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O contexto institucional de medidas socioeducativas

CAPÍTULO 2 – “A vida é loka”

2.2. Os jovens e o Sistema de Proteção à Infância e à

2.2.1. O contexto institucional de medidas socioeducativas

Como vimos acima, o ciclo de circulação que pauta a vivencia dos jovens, implica em uma sensação de imprevisibilidade constante, me detenho agora, especificamente, em suas vivencias no contexto institucional de medidas socioeducativas. Espero demonstrar que o cotidiano nestas instituição pode também ser entendido como um “contexto de imprevisibilidade”, alimentando sua sensação de que “tudo pode acontecer”. Sempre me chamou a atenção a ideia, repetida constantemente, de que “tudo pode acontecer” e, Acompanhando a rotina institucional, comecei a perceber que a frase descrevia bem a sensação que esta rotina produz, tanto nos jovens quanto nos funcionários das instituições. O trânsito dos jovens pelas instituições é um dos fatores que alimenta este sentimento. Mesmo no curto período que passei em Lanzarote, jovens chegaram nos dois níveis aos quais tive acesso, e outros, foram transferidos, seja para outros níveis ou para outras instituições. É lugar-comum, em tais instituições, transferir jovens com “mau comportamento”, o que ocorre com certa freqüência. Antônio conta que conhece várias cidades do Estado, isso porque já foi transferido para aproximadamente cinco cidades diferentes em menos de um ano. No dia em que conheci Luis, ele estava voltando para Lanzarote. Nesta ocasião, o diretor me contou que, dois meses antes, havia transferido Luis para outro município, “pra ensinar uma lição para ele”. Durante estes dois meses, Luis havia ficado em duas instituições diferentes e, segundo o diretor, agora iria “se comportar bem”, porque havia sentido a tristeza de ficar em municípios longe de sua família.

O impacto que essa “política de transferência” causa aos jovens pode ser melhor compreendido quando lembramos que um jovem nunca é comunicado antecipadamente sobre sua transferência ou qualquer alteração em sua situação. A lógica dos funcionários quanto a este ponto é que, caso o jovem tome conhecimento de que será transferido para

107 uma localidade que não lhe agrade, ele pode fazer algo que dificulte sua transferência ou fugir. Como Esmeralda, que entre ser transferida para o interior do Estado e fugir, escolheu fugir. Ela inclusive, na noite em que voltou para instituição, depois de sua fuga, pediu aos funcionários que não a transferissem, ameaçando fugir novamente se eles não a deixassem ficar. Já se o jovem ficar sabendo que será liberado, afirma o diretor de Lanzarote, ele pode levar recados dos jovens que estão na instituição para pessoas de fora, com quem eles não podem manter contato. Segundo os funcionários de Lanzarote, ele poderia também receber ordens de “chefes” que estão internos para realizar “serviços” fora. Mesmo na Olaria, onde as transferências são menos comuns, caso isso aconteça, o procedimento é o mesmo, o jovem sendo comunicado apenas no último instante.

Para os jovens, a incerteza sobre o que pode vir a acontecer e a falta de informações deixa-os em um estado de vigília constante. Procuram significados ocultos em cada pequeno acontecimento do dia, passam horas especulando sobre o que pode estar acontecendo e o que pode estar sendo dito sobre eles pelos funcionários. Elaboram as mais variadas teorias que os deixam ainda mais angustiados, cheios de suspeitas. Depois de um desentendimento, ocorrido num final de semana, entre alguns jovens e um dos educadores, na segunda-feira que se seguiu, os jovens da Olaria passaram o dia todo especulando sobre o que iria acontecer com eles. Cada vez que um dos coordenadores chegava ou saía de sua sala, os jovens, reunidos no “fumódromo”, discutiam o que poderia estar acontecendo. Cada olhar, cada vez que telefone tocava, cada movimento, era interpretado pelos jovens como um sinal que apontava para a possível transferência de um deles. Planos de fuga foram traçados por alguns, outros se resignavam à transferência, enquanto um deles chorava e dava socos na parede. Durante a tarde, os coordenadores chamaram os jovens envolvidos no “desentendimento”, um por um, até a sala da coordenação para conversar com eles. Os últimos a serem chamados entendiam esta ordem como um sinal de que eles sim seriam transferidos e ficavam cada vez mais nervosos. Foi um dia tenso. No início da noite, quando tudo parecia resolvido, pois todos haviam conversado com os coordenadores e parecia evidente que ninguém seria transferido, sento na frente da Olaria com Sara e Gil. Os dois continuam nervosos, então pergunto por que não se tranqüilizaram depois da conversa com os coordenadores. Sara me responde que

108 “nunca se sabe”, pois a conversa amigável, em sua opinião, poderia ser apenas uma estratégia para acalmá-los até que os coordenadores encontrassem vagas em outras instituições para eles. A certeza de Joaquim, de que na Olaria pode ficar tranqüilo, porque dali não será transferido “do dia pra noite”, é fruto da política da Olaria de conversar com o jovem e lhe alertar algumas vezes antes de recorrer à transferência. Contudo, esta certeza não era compartilhada pelos demais jovens. Acredito que isto se deva ao fato de que Joaquim estava na Olaria há mais tempo e, além disso, ele é descrito pelos funcionários como um jovem com “comportamento exemplar”. Mas há outro ponto que gostaria de destacar, que nos ajuda a entender o receio de Sara e Gil, assim como nos ajuda a pensar a rotina nas instituições e de que forma esta rotina alimenta o sentimento de que “tudo pode acontecer” entre os jovens.

