Está este ofício a beira da extinção?35 Sobreviverá nesta “seleção antinatural” onde a lei do mais relativo é que prevalece? Se o alvo da Escola afigura-se à mercê das mutações culturais, há espaço para quem sonha dedicar-se a ensinar e aprender nesta aclamada pluralidade e “igualdade” pós-moderna?

No documento A Educação (Fisica) Vale? (páginas 111-116)