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Apontamentos finais

No documento PORTCOM (páginas 194-199)

Elizabeth Bastos Duarte

4. Apontamentos finais

Embora as temáticas abordadas em A grande família sejam extensivas aos seres humanos em geral no contex- to do mundo contemporâneo, as inquietações, aspirações e trapalhadas vivenciadas pelos personagens estão impreg- nadas por um tom de carioquice, manifesto não só pelos locais e espaços por onde circulam os personagens, como por seus hábitos, cultura e valores, linguagens. Há uma di- mensão social no humor exibido, no tom adotado pela nar- rativa que atualiza os problemas vivenciados por uma classe média-média, moradora dos subúrbios das grandes metró- poles brasileiras. Mas, para além disso, no sincretismo da encenação, as linguagens articulam-se em uma composição elaborada com esmero, responsável pela manifestação de sentidos e tonalidades que conferem à carioquice traços de malandragem, malícia, safadeza. Assim, a universalidade dos temas tratados está impregnada desse tom local de carioqui-

ce: as falas dos atores carregadas de gírias e de um sotaque

carioca, o emprego do você, a configuração de cenários e figurinos, os gestos e expressão facial, as músicas de fundo, nada é imotivado. Daí por que a combinatória tonal que perpassa os episódios se reveste de um humor marcado pela combinatória de traços de leveza, malandragem, perspicácia,

safadeza. E as seleções e deliberações tomadas em nível de

roteiro apontam para isso.

A experiência desses onze anos de permanência na pro- gramação da emissora demonstra que a escolha da combi- natória tonal foi acertada. Mas, sem a intenção de morali- zar a questão, com essa opção formal, o programa abdica

da dimensão política presente na primeira versão, em prol da pretensão de falar para todos, de a todos interpelar. A consequência dessa escolha é a necessidade de reafirmação de valores próprios de uma família de subúrbio, mesmo quando a intenção é introduzidos temas mais ousados e polêmicos.

Na configuração do tragicômico, há uma recorrência insis- tente a procedimentos discursivos responsáveis por efeitos de sentido que oscilam entre ironia, simploriedade e safadeza, entremeando calorosas discussões existenciais a gozações de todo tipo; a exposição, às vezes delicada e suave, de afetos a situações cômicas. Todas essas estratégias concorrem para garantir uma certa neutralização da tensão decorrente da oposição entre a sobriedade, representada por Lineu, e a ludi-

cidade e safadeza, configurada por outros personagens. Não

há apenas a mera intenção de fazer piada, mas de apresentar situações engraçadas e familiares aos telespectadores.

Assim, frente ao tom de amoralidade e safadeza que preside a ação de alguns personagens e à atitude de complacência, por parte de outros, o texto do programa introduz uma outra to- nalidade correlata, a de acomodação, permissividade, que faz dos demais personagens da narrativa coniventes. Mais ainda: os altos índices de audiência do programa indicam que todos nós, te- lespectadores, nos tornamos cúmplices, comparsas na safadeza. Sim, porque a verdade é que todos gostamos desses persona- gens, independentemente de suas sacanagens e desonestidades: enquanto Lineu é ridicularizado por sua correção e honestidade, apresentadas como caretice, Agostinho acaba sempre se dando bem, sendo socorrido por todos.

Cada programa tem o seu estilo, o seu andamento, e, para fazer rir, é preciso respeitar tudo isso e correr atrás da graça esteja ela onde estiver. E isso A grande família sabe fazer: o humor é uma questão de compreensão, identificação e gosto, tanto de quem vê, como de quem faz. Trata-se de um

humor que se constrói na concisão e precisão, excluindo tudo que impeça a história de avançar: cada episódio bus- ca o que, na narrativa, é realmente necessário para fazer o conteúdo avançar até chegar ao humor, mobilizando, como já se referiu, outras categorias tonais além de disposição, tais como atitude, espessura, intensidade, peso, então a serviço do tom predominante. Dessa forma, o texto de A

grande família oscila entre um tratamento sério e lúdico,

suave e ríspido, superficial e profundo, leve e pesado, simples e com- plexo, disperso e concentrado dos temas propostos, fazendo com

que as narrativas assumam esse tom de crônica do cotidiano, inteligente e bem-humorada, que vem firmando o interesse do telespectador em relação ao programa. Mas, a permissi- vidade e conivência, tão bem traduzidas pelo programa, não provocam as alterações necessárias frente a um comporta- mento aético e apolítico, que parece ser marca registrada do nacional, embora isso incomode a muitos brasileiros.

Sucesso de público e crítica, A grande família tornou-se uma das principais audiências da TV Globo. A própria RGT tem lançado outros sitcoms nessa vertente do grupo familiar (Toma lá, dá cá), mas nenhum se manteve no ar. A família Silva conseguiu entrar na casa dos brasileiros pela porta da frente e acabou se instalando de vez. E não há mesmo quem consiga manter a seriedade diante das situações para lá de hilariantes em que esse pessoal costuma se meter. Mas esse tom de carioquice não só é lido pelos telespectadores como extensivo a todos os brasileiros, como por eles naturalizado: afinal, o Rio de Janeiro foi, durante muito tempo, a capital desta República. Assim, embora Lineu seja o personagem a quem cabe denunciar a carência de padrões éticos e mo- rais que campeia na pequena comunidade suburbana, cuja ação e atitudes são presididas pela lei da sobrevivência, esse tom lúdico, irônico, eivado de traços de malandragem, picardia,

prevalece, representado particularmente pelos personagens Agostinho, o genro de Lineu; Mendonça, o chefe de Lineu; Paulão da Regulagem, o mecânico; e, de certa maneira, por Tuco. E esses traços ficam estampados, antes que eles falem ou ajam, pelo seu figurino.

Referências

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10.

Cultura da tecnofilia e imaginários

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