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Alguns comportamentos compulsivos e os conceitos

VII. Obsessões religiosas

5. A BUSCA DE UM MODELO ANIMAL PARA O TOC: O

5.3 Alguns comportamentos compulsivos e os conceitos

A extensão da aplicabilidade do conceito de padrão fixo de comportamento vem sendo questionada desde sua proposição inicial por Lorenz, e o próprio Tinbergen, um dos autores mais influentes do início da etologia, passou posteriormente a evitar todo tipo de conceito que remetesse a concepção de instinto (Marler, 2004), após críticas que afirmavam haver um caráter determinista e uma visão simplista por trás desta idéia .

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Fora desta arena, porém, tais conceitos vêm encontrando um valor heurístico: retomemos a sugestão de Brüne, que propõe que os tiques humanos possam ser considerados como padrões fixos de ação. Lembrando, um tique é definido como um movimento motor ou uma vocalização súbita, rápida, recorrente, não rítmica e estereotipada, podendo ser classificado como simples ou complexo. Os tiques motores complexos incluem a ecopraxia, ou imitação de gestos realizados por outros, e a copropraxia, ou realização de gestos obscenos, enquanto os tiques vocais complexos incluem a ecolalia, ou repetição de sons emitidos por outros, e a coprolalia, ou emissão de palavras obcenas. São frequentemente apresentados movimentos como sacudir a cabeça (semelhante ao movimento de negação), dar de ombros , expressões faciais semelhantes a caretas , colocar a língua para fora, e sons semelhantes a latidos, ranger os dentes e respiração ofegante. Os tiques complexos podem também organizar-se e serem ritualizados (Hounie e Petribú, 1999).

Conforme anteriormente assinalado, diversas pesquisas indicam que alterações orgânicas de etiologia diversa numa região cerebral específica, os gânglios basais, podem desencadear um transtorno de tiques.

Todos estes aspectos, tanto relativos às características morfológicas das ações motoras, quanto àqueles relacionados ao desencadeamento destas ações a partir de disfunções cerebrais reforçam a sugestão da existência de padrões comportamentais de natureza pré- programada, que se manifestam de maneira relativamente uniforme, já que é possível identificar categorias, conforme as acima descritas. Muitos dos tiques referidos assemelham- se a padrões expressivos, como caretas e vocalizações. Particularmente interessante é a presença da ecolalia e ecopraxia, associadas ao comportamento de imitação, filogeneticamente mais recente e de papel fundamental no desenvolvimento de capacidades especificamente humanas como a linguagem.

Se por um lado, todos estes aspectos sugerem uma similaridade maior com o que tem sido designado como padrão comportamental ritualizado, dadas as suas características expressivas, a natureza aparentemente disfuncional e desvinculada de um contexto comunicativo parece mais próxima do que foi descrito em item anterior como estereotipia comportamental. A semelhança com ações ritualizadas vai de encontro à sugestão da literatura de que as estereotipias comportamentais podem ser derivadas deste tipo de padrões comportamentais. Podemos abordar então o fenômeno dos tiques como estereotipias comportamentais humanas que, da mesma forma que as estereotipias comportamentais apresentadas por animais em certas circunstâncias, seriam derivações de padrões

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comportamentais ritualizados. Nesse sentido, a investigação dos transtornos de tique poderia fornecer pistas para a compreensão de possíveis padrões ritualizados humanos.

Consideremos agora a afirmação de Pitman, que propôs que as atividades deslocadas poderiam ser análogas aos sintomas obsessivo-compulsivos, enquanto tendências

habituais ou inatas de resposta que são desencadeadas em situações de ameaça, estresse ou ativação emocional. As características fundamentais das atividades deslocadas são a sua aparente descontextualização, que sugere uma ausência de função ou meta imediata, a associação com situações de conflito motivacional, e a apresentação de padrões típicos. A abordagem atual do TOC considera que as ações compulsivas são uma resposta à ansiedade provocada pelas obsessões, e podem também ser desencadeadas ou intensificadas em situações de estresse. Para um observador externo, parecem ações fora de um contexto: bater duas vezes do lado direito da cama, depois duas vezes do lado esquerdo antes de deitar, lavar as mãos repetitivamente sem que elas estejam sujas, abrir e fechar a janela várias vezes consecutivas. Os rituais compulsivos são característicos, embora possam ser observadas idiossincrasias.

Poderíamos supor que o predomínio de rituais ligados à limpeza, como os sintomas mais freqüentes do TOC nos diversos levantamentos, pode estar ligado aos comportamentos de auto-cuidado comumente observados como atividades deslocadas.

Os padrões compulsivos do TOC podem estar relacionados a padrões ritualizados humanos, isto é, podem ser conseqüência da estereotipização de padrões comportamentais humanos filogeneticamente ritualizados. Evidentemente, as implicações desta conclusão envolvem a consideração da existência de padrões humanos ritualizados de natureza filogenética, o que é uma proposição que tem gerado numerosas controvérsias, especialmente quando aplicada à fenômenos expressivos humanos mais complexos. Rituais humanos são tradicionalmente considerados como produções culturais. Fora do campo da etologia e das abordagens evolucionistas, a cultura ainda não é considerada como parte da natureza. Permanecem os velhos preconceitos, que relacionam a idéia de uma natureza humana, no sentido biológico, com um determinismo limitante.

A crescente incorporação de uma noção de flexibilidade dentro dos conceitos de determinação genética, com a substituição de uma divisão dicotômica entre comportamento inato e comportamento aprendido por uma visão integradora, que busca identificar o papel da influência ambiental nos comportamentos geneticamente modulados, ainda encontra pouca repercussão em outras áreas do conhecimento humano. Permanece o velho embate natureza / criação .

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Na verdade, mesmo dentro do campo da etologia e da psicologia evolucionista, o conceito de ritualização filogenética tem sido pouco utilizado na investigação do comportamento humano. As poucas exceções referem-se sobretudo aos estudos com expressões faciais. Nesta área, destaca-se o trabalho de Eibl-Eibesfeldt (1975), que realizou uma cuidadosa e extensiva pesquisa sobre os padrões expressivos humanos em diversas culturas utilizando os conceitos etológicos de ritualização, padrão fixo de ação, mecanismo desencadeador inato, estímulo sinal, entre outros.

Robert Hinde, outro importante pesquisador do comportamento animal, realizou um trabalho recentemente buscando avaliar o papel das práticas religiosas na vida humana (1999 pg115). Ele afirma:

... muitas das ações usadas nos rituais públicos diferem das ações cotidianas em sua propriedade de captar a atenção e sinalizar. Considerando tais diferenças, é útil pensar em termos das mudanças evolutivas pelas quais os movimentos dos animais se tornam mais efetivos como sinais: estas incluem o desenvolvimento de estruturas conspícuas para enfatizar o movimento(que no caso humano pode incluir o uso de artefatos); mudanças na forma e na velocidade do movimento; e aumento da estereotipia do movimento, de tal forma que ele se torna mais facilmente reconhecível. Muitas das ações usadas nos rituais religiosos exploram princípios similares. É desnecessário enfatizar que isto não implica que os rituais religiosos são reduzíveis a algo que se assemelhe a sinalização animal .

5.4 Gânglios basais , comportamento ritualizado e TOC em um modelo experimental: