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CAPÍTULO 2 – “A vida é loka”

2.2. Os jovens e o Sistema de Proteção à Infância e à

2.3.1. Alianças

Quando Elias, Esmeralda e Helena afirmavam que não se pode confiar em ninguém, não pude deixar de perguntar-lhes sobre suas relações, afinal, isso significaria que não confiam uns nos outros. É Esmeralda novamente quem explica para a “tia meio sem noção” o que querem dizer. Segundo ela, é simples, já que se pode confiar em alguns parceiros, principalmente em se tratando de pessoas da mesma “área”, mas “a gente tem que estar sempre ligado”. Este estado de alerta, sugerido pela expressão “estar sempre ligado”, implica também em testar continuamente as lealdades. Ricardo, questionado por um educador sobre a razão de estar agindo com certa frieza em relação a outro jovem, responde que “eu sou assim pra ver se a pessoa tem peso na consciência, pra sentir qual que é a do cara”. A atitude de Ricardo, assim como a explicação de Esmeralda, traz à tona o caráter de certo modo “fluido” das alianças que estabelecem, principalmente dentro da instituição. Neste sentido, parece haver uma diferença em sua percepção das alianças que estabelecem dentro da instituição e as alianças que estabelecem com os “parceiros” da mesma “área”. Melhor dizendo, ser ou não da mesma “área” pode ser, neste contexto, um dos fatores que determinam a continuidade da ligação em alianças mais consolidadas. A “área” de cada um tem grande importância para os jovens e é um dos assuntos mais recorrentes entre eles, sendo que, normalmente, a primeira pergunta que fazem a um jovem que chega à instituição é sobre sua “área”. Para aqueles, como Helena, que cresceu num Abrigo, e Joaquim, que se mudou repetidas vezes e nos anos que antecederam sua chegada na Olaria também morou em Abrigos, não ter uma “área” torna-se um ponto de diferenciação. Quando outros jovens falam sobre suas áreas, Helena sempre fala de seus dias morando nas ruas. Ela morou nas ruas por um considerável período de tempo, e como não era “casqueira” - o que, como veremos no próximo capítulo, invalidaria suas ações, pois a colocaria em uma posição de “não-sujeito” -, morar na rua torna-se um ponto de diferenciação positivo e a coloca numa

113 posição simétrica em relação aos outros. Joaquim, nestas ocasiões, sublinha os muitos lugares que conhece. O que chama a atenção é que não pertencer a uma “área” gera a necessidade de se aludir a algum fato que possa equilibrar as posições na interação, uma espécie de compensação pelo fato de ser alguém sem os laços que o ligam a um território específico. Apesar de considerar pertinente a literatura que discute grupos jovens, sua relação com o território e suas lealdades, nos termos de “gangues” e “galeras” (Diógenes, 1998; Zaluar, 1997; Vianna, 1997), escolho um caminho diferente. Isso porque o que quero marcar é a relação de pertencimento a um “território compartilhado” não apenas pelos jovens, mas por todos aqueles que compartilham os “mapas afetivos” (Rocha, A.L.; Eckert, 2005) de pertencimento territorial dos sujeitos. Neste sentido, as relações que os jovens estabeleciam com os educadores da Olaria que viviam na mesma “área” que eles foi de grande valia para minha análise, pois estes eram os educadores nos quais mais “confiavam”, segundo eles60.

João estava em Lanzarote há mais de dois anos, quando o conheci, e seu “parceiro” havia sido preso em um presídio local há pouco tempo. “Ele é meu irmão mesmo”, diz João. Os dois são da mesma “área” e, segundo João, até que fosse preso o jovem lhe ajudava, mandando dinheiro regularmente. Agora, João se vê na obrigação de conseguir sair logo, pois é a sua vez de ajudar. Ele comenta que, mesmo estando a considerável período de tempo na instituição, não pode confiar plenamente em nenhum dos outros jovens, pois “os cara não são da área, então não dá pra saber. Na real a gente não sabe nada do cara”. O único “parceiro” que reconhece como tal é o jovem de sua “área”, o que acabou de ser preso. Ser da mesma “área” garante uma rede de relações comuns, possibilita que se conheça tanto a história pessoal de cada um quanto de seus familiares, suas afinidades e lealdades. As trajetórias são compartilhadas, entrecruzam-se em um território, no qual o tempo e a convivência criam confiança mútua. Antônio e Martin, ambos vivendo na Olaria, são da mesma área, demonstrando laços de

60 Isso não significa que eu possa afirmar que existam (ou não) “gangues” ou “galeras”, pois, como a pesquisa teve lugar em instituições e os jovens nunca se referiram a nada que pudesse me levar a refletir sobre o tema, não tenho material empírico para me aventurar nesta discussão.

114 confiança entre si que não partilham com os outros jovens, e o mesmo acontece com Elias e Bernardo ou Daniel e Diogo.

É claro que dentro da instituição formam-se alianças e a solidariedade de grupo é bastante forte, no entanto, os laços formados lá parecem ser arranjos momentâneos (como é a situação institucional). Era difícil acompanhar quem era “amigo” de quem, e a impressão que eu tinha era que, toda vez que chegava na instituição, as lealdades haviam mudado. Com o tempo, percebi que o que parecia, num primeiro momento, uma confusão de jovens que se “amam” e depois se “odeiam”, aponta, na verdade, para mudanças constantes das relações em que estão envolvidos. Sem a ligação que a “área” inspira, as alianças são negociadas exclusivamente a partir do contexto imediato das relações. No caso de meus interlocutores, este contexto é o contexto institucional de que falamos acima, ou seja, um contexto em que “tudo pode acontecer”. Assim, a mudança dos educadores de plantão, de jovens que chegam e vão embora, daquilo que o jovem percebe como relevante em cada interação, do tempo que o jovem se vê obrigado a ficar na instituição, tudo enfim, pode influenciar aqueles com os quais estabelecem alianças. E, por isso mesmo, estas alianças precisam ser “testadas” constantemente, pois, mudando as circunstâncias das interações, mudam também as alianças.

Desta forma, ao que tudo indica, as alianças formadas dentro da instituição são situacionais e sua durabilidade parece ser mais curta do que aquelas formadas na “área” do sujeito. Aqui, contudo, é preciso ter cuidado. Apesar de ter observado as relações entre alguns jovens da mesma “área”, e desses jovens manterem entre si uma relação que demonstra um nível de confiança maior do que as mantidas com outros jovens, devemos lembrar que os sujeitos se encontram no contexto institucional. Neste contexto, a “área” é mobilizada como um dos fatores que ajuda a determinar a confiabilidade dos sujeitos com os quais interagem. Na Olaria, também em relação aos educadores, os jovens demonstram confiar mais naqueles que vivem na mesma “área” que eles. Assim, a “área” é mobilizada como um dos fatores que podem, de certa forma, diminuir a desconfiança, e de certo modo, estabilizar a relação. Contudo, como não convivi com os jovens em seus territórios, não posso afirmar que o mesmo ocorra nestes contextos. Suas numerosas referências sobre a existência de “traíras” e “caguetas” em suas “áreas” aponta para a necessidade de estar sempre alerta, estar

115 “sempre ligado”, também quando se movimentam em seu território, afinal “amor só de mãe”. A reflexão sobre as figuras do P2 e do “cagueta” podem nos ajudar a compreender melhor este ponto.

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