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VII. Obsessões religiosas

5. A BUSCA DE UM MODELO ANIMAL PARA O TOC: O

5.2 Estereotipia comportamental

O conceito de estereotipia tem sido usado para referir-se a comportamentos repetitivos e invariáveis, sem uma função ou uma meta evidente, sendo apresentados comumente por animais em cativeiro, e muitas vezes utilizados como indicadores de empobrecimento ambiental e de comprometimento do bem-estar do indivíduo, (Mason, 1991). Tais estereotipias estabelecem-se ao longo do processo de desenvolvimento ontogenético, e com o tempo podem se tornar independentes do estímulo que originalmente desencadeou seu desempenho. Entre os humanos, estereotipias comportamentais podem ser apresentadas por crianças institucionalizadas, indivíduos encarcerados em instituições fechadas como hospitais psiquiátricos ou prisões, indivíduos com deficiências sensoriais ou desajustamentos psicológicos, aparecendo como sintoma numa série de patologias comportamentais, como autismo, esquizofrenia, transtorno obsessivo compulsivo, drogadicção.

Algumas idéias sobre a compreensão da evolução e do desenvolvimento das estereotipias, em termos causais e funcionais, foram elaboradas em uma pesquisa anterior (Almeida, 1997). Nesta, buscou-se identificar ocorrências de estereotipias comportamentais em macacos-aranha (Ateles paniscus e Ateles belzebuth ) em cativeiro, avaliar as características próprias destas estereotipias, o contexto em que se desencadeiam e as suas possíveis consequências funcionais, bem como levantar hipóteses sobre os padrões comportamentais dos quais estas estereotipias poderiam ter derivado. Os sujeitos foram 11 macacos-aranha, divididos em grupos que ocupavam três ilhas no lago do Zoológico de São Paulo. Os dados foram obtidos através de 10 sessões de vídeo para cada sujeito.Os critérios empregados na delimitação dos padrões considerados estereotipados foram heterogêneos, conforme a definição do conceito utilizada: freqüência alta na ocorrência do padrão, para padrões identificados no etograma da espécie utilizado como referência; repetitividade no desempenho motor do padrão; ausência de uma meta ou função clara; rigidez na forma do padrão comportamental; idiossincrasia.

Foi realizada uma avaliação quantitativa dos dados, considerando a freqüência das estereotipias por sessão para cada sujeito e a distribuição destas estereotipias por contexto. Foram destacados quatro tipos de contexto relativos à direção da atenção do animal durante o

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desempenho da estereotipia. Além destes, foram destacados mais dois contextos relativos a situações que antecedem e sucedem o desempenho das estereotipias (estereotipia antecedida ou sucedida por interação social; estereotipia antecedida ou sucedida por uma ou mais estereotipias).

Os resultados sugeriram algumas direções na investigação do desenvolvimento de estereotipias em primatas no cativeiro: uma ausência de estereotipias em filhotes, uma correlação negativa entre estereotipias e interação social e a modulação do desempenho de estereotipias pela presença do público. A análise morfológica dos padrões estereotipados observados reforçou a proposição da literatura de que algumas estereotipias seriam derivadas de comportamentos típicos de conflito motivacional, evidenciando na sua forma uma composição de tendências opostas de aproximar-se e afastar-se ou esconder-se. Padrões comportamentais ritualizados típicos do macaco-aranha e outros primatas apareceram também de maneira estereotipada, destacados do contexto de interação social próprio dos movimentos expressivos. Outros padrões comumente reportados como atividades deslocadas nos primatas foram observados de maneira estereotipada em alguns sujeitos: bocejo , coçar-se , catar- se , atividades de alimentação . Quanto ao contexto de ocorrência das categorias, predominaram aqueles que envolveram atenção voltada para fora do grupo: 68% do total de episódios de estereotipias foi apresentado quando o animal mantinha a atenção voltada para fora da ilha, seja para as ilhas vizinhas onde ficam outros macacos ou para a rua onde fica o público. Por outro lado, apenas 7% dos episódios de estereotipias foi antecedido ou sucedido por interação social. Em cerca de 40% dos eventos os padrões estereotipados foram acompanhados de outras estereotipias, algumas destas não apenas encadeadas mas interpostas formando uma estereotipia composta, o que reitera a suposição de uma causação ou funcionalidade comum. Padrões locomotores como impulso no galho e posturas como pendurar-se pela cauda , apresentados de maneira repetitiva, parecem ser indicativos dos prejuízos locomotores diretos e indiretos impostos pelo cativeiro e de um tipo de estimulação compensatória, reforçando a idéia de que as estereotipias serviriam à manutenção da homeostase no organismo, garantindo um nível ótimo de estimulação sensorial, quando esta se mostra insuficiente ou excessiva . Algumas considerações podem ser feitas também a respeito dos paralelos entre o processo de desenvolvimento de estereotipias no indivíduo e o processo filogenético de ritualização.