Apesar de todas as instituições que aplicam medida socioeducativa serem regidas pelo SINADE, o modo como estas diretrizes são incorporadas no dia-a-dia é bastante variado, como vimos no capítulo 1. Isso implica em procedimentos cotidianos bastante diversos. O que é permitido em uma instituição pode não ser permitido em outra, o que é considerado “bom (ou mau) comportamento” em uma, pode não ser considerado em outra. Além disso, cada grupo de monitores ou educadores de plantão tem suas próprias regras, as quais algumas vezes seguem a lógica das instituições, outras vezes não. Isto é, os critérios que determinam o “bom (ou mau) comportamento”, são bastante vagos. Esta variação das regras, tanto no nível institucional, quanto em relação aos monitores e educadores, aliada ao trânsito institucional - jovens continuamente chegando e indo embora - cria um clima de incertezas. A isto, adiciona-se o fato de que a rotatividade de funcionários é grande, monitores e educadores sendo transferidos, despedidos ou deixando o emprego, com freqüência. Em Lanzarote, um dos maiores problemas para a direção era encontrar professores que ficassem ao menos um semestre trabalhando ali. Em uma conversa com as psicólogas e assistentes sociais da instituição, elas me contaram que praticamente todas esperavam ansiosamente por uma transferência. Isso significa que, quando um novo profissional chega, seja ele um professor, um monitor, um educador ou uma assistente social, os jovens precisam se adaptar novamente à lógica deste sujeito. As mudanças mais drásticas acontecem quando muda a direção ou coordenação da

109 instituição - o que também não é incomum -, pois neste momento, todas as regras e procedimentos institucionais mudam. Desde que deixei Lanzarote, o diretor já foi substituído duas vezes. Quanto à Olaria, no começo deste ano, um dos gerentes também deixou a instituição. Nova adaptação por parte dos jovens. Muitas vezes, este movimento de adaptação é necessário, segundo os jovens, porque querem demonstrar “bom comportamento”.

Quase toda a relação entre jovens e instituição, como organização, está pautada pela ideia de “bom comportamento”, constituindo um sistema de “prêmio” e “castigo”. Como a liberação de um jovem depende, em grande parte, do “Relatório Situacional” enviado pela instituição ao juiz, o “bom comportamento” pode significar um relatório em que a regressão da medida socioeducativa ou a liberação são recomendadas. A decisão de se o jovem poderá passar os finais de semana, no caso da Olaria, ou feriados, no caso de Lanzarote, em sua casa, depende também, em grande parte, do “bom comportamento”. Em Lanzarote, a transferência para os níveis Alfa e Beta é justificada com base no “bom comportamento”. Ser transferido para outra instituição, como vimos, segue por vezes a mesma lógica. Enfim, o “bom comportamento” é uma das grandes categorias que articulam as relações entre jovens e funcionários. Contudo, apesar de ser uma categoria comum, o que, especificamente, pode ser considerado “bom (ou mau) comportamento” pode variar a cada momento, dependendo de quem está envolvido na relação e da concepção particular da direção ou coordenação da instituição. Como os jovens circulam com freqüência entre instituições e como cada funcionário pode ter uma ideia diferente do que pode ser descrito como “bom comportamento”, é preciso estar sempre alerta, testar constantemente os limites, pois não há garantias ou certezas. Isto é, é preciso constantemente situar-se nas relações. Gil e Sara estavam apreensivos mesmo depois da conversa com os coordenadores, porque sabiam que, caso fossem transferidos, não seriam alertados com antecedência. Além disso, os dois imaginavam que, a qualquer momento, as regras poderiam mudar. Sua apreensão torna-se compreensível quando lembramos algumas das características, como vimos acima, de suas interações com o sistema jurídico estatal de proteção à criança e adolescência. O trânsito institucional, as freqüentes transferências e as constantes mudanças nos parâmetros daquilo que pode ser considerado

110 “bom ou mau comportamento”, inspiram nos jovens a necessidade de estar sempre em alerta. E não somente dentro da instituição, pois mesmo fora dela, podem, a qualquer momento, ser abordados pela polícia, por exemplo. Os próprios vínculos que estabelecem nestes contextos, apesar de muitas vezes intensos, devem estar continuamente sob suspeição. É sobre este ponto que gostaria de me deter a seguir.

