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CAPÍTULO 1 A (dupla) entrada em campo e as

1.4. Pontos de divergência: fatores estruturais e práticas

1.4.1. Diferenças estruturais

Parte das divergências entre os dois contextos pode ser compreendida quando lembramos que Lanzarote aplica a medida socioeducativa de internação, enquanto a Olaria recebe os jovens cumprindo a medida de semiliberdade. No primeiro caso, os jovens não têm autorização para deixar a instituição, a escolarização deve ter lugar dentro do espaço institucional, assim como é de responsabilidade da mesma prover cursos de profissionalização e atividades lúdicas para os jovens, dentro de suas instalações. Já na Olaria, os jovens têm autorização para deixar a instituição durante o dia, tendo apenas que voltar para dormir lá. Isto significa que a grande maioria freqüenta a escola, alguns trabalham e muitos fazem atividades extras, como cursos profissionalizantes, esportes, etc. Podem também, se cumprirem todas as suas obrigações - ou seja, se forem à escola diariamente, participarem das atividades extras, respeitarem as regras e os horários determinados para voltar à Olaria - visitar suas famílias a cada duas semanas. Essa maior liberdade de movimentação torna o cotidiano da Olaria muito menos tenso do que o de Lanzarote. Guilherme, que já havia passado alguns meses em uma instituição de internação como Lanzarote, diz que viver na Olaria “deixa o cara mais calmo que preso”. Ele conta que, quando estava na outra instituição, tinha “raiva dos cara [se referindo aos funcionários da instituição] que vinham lá e achavam que era fácil ficar de boa preso”. Todos os jovens que já haviam passado algum

espaço físico e número de profissionais em cada uma delas. É interessante notar que, mesmo para instituições de internação, o documento ressalta a necessidade de se “estabelecer uma progressividade para a realização de atividades externas dos adolescentes” (BRASIL, 2006, p.67).

77 tempo cumprindo medida de internação concordavam que, nesta condição, o cotidiano é mais duro. João, um dos jovens internos em Lanzarote há mais de dois anos, conta que é difícil não pensar “maldade” estando preso o dia todo. Bernardo, relembrando os anos em que passou no regime de internação, comenta que “o cara fica o dia todo no veneno”. Ele diz que é bem mais fácil “ficar de boa” na Olaria, porque agora pode “sair na rua”, “sentir o vento”. Uma das grandes diferenças nas falas dos jovens nas duas instituições, quando se referem ao seu cotidiano, diz respeito a “ficar no veneno”, expressão que usam para se referir a um sentimento que é um misto de agonia, raiva e tristeza e está sempre associado a “pensar maldade”44. Os jovens da Olaria raramente falam que estão “no veneno”, e se usam esta expressão, ela está normalmente relacionada a algum fato específico, e não ao cotidiano da instituição em si.

Porém, tudo isso não significa que os jovens sintam-se à vontade cumprindo a medida socioeducativa de semiliberdade, pois a liberdade de movimentação não é absoluta, como gostariam. Sair sozinho, sem um educador, para ir à escola ou ao trabalho, é uma “conquista”. Nos primeiros dias do jovem na Olaria, ele sempre sai acompanhado por um educador e, caso ele já tenha autorização para se movimentar sozinho e faça algo que não lhe é permitido, ele perde o direito de sair desacompanhado. Para os jovens, a constante presença de alguém os acompanhando é uma afronta a sua autonomia, algo que lhes é caro, como veremos nos próximos capítulos. No entanto, é inegável que as possibilidades de circulação fora do espaço institucional, previstas pela medida de semiliberdade, tornam o cotidiano na instituição e a convivência entre funcionários e jovens menos tensos. Uma das diferenças é que, como os jovens podem sair continuamente, as “fugas”

são bem mais fáceis e não representam risco para os funcionários45. Em

Lanzarote, os funcionários dizem viver em constante medo de serem “atacados” por jovens tentando fugir.

44 Perguntei a João o que era “pensar maldade”, numa tarde em que conversávamos sozinhos no gramado dentro do espaço de seu nível. Ele me responde que “pensar maldade é pensar em roubar, matar, fugir, pensar coisa ruim mesmo”.

45

Apesar de mais fáceis, o número de fugas na semiliberdade é consideravelmente menor do que na instituição de internação. Segundo os jovens, isso acontece porque a vida ali é mais “fácil”. Já segundo a coordenadora estadual de medidas socioeducativas, isto está ligado ao “perfil” dos jovens atendidos por cada uma das instituições.

78 Além disso, o número de jovens atendidos pela Olaria é

consideravelmente menor do que o número de jovens

institucionalizados em Lanzarote. Enquanto, na Olaria, todos os jovens atendidos dividem as áreas comuns, sendo apenas os quartos separados

e divididos em “lado dos meninos” e “lado das meninas”46, em

Lanzarote, os jovens são divididos em “níveis” e realizam suas atividades diárias apenas com os jovens de seu nível. Um número menor de jovens significa também um número menor de funcionários, tornando o diálogo entre a coordenação e demais membros da equipe mais direto e dinâmico. Além disso, todos os funcionários da Olaria são contratados pela coordenação, enquanto em Lanzarote, grande parte deles são funcionários concursados pelo Estado. Assim, a coordenação da Olaria tem maior liberdade para escolher aqueles profissionais que acredita serem os mais indicados para o trabalho, de acordo com seus próprios critérios. É parte da política da Olaria empregar educadores que estejam envolvidos com Projetos Sociais em comunidades de baixa renda, ou mesmo sujeitos que sejam atendidos por estes programas. Nem todos os educadores que trabalham na Olaria têm este perfil, mas, aqueles que não o têm, são moradores de comunidades de baixa renda do município e, muitas vezes, das mesmas comunidades de alguns dos jovens. Como a Olaria recebe também “meninas”, metade são mulheres. Já em Lanzarote, os monitores são concursados pelo Estado e muitos deles, trabalharam em instituições para “menores” no período que antecedeu ao ECA, quando estas instituições tinham um caráter penal, enquanto outros, vêm do sistema penitenciário. Há apenas uma monitora, no entanto, ela não “dá plantão” na área dos jovens, como seus colegas. Sua função é revistar as mães, namoradas, tias, avós, que visitam os jovens. Nos dias em que não há visitas, a monitora ajuda em trabalhos administrativos, busca e leva jovens dos níveis até a sala das psicólogas, assistentes sociais, etc. Todos os monitores de Lanzarote, ao contrário da Olaria, são homens grandes e, muitos deles, trabalham também como seguranças particulares.

A diferença no “perfil” dos monitores e educadores, aliada às diferentes práticas institucionais, que discutirei em seguida, implica em relações bastante diversas com os jovens. Para os jovens, o “monitor” é

46 Como dito anteriormente, uso os termos “meninos” e “meninas”, no lugar de “jovem”, para marcar a diferença de gênero, quando e como as diferenças de gênero passam ao primeiro plano da interação.

79 sempre uma “autoridade”, uma caracterização negativa na qual está implícita uma relação de repressão arbitrária, usada pelos jovens para descrever determinados sujeitos (monitores, policiais e juízes), como discutirei no capítulo 3. Já os “educadores”, ocupam um lugar mais ambíguo, são vistos como “autoridade” em determinados momentos, mas também são “tios” e “tias”, evocando uma relação mais positiva afetivamente, e não exclusivamente de oposição conflituosa47.

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