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Como vimos nesta aula, as visões sobre o patrimônio mudaram bastante ao longo dos anos. Isso quer dizer que o patrimônio não pode ser entendido como algo “natural” ou autoevidente. Se hoje

achamos óbvio que, por exemplo, o casario colonial de Ouro Preto (MG) e o Círio de Nazaré (Belém/PA) sejam patrimônios culturais, essa percepção não era tão “natural” assim no passado. Ainda hoje, muitos podem discordar dessas classifi cações. Pessoas de diferentes lugares e culturas difi cilmente concordariam com a patrimonialização de terreiros de candomblé, do funk carioca ou do jiu jitsu brasileiro. O Patrimônio Cultural é, sobretudo, um conceito histórico e cultural, que sofre reavaliações constantes dependendo do modo como, em determinada época e lugar, defi nimos e atribuímos valor aos nossos bens culturais.

A partir dessa refl exão, vamos apresentar a seguir algumas questões que vêm à tona com as novas formas de patrimônio cultural, sobretudo aquelas ligadas à preservação dos bens imateriais, associados à chamada “cultura popular”.

Em primeiro lugar, temos a questão ligada ao relativismo

cultural. A ênfase na valorização da diversidade das culturas,

das diferentes identidades associadas a grupos sociais específi cos (como a cultura quilombola, a cultura ianomâmi, a cultura dos imigrantes alemães etc.) que sustentam representações coletivas (como a representação do que é ser brasileiro ou carioca ou afro-

descendente, ou gaúcho etc.) termina, ao fi m, por se contrapor

às concepções universalistas de cultura e civilização, que sempre estiveram presentes nas concepções de patrimônio, paralelamente às ideologias nacionalistas.

Atualmente, um exemplo de tensão entre a valorização do relativismo cultural, de um lado, e concepções universalizantes de cultura, de outro lado, surge com a própria ampliação da noção de direitos humanos, já que esta inclui os direitos culturais ligados ao direito à memória, à preservação e à proteção das tradições. Assim, o que temos nesse caso é uma visão universalizante de cultura que iguala, inclusive do ponto de vista legal, diferentes povos e comunidades, de diferentes culturas, no que se refere ao direito de preservação e luta legítima pelo seu patrimônio. A contradição ou

Relativismo cultural é uma ideologia que defende a validade e a riqueza intrínseca de qualquer sistema cultural. Os julgamentos do que é bem ou mal, certo ou errado, bonito ou feio devem ser suspensos pelo observador externo àquela cultura e compreendidos dentro dos critérios próprios da cultura observada.

Aula 1 – O patrimônio cultural: memórias e identidades

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à diferença entre os povos. Nesse sentido, o que chamamos de “Humanidade” (um conceito universalizante) é, na verdade, formada por esse conjunto de diferenças entre os grupos sociais.

Um segundo tipo de desafi o está presente na própria noção de bem cultural com que hoje se defi ne o patrimônio. Dizer que o patrimônio cultural é um bem implica uma visão da cultura como produção e circulação de mercadorias. Esse caráter econômico do patrimônio cultural muitas vezes se choca com a perspectiva de conservação e reprodução de formas artesanais de produção desses mesmos bens. A economia dos artesãos, por exemplo, não atende aos ditames da lógica da acumulação capitalista e, em muitos casos, o caráter artesanal dos produtos pode ser descaracterizado, tomando feições de comércio atacadista, com o próprio aumento da demanda pelos produtos regionais.

Esse mesmo dilema econômico diz respeito às relações nem sempre pacífi cas entre turismo e patrimônio. Você já deve ter ouvido falar que a circulação intensa de carros pelo centro histórico de Ouro Preto tem acelerado a depreciação das estruturas das igrejas e casarios centenários da cidade ou que a enorme quantidade de turistas na Praça San Marco, em Veneza (Itália) ou na Muralha da China descaracterizaria a própria paisagem artística e histórica do lugar. Assim, outro desafi o que encontramos está ligado à valorização do potencial econômico do patrimônio cultural e à lógica de incentivo ao turismo que, paradoxalmente, acaba por acelerar a degradação desse mesmo patrimônio.

CONCLUSÃO

O patrimônio cultural possui uma variedade de acepções que vão muito além dos estereótipos com que geralmente ele é enquadrado. É necessário o exercício de se desnaturalizar seu conteúdo, recuperando sua trajetória de constituição e, depois, as

múltiplas defi nições que se agregaram à concepção original de patrimônio como um bem arquitetônico. A ampliação dessa noção correspondeu a uma mudança profunda na maneira pela qual as sociedades ocidentais relacionam-se com o tempo, a memória, a identidade e a cultura. Fundamental para a compreensão do patrimônio cultural é entender o processo de patrimonialização como uma construção cultural, baseado na atribuição de valores a certos bens culturais por parte dos diferentes grupos sociais.

Outro aspecto essencial no entendimento do que signifi ca patrimônio cultural e quais são suas implicações está na relação estabelecida com a memória social e as identidades culturais. Qualquer concepção de patrimônio assenta-se nas memórias coletivas dos grupos sociais e, por meio delas, contribui para a formação das identidades culturais desses grupos. Dessa forma, o patrimônio cultural é um elemento fundamental para a defi nição da maneira pela qual a sociedade enxerga-se, dos elementos que ela valoriza e do legado que pretende deixar para seus herdeiros. Em outras palavras, o patrimônio é um retrato permanentemente atualizado da imagem que a sociedade tem de si. O que expressa ao mesmo tempo as riquezas e tragédias que a compõem, um mosaico complexo e contraditório da diversidade cultural do mundo.