2.3. “Amor só de mãe” – Desconfiança

Minha primeira reação à desconfiança de Daniel de que eu era P2, como dito anteriormente, foi rir. Ser confundida com um policial me pareceu engraçado não apenas pelo estranhamento que a escolha dessa profissão representava para mim pessoalmente, como por ingenuamente acreditar que policiais infiltrados era algo que existe apenas em filmes. Ou seja, a figura do P2 era algo absolutamente estranho para mim. Contudo, ao iniciar a pesquisa na Olaria, percebi que o P2 era uma constante, uma preocupação não apenas dos jovens, mas de todos aqueles envolvidos no cotidiano da instituição, educadores, coordenadores e até dos vizinhos. Além disso, a frase que os jovens em Lanzarote me diziam, quando eu tentava convencê-los de que não era P2, “não confio em ninguém”, repetia-se entre os jovens da Olaria com a mesma freqüência. No entanto, ali ninguém questionava minha identidade de pesquisadora. Num fim de tarde, Elias, com um pincel atômico preto, desenhava na pele de Helena. Ele escreve, na batata da perna da jovem, “amor só de mãe”. A frase me chamou a atenção porque já a havia visto em inúmeras ocasiões, e resolvi então perguntar- lhes sobre ela e o que significava. Esmeralda, outra jovem que estava sentada com eles, explica-me, como quem explica o óbvio para uma criança: “oras tia, significa que só na tua mãe você pode confiar. Porque só ela vai estar por você sempre”. Elias e Helena concordam com a explicação e continuam o assunto nos mesmo termos: não se pode confiar em ninguém, é preciso “estar sempre ligado”, porque nunca podemos ter certeza sobre as intenções daqueles com os quais convivemos.

Esta atitude de desconfiança generalizada frente ao mundo é um dos marcos das interações dos sujeitos da pesquisa. Mas isso não impede que “parcerias”, isto é, alianças, sejam estabelecidas, contudo, estas parcerias serão testadas e modificadas constantemente. As alianças aparecem como arranjos momentâneos, pois mudando o contexto,

111 podem mudar também as alianças. Desta forma, também as alianças são contextos de imprevisibilidade, mas, ao mesmo tempo, elas podem ser entendidas, como uma tentativa de controlar as incertezas. Pois, estabelecer uma aliança, mesmo que ela seja momentânea, contextual, é uma forma de garantia, mesmo que seja preciso testá-la sempre. Ricardo e Helena estavam sempre juntos, e para mim, a amizade entre os dois era uma constante. Contudo, em uma das tardes em que cheguei na Olaria, Ricardo vem me encontrar no ponto de ônibus juntamente com outros jovens e me diz “a Helena é uma traíra”. Ele conta que, naquela manhã, a diretora da escola de Helena havia achado maconha em sua mochila. Ela chama então a polícia, que acompanha Helena até a Olaria para revistar suas coisas59. Ricardo diz que, quando um dos policiais passou por ele, lhe perguntou: “você que é o Ricardo então?”. A conclusão do jovem, frente a este questionamento, era que Helena havia dito aos policiais que a maconha era dele, “uma traíra tia, ela me caguetou”. Mais tarde, quando Helena e Mogueime E, o educador que acompanhou Helena à delegacia para assinar o Boletim de Ocorrência, voltaram, Ricardo ignora Helena. Ele conta para Mogueime E o que acha e o educador lhe garante que Helena não disse nada sobre ele à polícia. Para Mogueime E e os outros jovens presentes ali, o policial sabia quem Ricardo era porque algum P2 devia ter lhe dito. Ricardo aceita a explicação e vai falar com Helena. O que chama atenção neste episódio é que, em ambas as hipóteses levantadas para explicar o fato do policial saber quem é Ricardo, há a figura de alguém que não é aquilo que aparenta ser. Ou é Helena quem engana Ricardo, demonstrando amizade e depois o traindo - a “cagueta” -, ou é o policial à paisana que parece um transeunte normal - o P2. Independente do que tenha acontecido, o fato é que o episódio reforça a ideia de que não se pode confiar plenamente em ninguém, porque nunca é possível saber, com absoluta certeza, com quem estamos lidando. Além disso, como os arranjos mudam a cada nova situação, as posições dos sujeitos nas relações também podem mudar. Ou seja, como os próprios contextos não são estabilizados, há uma falta de confiança também nos membros

59 Apesar de não poder me estender sobre a discussão aqui, seria interessante refletir sobre a atitude da diretora da escola assim como da polícia nesta situação. Aqui, o estigma de Helena, como moradora de uma instituição para “adolescentes infratores”, parece influenciar diretamente as ações da escola e da polícia, pois a jovem tinha apenas uma pequena quantidade da droga.

112 dos contextos. Assim, tanto os contextos, quanto as relações podem ser entendidos como “contextos de imprevisibilidade”. Gostaria de refletir sobre este ponto a partir de dois lugares: primeiro, discuto as alianças entre os jovens, e em seguida, examino as figuras emblemáticas do P2 e do “cagueta”.

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