• Nenhum resultado encontrado

Algumas pontuações

No documento PORTCOM (páginas 180-186)

Elizabeth Bastos Duarte

2. Algumas pontuações

Tradição já antiga na programação televisiva nacional, os

sitcoms chegaram inicialmente como produtos importados

das emissoras americanas. Aos poucos, os canais brasileiros passaram a apostar em sua produção, aproveitando-se da lar- ga experiência adquirida com as telenovelas.

Os primeiros sitcoms nacionais surgiram já no final dos anos 50, ainda fortemente inspirados nos formatos norte- -americanos mais usuais. Um exemplo exitoso foi o Alô

doçura (1953-1964), baseado em I love Lucy (1951), exi-

bido pela extinta TV Tupi, tendo como protagonistas Eva Wilma e John Herbert, falando das dificuldades de relacio- namento entre homem e mulher.

A partir do final dos anos 60, não obstante, o subgênero ganhou espaço na telinha passando a conferir maior aten- ção à realidade nacional, com produções como A família

Trapo (Record, 1967-1971) e A grande família (RGT,

1972-1975), centradas no cotidiano de grupos familiares com características bem brasileiras. Fundadas, inicialmen- te, na série norte-americana All in the family, tanto a

Família Trapo, como, depois, A grande família, con-

figuraram-se como crônicas irônicas do cotidiano familiar da classe média-média brasileira. Mas, a temática família, aos poucos, foi-se esgotando, havendo sido relegada, por um longo período, ao esquecimento. A retomada aconte- ceu com Sai de baixo que, durante seis anos (1996/2002), trouxe de volta à televisão brasileira a comédia de situação fundada na representação do grupo familiar1. Nesse rastro,

1. A estrutura do programa previa sua gravação com platéia, no teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, como acontecera com a Família

Trapo: apresentações ao vivo, os improvisos indo ao ar. Se fosse

em 2001, A grande família retornou em uma segunda versão, mais sofisticada, que, surpreendentemente, como já se referiu, se mantém no ar até hoje com um enorme su- cesso de audiência.

Não é fácil para qualquer tipo de seriado, seja ele policial, de aventura, ou mesmo um sitcom, cair no gosto do teles- pectador como aconteceu com A grande família. Em que pesem os atributos do próprio produto, cabe ainda uma boa definição de seu público alvo, de seus gostos e preferências, dos horários em que esses telespectadores estão disponíveis. Para além disso, a serialidade não diz respeito somente a esse tipo de organização exterior ao programa: ela incide forte- mente sobre a própria estruturação interna do produto.

A grande família conforma-se como um tipo par-

ticular de sitcom que se distingue de outros produtos do subgênero pela forma de interação que propõe ao teles- pectador, ou seja, pelo tom. Trata-se de uma comédia de situação, uma crônica do cotidiano, apresentada, às quintas- -feiras, às 22h, sob a forma de episódios semanais, que variam entre 30 e 40 min., estruturados em três blocos, tirante os dois intervalos comerciais. O programa adota o esquema de temporadas que vão de abril a dezembro: a cada temporada, novos elementos são adicionados à trama, com vistas a mobilizar o telespectador. Ao abrigo da fic- ção, o programa não tem compromisso direto com o real, mundo exterior, embora se proponha a retratá-lo de forma lúdica; centra-se em situações de âmbito familiar e afetivo,

eram editados, aparecendo no final do programa, como se a tele- visão mostrasse o programa em-se-fazendo. Novamente nesse caso, o diferencial do formato em relação aos sitcoms norte-americanos circunscrevia-se ao tom, bastante mais informal e escrachado: os atores frequentemente interagiam com a platéia, esqueciam as falas ou riam-se das situações que estavam interpretando.

também abordando questões profissionais. Cada episódio se apresenta como um relato independente, com início, meio e fim, adotando uma estrutura narrativa flexível e criativa. Assim, ainda que seja possível assistir aos episódios indi- vidualmente, eles fazem parte de um todo coerente: cada história é contada de modo a se inserir no conjunto pro- posto para e pelo programa, ou seja, respeitando às suas características na globalidade. Neles, o que importa, mais do que piadas e/ou trocadilhos, são as situações vivenciadas pelos personagens: todo episódio constitui-se na resolução de uma situação-crise independente, apresentada no início da emissão e resolvida no seu interior.

De modo geral, as emissões mantêm uma estrutura nar- rativa fundada na alternância entre a repetição e introdução de elementos novos, possibilitando ao telespectador acu- mular conhecimentos em um contexto da estabilidade: o fato de a organização narrativa manter uma constância, de os cenários serem os mesmos, de os personagens principais retornarem a cada semana para enfrentarem novos desafios é simultaneamente instigante e tranquilizador.

A trama de A grande família organiza-se em torno das ligações existentes entre o cotidiano, a narrativa e a fic- ção, atualizando temas muitas vezes relevantes – poderiam alimentar tragédias se seu tratamento tonal não fosse a um só tempo sério e lúdico, intercalando momentos de serie-

dade com a apresentação sistemática e reiterada de situ- ações tragicômicas, inerentes à própria vida, que ofere-

cem objetos ou acontecimentos engraçados ou ridículos a quem esteja atento e seja capaz de identificar esses traços. A construção do humor exige a conciliação dos cenários, pois o humor está a meio caminho entre o sério e o lúdico.