Desmond Morris (1966) apresentou uma interessante proposição para a compreensão da gênese de uma estereotipia, sugerindo a ocorrência de um processo análogo ao processo de ritualização filogenética. Ele afirma que no processo através do qual uma estereotipia se

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desenvolve é possível identificar vários aspectos característicos da ritualização de um padrão comportamental, sendo este último, porém, um processo essencialmente filogenético, em oposição ao processo ontogenético no qual se desenvolve uma estereotipia.

O primeiro ponto comum diz respeito à origem em padrões comportamentais típicos de conflito motivacional. Assim como um padrão ritualizado filogeneticamente, uma estereotipia pode se desenvolver a partir de movimentos de intenção e atividades deslocadas ou redirigidas . Em uma estereotipia pode haver modificação da função e da causação do padrão original, da mesma forma que na ritualização de um padrão comportamental ocorre emancipação (Manning,1972). No processo de ritualização pode ocorrer um exagero em alguns componentes do padrão original, ou ainda omissão, mudança na sequência, alteração de velocidade ou repetição rítmica de outros componentes, sendo todas estas características próprias no desenvolvimento de uma estereotipia. Por outro lado, Morris chama a atenção para o fato de que todas as mudanças que ocorrem num padrão comportamental no processo de ritualização operam no sentido de aprimorar sua função de sinal, ao torná-lo mais conspícuo, menos ambíguo e efetivamente comunicativo, o que não é possível afirmar no caso de uma estereotipia. Propõe então que a investigação de estereotipias em animais em cativeiro poderia fornecer elementos importantes para a compreensão do processo de ritualização. É possível supor que o oposto também seja verdadeiro, ou seja, que as compreensões sobre o processo de ritualização filogenética também possam ser heurísticas para o estudo das estereotipias.

Importa notar que os comportamentos típicos de situação de conflito funcionam como matéria prima para os processos de ritualização filogenética e para o desenvolvimento de estereotipias. No primeiro caso, a força de pressão seletiva é exercida pela eficiência do valor de sinal agregado ao comportamento em questão. No segundo caso, o valor de sinal, se existir, parece secundário: uma pista para a compreensão dos fatores associados ao desenvolvimento das estereotipias provém do entendimento de que os comportamentos típicos de situação de conflito poderiam funcionar como um alívio para o indivíduo na condição do conflito sem solução, mudando o momentaneamente o seu foco de atenção e protegendo-o da frustração. Tais comportamentos parecem proteger o indivíduo de ansiedade excessiva gerada pelo conflito; a própria estereotipização parece ter um valor em si, automatizando e liberando o indivíduo de um investimento adicional.

Embora uma das características fundamentais de uma estereotipia seja sua aparente irrelevância, ou a ausência de uma função evidente, tem sido sugerido que as estereotipias teriam conseqüências benéficas que reforçariam sua apresentação, podendo funcionar como

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um mecanismo de ajuste ou uma forma de lidar com uma situação adversa, conflituosa ou frustrante. Esta hipótese também é sugerida na compreensão da função de comportamentos típicos de situação de conflito motivacional, não estereotipados, caso por exemplo das atividades deslocadas, que funcionariam como meio de limitar os custos relacionados a um conflito interno de difícil resolução. (Mastrepieri, Schino, Aureli & Troisi, 1992)

Analogamente ao que se supõe de comportamentos típicos de conflito motivacional, o desempenho de uma estereotipia poderia proteger o indivíduo da ansiedade e frustração associadas a conflitos sem solução, mudando o foco de sua atenção. Mason(1991), em um trabalho de revisão do conceito de estereotipia, destaca os trabalhos que apontam a natureza reforçadora de uma estereotipia e investigam os possíveis reforçadores do seu desempenho. Entre os indícios de seu valor reforçador está o fato de que, uma vez desenvolvidas, as estereotipias são persistentes, e muitas vezes o animal parece trabalhar para possibilitar seu desempenho.

Foi observado que indivíduos desempenhando estereotipias estariam fisiologicamente calmos , isto é, com baixo nível de cortisol e uma baixa freqüência cardíaca (Lewis, Maclean, Bryson-Brockmann, Arendt, Beck, Fidler & Baumeister, 1984; Soussignan & Koch, 1985; Willemsen-Swinkels, Buitelaar, Dekker & Van Engeland, 1998). Experimentos com porcos, animais que apresentam estereotipias com grande freqüência, sugeriram uma relação entre o desempenho de estereotipias e uma liberação de endorfinas ou opióides endógenos, que teriam um efeito calmante e recompensador, que possivelmente induziria uma dependência (Cronin, Wiepkema & Van Ree, 1985). Uma repetição disfuncional ou compulsiva poderia assim envolver um elemento de adicção que começaria a partir de um efeito ansiolítico.

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5.3 Alguns comportamentos compulsivos e os conceitos etológicos: uma aproximação