O programa utiliza-se de um formato simplificado: os baixos custos de produção sustentam-se, assim, em uma ação que se desenrola preferencialmente em espaços internos, construídos e

instalados em estúdios, combinados com algumas poucas cenas externas, na maioria das vezes na cidade cenográfica que o Pro- jac criou para o programa. As cenas verdadeiramente externas, de forma geral, resumem-se a vistas panorâmicas, inseridas entre uma sequência e outra, com o objetivo de dar ciência do local onde se passa a ação, podendo apresentar-se, em determinados momentos, como paisagem natural, real, e, em outros, como ce- nário, representação.

Além disso, para sustentar esses relatos curtos, o seriado conta com um pequeno elenco fixo, lançando mão, quando é o caso, do recurso a participações especiais. Seus persona- gens são construídos de maneira estereotipada, pois, devido à curta duração dos episódios, a identificação do especta- dor precisa ser imediata. Assim, os protagonistas principais obedecem, de forma geral, a certos rituais, que, pela sua recorrência, aliada à insistência em determinadas temáticas, temporalidades, espaços de ação, e mesmo bordões, garan- tem a unidade do programa.

Esta reinterpretação contemporânea da série original (criação de Oduvaldo Vianna Filho), exibida entre 1972 e 1975, conta com redação final Bernardo Guilherme, Mar- celo Gonçalves e Mauro Nilson, direção de Luis Felipe Sá e produção de Guel Arraes. Com muito bom humor, retra- ta o cotidiano de uma família classe média-média brasileira que habita um subúrbio do Rio de Janeiro. Lineu (Marco Nanini), um fiscal sanitário politicamente correto, é casado com a dona-de-casa Nenê (Marieta Severo), esposa dedica- da, competente e mãe zelosa. Ele quebra os galhos dos dois filhos adultos, a mimada Bebel (Guta Stresser) que mora na casa ao lado à sua com o genro malandro, Agostinho (Pedro Cardoso) e o neto; e Tuco (Lúcio Mauro Filho), solteiro, pre- guiçoso, acomodado. Para compor a trama, circulam ainda os amigos e vizinhos da família: Mendonça (Tonico Pereira), o chefe de Lineu; Marilda (Andréa Beltrão), a cabeleireira

e maior amiga de Nenê, que agora se retirou do programa; Beiçola (Marcos Oliveira), o dono da pastelaria; Gina (Natá- lia Lage), a namorada de Tuco; Paulão da Regulagem (Evan- dro Mesquita), o mecânico ignorante e metido a conquista- dor que é sócio de Agostinho; Abigail (Marcia Manfredini), a vizinha intrometida e mau caráter que vive atualmente com Beiçola, entre outros.

De modo geral, os episódios de A grande família or- ganizam-se narrativamente a partir das armações de Agos- tinho, que despertam a fúria e os chiliques de Bebel, os cuidados de Nenê e os sermões de Lineu, sempre dosados pela despreocupação de Tuco.

A temporada de 2011 trouxe algumas transformações signi- ficativas na narrativa: Agostinho e Tuco tornaram-se mais ma- duros, responsáveis, e até mesmo trabalhadores. O genro de Li- neu fez uma sociedade com Paulão da Regulagem e abriu uma

empresa de táxi, a Táxi Carrara ou a Carrara Táxi, na qual agora Tuco trabalha. Mas as armações e confusões provocadas por Agostinho continuam tirando o sossego de Lineu.

Tudo indica que esta segunda versão de A grande fa-

mília, depois de 11 anos no ar, já não tenha um futuro

muito longo pela frente, pois os atores que desempenham os papéis principais estão visivelmente envelhecendo, não sendo mais condizentes com os personagens que represen- tam. As narrativas vêm procurando adaptar-se a essas trans- formações; mas elas estão chegando ao limite, podendo comprometer a concepção geral do programa. Resta ver o que a temporada de 2012 traz de novidades!

O que interessa aqui, não obstante, é refletir sobre o mé- rito incontestável de A grande família: trata-se de uma produção pensada e realizada com esmero, contando com um elenco de primeira grandeza, a que se somam a quali- dade do texto, e uma atenção especial aos cenários, figuri- nos e adereços, além de uma pós-produção cuidadosa. Em 2008, a série, aliás, recebeu a indicação ao prêmio Inter- national Emmy Awards, considerado o Oscar da televisão internacional pela atuação de Pedro Cardoso.

Do ponto de vista das novas tecnologias, A grande fa-

mília é um dos primeiros programas que a Globo passou

a exibir em alta definição. E, como na era da TV digital, a mais insignificante imperfeição pode ficar gritantemente feia na tela, a nova tecnologia passou visivelmente a exigir muito mais ainda da equipe de produção no que concerne aos detalhes da decoração, figurinos, penteados, que sempre desempenharam papéis importantes na narrativa.

Mas, não é preciso avançar muito na análise de A gran-

de família para constatar que o programa se distingue de

outros sitcoms porque investe estrategicamente em formas

de endereçamento, ligadas a determinadas configura- ções discursivas de interação, que passam a funcionar

como uma chave de leitura e de controle mais efetivo dos sentidos veiculados. Outras séries também possuem núcle- os cômicos; entretanto, o plus de A grande família em relação a outros seriados do subgênero liga-se exatamente a uma articulação específica entre o tom e o ritmo e à manutenção e reiteração dessa especificidade no decorrer dos episódios.

No documento PORTCOM (páginas 180-186)